Possivelmente Jessé de Souza (UFMG) só tenha aparecido aos olhos de muitos agora há pouco, após assumir a Presidência do Instituto Brasileiro de Pesquisas Aplicadas (IPEA). A sua trajetória acadêmica, contudo, já é bem extensa, e produzindo uma análise social de significativa originalidade para o entendimento da realidade brasileira, a ponto de ser descrito com uma estatura similar aos clássicos do pensamento social nacional, a exemplo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, com quem dialoga criticamente. Da minha parte, um aspecto marcante na sua obra é a busca por 'abordagens globais', a investigação na procura de apanhar o caráter totalizante dos fenômenos. Não por acaso, Axel Honnet, ao prefaciar a edição alemão de 'A Construção Social da Subcidadania (Die Naturalisierung der Ungleichheit, VS Verlag) assinalou que a obra de Jessé tem o mérito de unir teorias de vanguarda do pensamento contemporâneo de modo a utilizá-las na melhor compreensão de problemas sociais da periferia do capitalismo. Reproduzo aí abaixo uma recensão do referido livro.
Por Fabrício Maciel e Roberto Moura
O livro A construção social da subcidadania:
para uma sociologia política da modernidade periférica (BH:
UFMG; RJ: Iuperj), de Jessé Souza, é talvez a obra mais importante da
sociologia brasileira nas últimas décadas. Como disse Axel Honneth, em seu
prefácio à edição alemã do mesmo livro (Die Naturalisierung der Ungleichheit,
VS Verlag, 2007), Jessé consegue unir teorias de vanguarda do pensamento social
contemporâneo de modo a aplicá-las produtivamente para melhor compreensão dos
problemas sociais da periferia do capitalismo. Nesse sentido, para Honneth, a contribuição
de Jessé representaria não apenas considerável avanço para a auto-compreensão
de sociedades como a brasileira, mas também contribuição importante para a
própria teoria crítica internacional.
Qual a novidade do livro e por que é um avanço em relação aos paradigmas
explicativos hoje existentes? Num contexto dominado ainda por uma compreensão
tosca e anacrônica da realidade brasileira, como se ela fosse dominada por
relações sociais pessoais pré-modernas de favor e proteção típicas de uma
fazendinha de café do século XIX, todo o esforço de Jessé é mostrar a
importância de critérios de classificação e desclassificação sociais modernos
constituídos a partir de relações sociais impessoais que são também opacas à
consciência individual. Num debate público acostumado a pensar o mundo a partir
de categorias pseudocríticas como a de "patrimonialismo" (segundo
Jessé o conceito mais influente das ciências sociais brasileiras) que pleiteia
uma oposição simplista e superficial entre Estado (corrupto) e mercado
(virtuoso e associado à sociedade como um todo), certamente a reconstrução de
Jessé é uma fonte inesgotável de inspiração para toda uma nova geração de
sociólogos ansiosa pela renovação do debate acadêmico e público brasileiro.
Para Jessé, a oposição entre Estado (corrupto) e mercado (virtuoso) é
construída desde Sérgio Buarque nos anos 30 e seguida por praticamente todos os
sociólogos, antropólogos e cientistas políticos brasileiros desde então. Essa
oposição é falsa porque não percebe a ambigüidade constitutiva dessas
instituições centrais do capitalismo e permite um "charminho crítico"
de contrabando ao dramatizar um conflito superficial que, na verdade,
encobriria todos os reais conflitos sociais brasileiros modernos. Dentre esses
conflitos encobertos, o mais importante é o decorrente da formação, típica da
periferia do capitalismo, de uma classe social de desclassificados que Jessé
chama, provocativamente, de "ralé". A "ralé" é
"ralé" porque não é desclassificada apenas economicamente, mas também
existencial, política e moralmente, produto de relações familiares
instrumentais e desagregadoras que se transmitem de modo afetivo e emocional de
geração a geração. O abandono dessa classe de desclassificados é percebido pelo
autor como o maior conflito social do Brasil moderno e contemporâneo, conflito
esse tornado invisível por categorias culturalistas e, hoje em dia de modo
crescente, por categorias economicistas que escondem a origem social das
diferenças individuais.
A teoria social proposta por Jessé Souza mostra toda a sua radicalidade quando
se percebe que compreender sociologicamente a reprodução desta classe de
desclassificados é, ao mesmo tempo, desvelar a concepção historicamente
construída de "boa vida" inerente ao mercado capitalista, percebido
até mesmo por grande parte da teoria crítica internacional como desvinculado de
uma orientação de valor particular. A constituição da "ralé" como
classe social específica é ratificada quando a estrutura familiar desagregadora
resulta, no mercado de trabalho, em atividades desqualificadas, quando a
impossibilidade de oferecer uma contribuição socialmente valorosa em termos de
um desempenho profissional digno significa uma forma rebaixamento social que
invade as outras esferas da vida, transformando cidadania formal em
subcidadania de fato. Com este esforço teórico de articular os "valores
objetivos" inerentes ao mercado, Jessé Souza contribui enormemente para
que a crítica do capitalismo consiga mostrar os mecanismos avaliadores que
constituem o desvalor diferencial dos seres humanos como sendo a patologia mais
importante do mundo social.
Desse livro, seguiram-se o "A invisibilidade da desigualdade
brasileira" (UFMG, 2006), com textos polêmicos com autores clássicos e
contemporâneos das ciências sociais brasileiras, e o recente "A ralé
brasileira: quem é e como vive", com diversos trabalhos empíricos
construídos ao longo de quatro anos com dez pesquisadores do CEPEDES
(www.cepedes.ufjf.br) sobre os tipos sociais mais representativos da ralé
brasileira. Para quem quer conhecer melhor por que as ciências sociais
brasileiras perderam seu corte crítico ou para quem quer compreender como os
brasileiros convivem com a naturalização e banalização da maior desigualdade social
dentre as nações complexas e dinâmicas do planeta, a leitura deste livro é
obrigatória.
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Fonte: http://www.ipea.gov.br/
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