O texto aí abaixo é do 'Projeto Cartas Voadoras' (http://cartas-voadoras.com/), que recupera a memória do tempo das cartas em papel. Os autores escrevem no mesmo, sem necessariamente se identificarem, sobre questões reais e imaginárias.
Hoje eu acordei me lembrando
do menino invisível, datilografando cartas à um estranho em sua máquina de
escrever, improvisando seu blog itinerante, encontrou outros transparentes,
aprendeu a ser infinito. Acordei querendo ser invisível, como se fosse possível
querer o que já é, como se não fosse. Ignorando a realidade, mergulhei na
lembrança do livro, um patê de emoções, gosto e afeto, poucas palavras de boca
cheia. Decidi escrever a um estranho qualquer. Sem máquina de escrever, sem
tinta a postos para impressão, foi à mão, que conversava imagens dos meus
sonhos de ontem.
Bem,
eu já não espero ser infinito, foi tudo finito demais. Já não há amigos
passando no vestibular, todos formamos, agora deformados vamos, vamos às seis
da manhã, vamos às dezoito, vamos sempre, vivos ou mortos, nunca voltamos, que
diferença faz? Tudo se afasta, finda, a vida parece infinita no vazio. Sou
finito na vida infinita, tento me conformar. Ainda posso jogar uma carta da
janela, e saber que ela vai parar na esquina, é meio como é o rumo da minha
vida. Nada de meios e caminhos retos, nada certo, tudo esquina, encruzilhada de
caminhos quaisquer.
Fui
abraçando o papel, tocando, sentindo, pensando como seria, quem encontraria,
quem leria as palavras de um desconhecido, quem lhe daria atenção, mais do que
aos vendedores da rua? Ainda que a carta límpida, embrulhada em envelope, com
palavras curiosas, cera de vela imitando passado, marca de anel de alumínio
como se fosse cobre. Ainda que… Quem curvaria ao chão, para pegar uma carta
baldia, caída de um andar esquecido, escrita por um qualquer? Não importa.
Pensei
em falar da minha vida, mas não conseguia deixar de pensar na reação do
estranho a quem destino essa escrita. Qual seria seu sexo, seu nome, sua cor,
seus gestos para alcançar o misterioso papel, tocá-lo, abrir o envelope. Que
diferença faria em sua vida? Diante das informações em demasia, às vezes
acho todo mundo parecido nas palavras bem pensadas, nos impulsos todos muito
diversos, é fato, impulsos não há como premeditar, não rola identificação, só
momento, só descarga de sentimento.
Crio
as imagens da diferença que não iria ver, do envolvimento que não iria tocar,
do movimento dos olhos que não iria enxergar. Crio imagens. Palavras foram
vazando cores e formas e eu não saberia expressar a não ser por desenhos toscos
lembrados dos meus seis ou sete anos. Palavras foram fugindo, transformaram-se
em som, em todo meio de expressão que eu não sabia, em tudo o que não poderia
chegar a ninguém. Senti o calor do asfalto aquecido por todo o dia tocando a
carta, queimando sua brancura, derretendo sua frieza, desvirginando-a da
solidão.
Quis
eu mesmo tornar-me carta e me jogar pela janela, na esquina, nesta encruzilhada
de caminhos, ser pisado, esquecido, estranhado, milhões de estranhos passando
por mim enquanto me deterioro e sinto o universo de baixo. Como se fosse
possível querer o que já é, como se não fosse. Queria ser encontrado por um/a
estranho/a, levado para o desconhecido, me sentir mais infinito.
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