Pátio de São Pedro - Recife |
Por Larissa Lins
(Diário de Pernambuco)
(Diário de Pernambuco)
Um
regime ditatorial militar, um punhado de histórias de amor, uma dúzia de
paixões mal resolvidas, alguns filhos e netos, uma dezena de carimbos na
carteira de trabalho, a substituição das máquinas Olivetti pelos computadores
portáteis, a popularização da internet e o surgimento de livros digitais.
Quantas experiências se pode viver e quantas mudanças se pode testemunhar em 60
anos? É nessa fase da vida, porta de entrada da terceira idade, que o acúmulo
de memórias
e o tempo livre propiciam o surgimento - ou a maior produtividade -
de escritores. Eles reúnem memórias pessoais, documentam épocas e, em
alguns casos, dão vazão a aptidões diferentes das vivenciadas, durante décadas,
no campo de atuação profissional. Médicos, marinheiros, engenheiros e
professores aposentados se transformam, ao primeiro título publicado, em escritores.
“Deveriam
ser até mais frequentes os autores mais velhos, pois já têm solidez,
maturidade. O tempo vai consolidando o exercício da escrita, o estilo do escritor, ainda que o talento seja nato”, diz Fátima Quintas,
presidente da Academia Pernambucana de Letras, onde todos os membros têm entre
47 (Antônio Campos) e 89 anos (Marly Mota). Para Fátima, com 71 anos e nove
livros publicados, a idade oferece o respaldo necessário para que os autores
ousem mais, além de maior disponibilidade para que se dediquem integralmente à
escrita - “embora o mercado seja difícil, como é também para os mais jovens.”
Em pesquisa realizada pela organização de caridade britânica Booktrust, em
2010, foi revelado que 31% dos entrevistados acima dos 60 anos têm vontade de
publicar contos na web e se associar a clubes do livro. O ócio criativo e o
desejo de eternizar o passado podem estar entre as principais motivações.
Para o escritor e
cineasta Jomard Muniz de Britto - que se mantém ativo diante de uma Olivetti
Tropical e cujos textos são transcritos para o computador por dois “assessores
digitais” - o exercício literário na terceira idade é, na verdade, um processo
de amadurecimento. “Ser velho não significa ser maduro. Eu mesmo vou morrer
imaturo. Ser velho nada mais é do que ter a sorte de envelhecer sem envilecer,
sem tornar-se vil”, dispara. Segundo relatório elaborado este ano pela ONG
internacional HelpAge, 12,3% da população mundial tem hoje mais de 60 anos, o
equivalente a 901 milhões de pessoas. Em 2030, será 1,4 bilhão, e, em
2050, 2 bilhões. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), até o fim do século será comum viver entre 100 e 120 anos -
no início do século 20, a expectativa de vida era de apenas 40 anos.
Além do
mercado editorial em atual processo de recessão, segundo a Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (Fipe), é incapaz de absorver toda a demanda criativa -
somente na editora pernambucana Bagaço são, pelo menos, 16 escritores ativos
com esse perfil - não existem, no Brasil, incentivos públicos voltados
especificamente à produção literária na terceira idade. Na Argentina, por outro
lado, o governo portenho prevê a concessão de pensões a escritores com
pelo menos 60 anos de idade e cinco títulos publicados, que vivam há mais de 15
anos em solo argentino. Os benefícios, instituídos em 2012, chegam a US$ 900
mensais, e são oferecidos a autores de ficção, poesia, ensaios literários e peças
de teatro.
Entre
todos os autores entrevistados pela reportagem, porém, as recompensas
financeiras não são mencionadas como prioridade. Escrever atende à função de
registro, caixa de recordações, hobby
e até mesmo salvação - do tédio, do ócio, do esquecimento. “A literatura nos
salva”, declara Fátima Quintas, que aos sete anos de idade já depositava alguns
versos sob o travesseiro da mãe, hábito que ainda a inspira a escrever.
“Envelhecer não envolve a pretensão de se tornar rico. Sou classe média, à moda
antiga, sempre fui. Pode escrever aí: tenho mais ou menos 200 anos. Não preciso
ser rico. Sou um sobrevivente”, finaliza Jomard.
STEPHEM
BELTRÃO | 64 anos
“Escrevo sobre a vida de marinheiro, a boemia e os bares.”
Nascido em Vitória de Santo Antão, Stephem começou a escrever
após três décadas de atuação como marinheiro. As experiências ao mar, a vida
boêmia e as pessoas que encontrou no caminho estão entre as inspirações.
Ingressou na Marinha do Brasil pela Escola de Aprendizes Marinheiros de
Pernambuco, aos 17 anos. Na literatura, estreou em 2003, ao publicar o livro ‘Retratos
do tempo’ - “motivado pelo fato de que a sociedade brasileira não conhece as
atividades das Forças Armadas.” Em 2007, lançou ‘Vida de marinheiro’, no qual
reúne relatos próprios e de outros quatro colegas sobre as atividades ao mar.
“Aportei em vários estados do país, em outros continentes, também. Recolhi
memórias”, sintetiza. Antes dos sete livros já publicados, as
experiências davam origem a músicas - Stephem Beltrão compôs mais de 100.
“Minha motivação maior, como
escritor e poeta, é a vida das pessoas. Seus costumes, sonhos, frustrações”,
define. Aos 64 anos, não se intimida pelo computador: usa a tecnologia para
produzir e divulgar textos, além de se relacionar com outros escritores. A vasta experiência, a disponibilidade de tempo e o aporte
financeiro para custear as publicações estão entre as vantagens, segundo
Stephem, de escrever na terceira idade. Além de acadêmico da Academia
Vitoriense de Letras, Artes, e Ciência, da Academia de Letras do Brasil, o
autor é membro da União Brasileira de Escritores de Pernambuco.
ADMALDO MATOS
| 70 anos
“Eu me senti na obrigação de
documentar o meu tempo.”
Nascido em Gravatá, no Agreste pernambucano, Admaldo atuou como
vereador do Recife, auditor do Tesouro Estadual, professor e secretário, antes
de se tornar escritor. “Escrever é como construir edifícios. Primeiro, monto a estrutura na
mente. Depois, ergo paredes, instalo portas”, define o autor, que escreve os
primeiros rascunhos a caneta, em até três versões, antes de transcrever os
textos no computador. A máquina de escrever foi encostada há anos. Lança, no
próximo dia 22, ‘O penúltimo horizonte’, último volume de uma trilogia cujo
objetivo é documentar a história da sua geração. ‘Terras adormecidas’ e ‘Fronteiras
de chumbo’ foram os primeiros livros da sequência, centrada no recorte de tempo
entre a Segunda Guerra e a queda do Muro de Berlim. “Os personagens são
fictícios, mas os fatos são reais”, explica. Para ele, existem três maneiras de
documentar o tempo: como historiador, como escritor de memórias e como escritor de romances. “Escolhi a
terceira, porque não tenho o embasamento científico de um historiador, nem
acredito que as memórias pessoais atendam ao coletivo.” No mês passado, Admaldo
Matos - autor de 14 obras - foi eleito imortal na Academia Pernambucana de Letras,
onde ocupa agora a cadeira de número 12, que pertencia a Nelson Saldanha. Para
ele, o grande trunfo da maturidade é o distanciamento em relação aos fatos,
além da experiência. “Você já sabe como o passado termina.”
RACHEL
CARRILHO | 89 anos
“Enquanto eu tiver uma memória boa,
vou continuar a produzir.”
“É que meu marido não gostava que eu saísse de casa com
frequência.” Esta é a primeira frase de Rachel Carrilho ao tentar resgatar os
motivos que a levaram a se tornar escritora. Em casa, “matava” o tempo
escrevendo notas, crônicas, pensamentos. Registrava tudo a caneta, em papéis
que invariavelmente eram jogados na lixeira da cozinha. Ao ficar viúva,
descobriu nas gavetas do marido, Eymard Dantas Carrilho, todas as anotações
descartadas. “Ele as recolhia, desamassava e guardava. Aquilo me emocionou
demais”, recorda. Aos 80 anos, publicou o primeiro livro, ‘Na leveza do sonho’,
uma reunião de crônicas que, não fosse o marido, teriam sido desperdiçadas -
“foi um apanhado do que estava nas gavetas dele.” Depois, vieram ‘À sombra do
roseiral’, em 2008, ‘Enquanto a luz não se apaga’, em 2009, e ‘Quando os ventos
cantam madrigais’, em 2011. Hoje, escreve sempre no início da manhã ou no fim
do dia, quando a casa está tranquila. Usa papel e caneta para registrar as
ideias, depois as transcreve para o computador. “Aquela tela do computador não
me inspira nada.” Rachel, que escrevia pequenos versos desde a infância, diz
que a velhice lhe melhorou como pessoa e como escritora. “Se estivermos
atentos, a maturidade nos ensina lições todos os dias. Nos torna mais sábios,
mais tolerantes”, pondera. Diz que o objetivo é repassar conselhos, transmitir
“coisas boas” com seus livros, produzir uma “escrita leve.” No momento, tem um
livro de poesias em fase de conclusão, com o título provisório ‘Flor de espumas’,
que deve ser lançado no ano que vem. “Talvez eu lance em novembro, quando faço
90 anos. Por que não?”
ROSTAND
PARAÍSO | 85 anos
“Só com o tempo é que se tem
recordações e saudade do passado.”
Médico cardiologista, Rostand Paraíso publicou o primeiro livro
aos 63 anos, ‘Antes que o tempo apague’. Em algumas obras, resgata memórias
afetivas do passado, usando como pano de fundo cenários reais do Recife - a Rua
Nova, a esquina do Lafayette, além de hotéis e pensões locais. Membro da
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e da Academia
Pernambucana de Letras, Rostand credita à aposentadoria como professor o
ingresso na carreira literária. “Antes de me aposentar, vivia ocupado, dando
aulas e administrando minha clínica. Criei coragem para escrever depois que dei
entrevista sobre uma coleção de HQs. Passei a escrever crônicas inspiradas nos
quadrinhos, e não parei mais”, conta. “Me entusiasmei e decidi escrever sobre o
Recife da minha mocidade.” Seu último lançamento, ‘Toque de recolher’, foi
divulgado na Fenelivro, no mês passado. “Já sinaliza o que sinto agora: que
está na hora de parar”, explica o médico, que pretende, a partir de então, se
dedicar somente a reedições de antigas obras, como ‘Esses ingleses e O Recife’
e a ‘II Guerra Mundial’. Dos 15 livros publicados desde a década de 1990, 12
estão esgotados. Alguns rascunhos antigos foram escritos à máquina - “sou
datilógrafo” - mas é no computador que nascem os textos. “Tive que enfrentar a
tecnologia. Não entendo profundamente, mas abro a página em branco e começo a
escrever. Já escrevi a pena também”, recorda.
MARLY MOTA |
89 anos
“Minha escrita é só de memórias. E minha memória é
formidável.”
Escritora e artista plástica, viúva do também escritor Mauro Mota, Marly vai a
Gravatá todos os sábados, acompanhada do filho, onde faz as compras da semana e
reencontra amigas, busca inspirações. “Tenho uma velhice tão boa que nem me
lembro que sou velha”, brinca. É a mais velha entre os membros da Academia
Pernambucana de Letras. Adotou o hábito de escrever no computador no início dos
anos 2000. Agora, usa a máquina como um baú de memórias: deposita na tela todas
as recordações que lhe vêm à mente. “Sempre fui ligada às memórias, desde que
comecei a escrever”, lembra. Menciona o marido como principal incentivador de
um hábito que, secretamente, ela conservava desde a infância. Ganhou dele, nos
primeiros encontros, uma coleção de clássicos da literatura. “Me casei com um
intelectual, não tinha como não despertar meu interesse pela escrita.” Hoje, se
dedica a reeditar - com acréscimos - antigas obras, como ‘O mundo e o carrossel’
e ‘Além do jardim’. Escreve, diariamente, com o dicionário ao lado, em busca de
palavras que ainda não tenha usado nos quatro títulos já publicados. “Releio
sempre os meus diários, quando preciso de referências ou quando quero confirmar
detalhes das minhas memórias”, diz. “Tenho tudo anotado, toda a minha juventude
registrada. Eu vivi".
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Fonte: Diário de Pernambuco, edição do dia 18/10/2015. Título original: 'Na melhor idade, escritores pernambucanos se dedicam por completo à produção literária'.
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