quarta-feira, 28 de outubro de 2015

'Antes que o tempo apague'

Páginas das letras pernambucanas ou de como a 'literatura salva'.


Pátio de São Pedro - Recife 

Por Larissa Lins 
(Diário de Pernambuco) 

Um regime ditatorial militar, um punhado de histórias de amor, uma dúzia de paixões mal resolvidas, alguns filhos e netos, uma dezena de carimbos na carteira de trabalho, a substituição das máquinas Olivetti pelos computadores portáteis, a popularização da internet e o surgimento de livros digitais. Quantas experiências se pode viver e quantas mudanças se pode testemunhar em 60 anos? É nessa fase da vida, porta de entrada da terceira idade, que o acúmulo de memórias 
e o tempo livre propiciam o surgimento - ou a maior produtividade - de escritores. Eles reúnem memórias pessoais, documentam épocas e, em alguns casos, dão vazão a aptidões diferentes das vivenciadas, durante décadas, no campo de atuação profissional. Médicos, marinheiros, engenheiros e professores aposentados se transformam, ao primeiro título publicado, em escritores. 
“Deveriam ser até mais frequentes os autores mais velhos, pois já têm solidez, maturidade. O tempo vai consolidando o exercício da escrita, o estilo do escritor, ainda que o talento seja nato”, diz Fátima Quintas, presidente da Academia Pernambucana de Letras, onde todos os membros têm entre 47 (Antônio Campos) e 89 anos (Marly Mota). Para Fátima, com 71 anos e nove livros publicados, a idade oferece o respaldo necessário para que os autores ousem mais, além de maior disponibilidade para que se dediquem integralmente à escrita - “embora o mercado seja difícil, como é também para os mais jovens.” Em pesquisa realizada pela organização de caridade britânica Booktrust, em 2010, foi revelado que 31% dos entrevistados acima dos 60 anos têm vontade de publicar contos na web e se associar a clubes do livro. O ócio criativo e o desejo de eternizar o passado podem estar entre as principais motivações.


Para o escritor e cineasta Jomard Muniz de Britto - que se mantém ativo diante de uma Olivetti Tropical e cujos textos são transcritos para o computador por dois “assessores digitais” - o exercício literário na terceira idade é, na verdade, um processo de amadurecimento. “Ser velho não significa ser maduro. Eu mesmo vou morrer imaturo. Ser velho nada mais é do que ter a sorte de envelhecer sem envilecer, sem tornar-se vil”, dispara. Segundo relatório elaborado este ano pela ONG internacional HelpAge, 12,3% da população mundial tem hoje mais de 60 anos, o equivalente  a 901 milhões de pessoas. Em 2030, será 1,4 bilhão, e, em 2050, 2 bilhões. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até o fim do século será comum viver entre 100 e 120 anos - no início do século 20, a expectativa de vida era de apenas 40 anos. 
Além do mercado editorial em atual processo de recessão, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), é incapaz de absorver toda a demanda criativa - somente na editora pernambucana Bagaço são, pelo menos, 16 escritores ativos com esse perfil - não existem, no Brasil, incentivos públicos voltados especificamente à produção literária na terceira idade. Na Argentina, por outro lado, o governo portenho prevê a concessão de pensões a escritores com pelo menos 60 anos de idade e cinco títulos publicados, que vivam há mais de 15 anos em solo argentino. Os benefícios, instituídos em 2012, chegam a US$ 900 mensais, e são oferecidos a autores de ficção, poesia, ensaios literários e peças de teatro.


Entre todos os autores entrevistados pela reportagem, porém, as recompensas financeiras não são mencionadas como prioridade. Escrever atende à função de registro, caixa de recordações, hobby e até mesmo salvação - do tédio, do ócio, do esquecimento. “A literatura nos salva”, declara Fátima Quintas, que aos sete anos de idade já depositava alguns versos sob o travesseiro da mãe, hábito que ainda a inspira a escrever. “Envelhecer não envolve a pretensão de se tornar rico. Sou classe média, à moda antiga, sempre fui. Pode escrever aí: tenho mais ou menos 200 anos. Não preciso ser rico. Sou um sobrevivente”, finaliza Jomard. 


STEPHEM BELTRÃO | 64 anos 

“Escrevo sobre a vida de marinheiro, a boemia e os bares.”

Nascido em Vitória de Santo Antão, Stephem começou a escrever após três décadas de atuação como marinheiro. As experiências ao mar, a vida boêmia e as pessoas que encontrou no caminho estão entre as inspirações. Ingressou na Marinha do Brasil pela Escola de Aprendizes Marinheiros de Pernambuco, aos 17 anos. Na literatura, estreou em 2003, ao publicar o livro ‘Retratos do tempo’ - “motivado pelo fato de que a sociedade brasileira não conhece as atividades das Forças Armadas.” Em 2007, lançou ‘Vida de marinheiro’, no qual reúne relatos próprios e de outros quatro colegas sobre as atividades ao mar. “Aportei em vários estados do país, em outros continentes, também. Recolhi memórias”, sintetiza.  Antes dos sete livros já publicados, as experiências davam origem a músicas - Stephem Beltrão compôs mais de 100. “Minha motivação maior, como escritor e poeta, é a vida das pessoas. Seus costumes, sonhos, frustrações”, define. Aos 64 anos, não se intimida pelo computador: usa a tecnologia para produzir e divulgar textos, além de se relacionar com outros escritores. A vasta experiência, a disponibilidade de tempo e o aporte financeiro para custear as publicações estão entre as vantagens, segundo Stephem, de escrever na terceira idade. Além de acadêmico da Academia Vitoriense de Letras, Artes, e Ciência, da Academia de Letras do Brasil, o autor é membro da União Brasileira de Escritores de Pernambuco.


ADMALDO MATOS | 70 anos

“Eu me senti na obrigação de documentar o meu tempo.”

Nascido em Gravatá, no Agreste pernambucano, Admaldo atuou como vereador do Recife, auditor do Tesouro Estadual, professor e secretário, antes de se tornar escritor. “Escrever é como construir edifícios. Primeiro, monto a estrutura na mente. Depois, ergo paredes, instalo portas”, define o autor, que escreve os primeiros rascunhos a caneta, em até três versões, antes de transcrever os textos no computador. A máquina de escrever foi encostada há anos. Lança, no próximo dia 22, ‘O penúltimo horizonte’, último volume de uma trilogia cujo objetivo é documentar a história da sua geração. ‘Terras adormecidas’ e ‘Fronteiras de chumbo’ foram os primeiros livros da sequência, centrada no recorte de tempo entre a Segunda Guerra e a queda do Muro de Berlim. “Os personagens são fictícios, mas os fatos são reais”, explica. Para ele, existem três maneiras de documentar o tempo: como historiador, como escritor de memórias e como escritor de romances. “Escolhi a terceira, porque não tenho o embasamento científico de um historiador, nem acredito que as memórias pessoais atendam ao coletivo.” No mês passado, Admaldo Matos - autor de 14 obras - foi eleito imortal na Academia Pernambucana de Letras, onde ocupa agora a cadeira de número 12, que pertencia a Nelson Saldanha. Para ele, o grande trunfo da maturidade é o distanciamento em relação aos fatos, além da experiência. “Você já sabe como o passado termina.”


RACHEL CARRILHO | 89 anos 

“Enquanto eu tiver uma memória boa, vou continuar a produzir.”

“É que meu marido não gostava que eu saísse de casa com frequência.” Esta é a primeira frase de Rachel Carrilho ao tentar resgatar os motivos que a levaram a se tornar escritora. Em casa, “matava” o tempo escrevendo notas, crônicas, pensamentos. Registrava tudo a caneta, em papéis que invariavelmente eram jogados na lixeira da cozinha. Ao ficar viúva, descobriu nas gavetas do marido, Eymard Dantas Carrilho, todas as anotações descartadas. “Ele as recolhia, desamassava e guardava. Aquilo me emocionou demais”, recorda. Aos 80 anos, publicou o primeiro livro, ‘Na leveza do sonho’, uma reunião de crônicas que, não fosse o marido, teriam sido desperdiçadas - “foi um apanhado do que estava nas gavetas dele.” Depois, vieram ‘À sombra do roseiral’, em 2008, ‘Enquanto a luz não se apaga’, em 2009, e ‘Quando os ventos cantam madrigais’, em 2011. Hoje, escreve sempre no início da manhã ou no fim do dia, quando a casa está tranquila. Usa papel e caneta para registrar as ideias, depois as transcreve para o computador. “Aquela tela do computador não me inspira nada.” Rachel, que escrevia pequenos versos desde a infância, diz que a velhice lhe melhorou como pessoa e como escritora. “Se estivermos atentos, a maturidade nos ensina lições todos os dias. Nos torna mais sábios, mais tolerantes”, pondera. Diz que o objetivo é repassar conselhos, transmitir “coisas boas” com seus livros, produzir uma “escrita leve.” No momento, tem um livro de poesias em fase de conclusão, com o título provisório ‘Flor de espumas’, que deve ser lançado no ano que vem. “Talvez eu lance em novembro, quando faço 90 anos. Por que não?” 


ROSTAND PARAÍSO | 85 anos 

“Só com o tempo é que se tem recordações e saudade do passado.”

Médico cardiologista, Rostand Paraíso publicou o primeiro livro aos 63 anos, ‘Antes que o tempo apague’. Em algumas obras, resgata memórias afetivas do passado, usando como pano de fundo cenários reais do Recife - a Rua Nova, a esquina do Lafayette, além de hotéis e pensões locais. Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e da Academia Pernambucana de Letras, Rostand credita à aposentadoria como professor o ingresso na carreira literária. “Antes de me aposentar, vivia ocupado, dando aulas e administrando minha clínica. Criei coragem para escrever depois que dei entrevista sobre uma coleção de HQs. Passei a escrever crônicas inspiradas nos quadrinhos, e não parei mais”, conta. “Me entusiasmei e decidi escrever sobre o Recife da minha mocidade.” Seu último lançamento, ‘Toque de recolher’, foi divulgado na Fenelivro, no mês passado. “Já sinaliza o que sinto agora: que está na hora de parar”, explica o médico, que pretende, a partir de então, se dedicar somente a reedições de antigas obras, como ‘Esses ingleses e O Recife’ e a ‘II Guerra Mundial’. Dos 15 livros publicados desde a década de 1990, 12 estão esgotados. Alguns rascunhos antigos foram escritos à máquina - “sou datilógrafo” - mas é no computador que nascem os textos. “Tive que enfrentar a tecnologia. Não entendo profundamente, mas abro a página em branco e começo a escrever. Já escrevi a pena também”, recorda.


MARLY MOTA | 89 anos

“Minha escrita é só de memórias. E minha memória é formidável.”

Escritora e artista plástica, viúva do também escritor Mauro Mota, Marly vai a Gravatá todos os sábados, acompanhada do filho, onde faz as compras da semana e reencontra amigas, busca inspirações. “Tenho uma velhice tão boa que nem me lembro que sou velha”, brinca. É a mais velha entre os membros da Academia Pernambucana de Letras. Adotou o hábito de escrever no computador no início dos anos 2000. Agora, usa a máquina como um baú de memórias: deposita na tela todas as recordações que lhe vêm à mente. “Sempre fui ligada às memórias, desde que comecei a escrever”, lembra. Menciona o marido como principal incentivador de um hábito que, secretamente, ela conservava desde a infância. Ganhou dele, nos primeiros encontros, uma coleção de clássicos da literatura. “Me casei com um intelectual, não tinha como não despertar meu interesse pela escrita.” Hoje, se dedica a reeditar - com acréscimos - antigas obras, como ‘O mundo e o carrossel’ e ‘Além do jardim’. Escreve, diariamente, com o dicionário ao lado, em busca de palavras que ainda não tenha usado nos quatro títulos já publicados. “Releio sempre os meus diários, quando preciso de referências ou quando quero confirmar detalhes das minhas memórias”, diz. “Tenho tudo anotado, toda a minha juventude registrada. Eu vivi".
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Fonte: Diário de Pernambuco, edição do dia 18/10/2015. Título original: 'Na melhor idade, escritores pernambucanos se dedicam por completo à produção literária'. 






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