Sem a interrogação, esse é o título de um texto de Vladimir Safatle (USP), o qual lhe tem rendido questionamentos. Safatle trata do quadro musical brasileiro atual. Dentre os questionamentos, duas críticas lhe são dirigidas: "ser elitista" e "ignorar a autenticidade do popular". Pois bem, reproduzo o texto aí abaixo, e o subscrevo inteiramente - letra por letra, palavra por palavra. É de se rir de tais críticas, pela aplicação, por exemplo, de "esquemas histórico-sociológicos" toscos ao campo da cultura. E também por se confundir produto da 'indústria cultural' com manifestação popular autêntica. Diz Safatle que 'a música brasileira se transformou na trilha de fundo da literalidade dos nossos horizontes'. A conferir.
Por Vladimir Safatle
(Departamento de Filosofia - USP)
Em todos os
momentos em que teve desenvolvimento econômico, o Brasil soube acompanhá-lo de
explosão criativa em sua produção cultural, menos agora.
No interior de tais explosões, a música costumava desempenhar um
papel de alta relevância. A ideologia cultural nacional sempre foi, em larga
medida, uma ideologia musical. Ela aplicava assim, em pleno século 20, essa
estratégia política da formação dos Estados-nação no século 19, que consistia
em utilizar a música para a construção das "nacionalidades".
Como tivemos de esperar até 1930 para começar a deixar de sermos
um mero clube associativo de donos de fazendas para sermos algo mais próximo de
um país, foi a partir daí que a música brasileira passou à linha de frente do
debate cultural. A construção nacional de Villa-Lobos e das pesquisas musicais
de Mário de Andrade são exemplos paradigmáticos nesse sentido.
Na Europa do século 19, a junção entre Estado, nação e povo se
fez, entre outros meios, pela elevação da música à linguagem de construção do
espaço social e de reconciliação das populações como unidade.
Criou-se o folclore, instrumentos típicos, particularidades que,
muitas vezes, eram apenas variações estruturais de constantes globais. Assim, a
narrativa do povo que encontra seu solo e os afetos que o singularizam vinha
sob a forma do canto, deste mesmo canto que, já dizia Rousseau, era a forma da
primeira linguagem que nos deixaria mais próximos da origem e da autenticidade.
Que tenhamos apreendido cirurgicamente a nos orgulhar da música
brasileira como expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e
modos de pensar, como modelo de convivência possível entre camadas sociais
distintas e distantes (afinal, quando o samba fala alto tudo se mistura), é
algo que não deveríamos estranhar. Como vários outros, este país foi construído
a ferro, fogo e música.
No entanto, toda operação de ideologia cultural sempre produz mais
do que consegue controlar. Essa alta importância da música acabou por produzir
um sobreinvestimento. Mesmo que a música brasileira tenha se reduzido, em larga
medida, aos limites da canção (a forma musical por excelência de consolidação
de laços sociais devido a sua estereotipia formal e de fácil recognição), é
inegável que o Brasil, como alguns poucos outros países, soube extrair
genialidade de tais limites.
Que, nos anos 1970 e 1980, músicos populares tenham se
transformado em expoentes maiores da consciência crítica nacional, trazendo
para a esfera da alta circulação cultural aquilo que tinha a capacidade de
complexificar nossa imagem de país, de sociedade e de afetos, apenas demonstra
como toda construção de um solo e de um território acaba por ter de lidar com o
que procura nos levar para além de tal território. O desenvolvimento econômico
parecia levar a uma explosão cultural que tendia a complexificar as imagens
produzidas por nossa ideologia cultural.
Mas algo de peculiar ocorre a partir dos anos 1990, chegando a seu
ápice neste último decênio. A partir de certo momento, impera o movimento que
vai do É o Tchan, da era FHC, ao funk e sertanejo universitário do lulismo.
A despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas
décadas, é certo que elas conseguiram ser deslocadas para as margens, deixando
o centro da circulação completamente tomado por uma produção que louva a
simplicidade formal, a estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso
quando não é a pura louvação da inserção social conformada e conformista. A
música brasileira foi paulatinamente perdendo sua relevância, para se
transformar apenas na trilha de fundo da literalização de nossos horizontes.
Ultimamente, todas as vezes que se levanta a regressão da qual a
música brasileira é objeto se é acusado de elitista. Afinal, tais músicas
teriam vindo dos estratos mais pobres da população brasileira. O que se chora
seria, na verdade, o fim da dominância cultural da classe média urbana e o
advento das classes populares e das classes do "Brasil profundo".
Como se fosse o caso de aplicar um esquema tosco de luta de
classes ao campo da cultura. Para esses que escondem sua covardia crítica por
meio de tal exercício, lembraria da necessidade de desconstruir a farsa de um
"popular" que não traz problema algum para o dominante. Lembraria de
como não há arte proletária, cultura proletária, religião proletária, moral
proletária, Estado proletário, pois, como dizia Marx, os proletários são
aqueles que não têm religião, Estado, moral (e acrescentaria música, cultura).
Por isso, eles são a indicação do que ainda não tem forma nem imagem. Sendo
assim, em vez de aplicar esquemas sociológicos primários, melhor seria ouvirmos
de fato o que se produz e nos perguntarmos por que chegamos a esse ponto.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes do dia 09/10/2015.
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