Beethoven, por Julius Scmid |
Por Jaqueson Luiz Silva
Primeiro, uma gravidade de cordas que prenunciam algo de muito profundo.
Depois, como uma fala de instrumentos que imitam nossa respiração, a
clarividência de uma serenidade que só pode ser alcançada descendo à mais
silenciosa calma. Em sequência, cordas mais metálicas tomam o curso de um
movimento, como águas correndo por entre jardins suspensos elevados a alturas
extasiantes. Este não é um texto técnico sobre a música de Beethoven
(1770-1827), mas tão somente uma apreciação. O que interessa aqui é a escuta, o
silêncio e a alegria. Ou de como do coração do silêncio vem a alegria. Esta é
uma escuta do último movimento da Nona Sinfonia.
O silêncio aqui não se diz sobre a censura, a interdição, o calar-se em
açodamento. O silêncio aqui é o da escuta. Escutar enquanto atenção.
Porque do ouvir, originário do ouvido, pode ser apenas o aparelho do
corpo preparado para receber o som exterior. O ouvido que Beethoven fora
perdendo. O quarto movimento da Nona Sinfonia é a escuta que
fora ganhando do mundo e sua oferta a esse mesmo mundo de tudo que escutara em
seu silêncio.
Richard Wagner (1813-1883), no ensaio Beethoven (1870),
escrito na efeméride dos cem anos do nascimento do mestre, como ele o intitula,
afora o tom elogioso e outras questões e interesses do discurso que não vem ao
caso discutir aqui, estabelece, citando Schopenhauer (1788-1860), uma relação
entre o silêncio, a vontade e a fisiologia do sonho. Com isso, o também
compositor, empreende uma explicação da excepcionalidade da música de Beethoven
e mais precisamente do espanto que é a Nona Sinfonia, quando até
então, nenhum músico havia feito com que sentíssemos tanto horror e tormento do
mundo. Segundo o autor:
Quanto mais ele
perdia contato com o mundo exterior, mais puro se tornava o olhar que dirigia
ao seu próprio mundo. Quanto mais familiarizado se sente com as grandes
reservas de sua riqueza interior, mas consciente são suas exigências em relação
ao mundo exterior (p. 49-50) *.
Em outro ponto:
Mas nós conhecemos o
vidente que fica cego. Tirésias, para quem o mundo da aparência se fechou, e
que começa a perceber com sua visão interior o que há realmente no fundo de
toda aparência. É a ele que se parece agora o músico que ensurdeceu. Quando o
ruído da vida não o perturba mais, ele só ouve as harmonias do seu mundo
interior, e é unicamente do fundo do seu abismo que ele ainda fala a um mundo
que já não tem nada para lhe dizer (p.51).
Não apenas a música, mas a poesia escuta o silêncio das coisas, assim como o
sonho. Beethoven, no seu silêncio, mergulhou no mais profundo estado físico do
sonho e daí revela o espírito das coisas, o seu fenômeno, segundo Wagner. Para
ele, apenas Shakespeare havia chegado em tamanha clarividência das coisas. Por
isso a Ode à alegria, em versos como Teu encanto une de
novo/O que o rigor separou, talvez seja a visão de Beethoven do que
escutara no poema homônimo de Friedrich Schiller (1759-1805). Este movimento
seria a própria visão da alegria.
A alegria que, a partir de sua etimologia latina alacritas,
pode ter seu sentido desdobrado em vivacidade, ardor, atitude, ação e
consciência de estar vivo e em estado permanente de criação. Também entusiasmo:
ter a divindade em si mesmo. Ou seja, estar alegre é estar vivo no próprio
corpo e isso apenas é possível estando no próprio corpo, escutando seu abismo,
em silêncio.
Talvez seja isso o que podemos saber da alegria e de como estar
alegres a partir do silêncio de Beethoven. Como experiência para uma alegria, é
preciso escutar o silêncio, muito mais que ouvi-lo. A alegria silenciosa de
Beethoven é essa meditação. Por isso é preciso ouvi-la e escutá-la sempre.
*WAGNER,
Richard. Beethoven. Tradução de Theodemiro Tostes. Porto Alegre: L&PM, 1987.
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Fonte: http://obviousmag.org/
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