segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Destinos são construções geométricas que atam metáforas e vidas


Ensinava Sêneca que a deprimente tristeza e a angustiante desorientação não decorrem de se estar só, na solidão, mas resultam, sim, do sentimento de vazio interno. Que pode ser reflexo de realidade externa ou ‘sentimento incontornável’. Daí tem-se que se pode sentir isolado, sem ninguém, em plena multidão ou mesmo estando-se integrado a uma família – como esposo, esposa, filho, filha, etc. Mutatis mutantis, estamos perante a problemática da socialização e as suas derivações. As posições não assumidas. O brado arrogante de “verdades momentâneas” (falsas) que isolam os indivíduos para todo o sempre – aquela cena do finalzinho da vida em que a pessoa olha para um lado e para outro e percebe que construiu uma ilha de isolamento existencial, não tendo ninguém para dividir as palavras derradeiras. Em ‘O Trem dos Órfãos’, Christina Baker Kline deixa sugerido que órfão não é apenas aquele não tem pai ou mãe. Órfãos são também esses outros. Ressaltando bem: “O destino pode ser definido como um emaranhado de estradas. Invariavelmente, é uma que vai. Outra que vem. Uma que as corta transversalmente ao meio. Mais outra que sabe-se lá aonde vai dar. E outras...e outras...e muitas outras. Destino são mapas rodoviários. Todavia, embora possuam seus mistérios, segredos e aparentemente infinitos caminhos, todas as estradas possuem início e fim.”  A aprender: “destinos [até ocultos, muitas vezes] são construções geométricas que atam metáforas e vidas”. A propósito, vale a pena conferir o texto aí abaixo. 


 

Por Profeta do Arauto

“O trem dos órfãos”, livro escrito por Christina Backer Kline, é permeado de histórias reais que ocorreram entre 1854 e 1929 nos EUA. Em seu interior não viajava ninguém, cuja geometria de vida, não fosse determinada pela própria sorte. E, invariavelmente, regidas pelas boas ou más oportunidades. Mas para desvendar o bom do ruim, o viajante teria que ser perceptivo o suficiente para diferenciar um do outro. Missão nada fácil, porque em certos casos e situações, a inocência era maior do que as malícias advindas das experiências de vida.
“O trem dos órfãos” viajando pelas estradas da vida, traça as curvas, as parábolas, as tangentes e as retas paralelas dos destinos. E se não faltar o combustível da perseverança e do amor, em algum momento, os destinos e as vidas se encontram nos entroncamentos da felicidade.
Perante o conceito imposto pelos dicionários e racionalizado pela sociedade, órfão é aquela pessoa que perde o vínculo familiar consanguíneo, ficando sozinho ao léu num mundo sombrio. Porém, pensando pelo lado humano e cristão, a orfandade é bem mais abrangente do que o simples conceito que impõem à palavra, socialmente; e pode adquirir os significados: órfão é o fraco que se defende mirando nos olhos do agressor, tentando entender porque foi vítima de seus embrutecidos maus tratos. É aquela criança que, apesar de possuir um lar, vaga pelas ruas descalça, esmolando por migalhas de pães e restos de comida.
É a velhice resumida às casas de repouso, lar de idosos, ao isolamento do asilo, ao desprezo da família. É doar amor, sentimento, emoção e receber em troca a ingratidão. São os indigentes que dormem enrolados um no outro, para aquecerem-se da invernada rigorosa. É aquele que, embora vista por fora grossos e valiosos ternos de linho, calce sapatos impecavelmente lustrados, interiormente, por dentro, remói a perda do amor, o qual dedicou boa parte de sua vida. A orfandade, portanto, vive à solta sob o implacável silêncio, é invisível, não manda recado e apodera-se de qualquer um, em qualquer época e funestamente, pode representar a depressão social moderna.
Vany, senhora de posses, que resistiu heroicamente o tempo, chegando aos noventa e um anos com uma memória assombrosa, que sorria ironicamente das tormentas e tempestades, por quais passou. Tornou-se tão rígida e ao mesmo sensível, que ainda se perguntava, questionava e refletia sobre aonde o entra e sai infernal da estrada, iniciada por volta de 1920, na Irlanda, ainda poderia lhe levar.
- Estradas assinalam os destinos. Não sei e nem importa-me saber se já passei de sua metade; porém, como o fim não chegou, toco a vida pra frente; e enquanto possuo fôlego, tudo pode acontecer.
Luly: piercing em formato de argola no nariz; duas bolas metálicas nas orelhas; cabelos vermelhos esvoaçantes; celular na mão; notebook na mochila; fissurada em games e jogos de computador; roupas extravagantes e espalhafatosas no corpo. Rebelde em fase de formação: quinze anos, se muito. Como uma grande quantidade de adolescentes de sua idade nos dias de hoje, vai vivendo por viver e para distrair-se, correndo sério risco de meter a cabeça contra os postes, árvores ou qualquer outro objeto, não desprega os olhos da tela do celular. De vez e sempre, senta em um banco de praça e voada para lá de Marte ou trasladada para dentro de si, enrola e examina as pontas dos fios de cabelo. Em transe quase que absoluto, seus pensamentos divagam entre os pequenos erros e as futilidades cotidianas: “parecem ressecados e queimados.
Quando acorda para a realidade: "Sentir-se órfão, é muito diferente, bem mais do que simplesmente ser órfão, e a família de modo geral, jamais entenderá esta minha oculta verdade!”.
Poucos sonhos, talvez, por lhe faltar oportunidades; no entanto, por mais obstáculos e dificuldades que tenha encontrado em sua estrada, nada se compara as estradas passadas por Vany.
- Para mim, certas estradas possuem meio. Indiferente aos meios, quando os destinos são comparados as estradas, o que importa é o entroncamento de parada obrigatória. Para tanto, existe uma lei na geometria espacial que diz que duas retas se encontram no infinito. Vá por onde for, passem por onde passem; se não se encontrarem antes, duas retas se encontram no centro da Terra.
Pela lei da gravidade, tudo tende ao centro da Terra. E pela lei universal terrena, quando se faz com correção a tarefa, tudo tende a dar certo. Levada pelos destinos, esta é a lei imutável. Soberana! Partindo deste pressuposto físico/humano, Vany e Luly possuem algo em comum: são órfãs. Vany totalmente órfã e Luly parcialmente, pois foi adotada e possui um lar, sob o qual, não se sente totalmente acolhida.
O trem partiu com aproximadamente duzentas crianças. Depois de presenciar o incêndio que varreu, devassou o casebre onde moravam, Vany correu para dentro dele. Por pior que fosse a estrada por qual passasse, seria melhor que continuar inalando o cheiro de carne incinerada de seu pai. Primeira parada. Um grande cartaz afixado à pilastra de uma da estação anunciava: “Venham, Venham! “O trem dos órfãos” chegará por volta das 9 horas trazendo o seu futuro filho. Virá com crianças recém-nascidas até adolescentes. Venha e garanta o seu. Desde já, todos nós seremos gratos”! Vany embaralhava as letras nas palavras e palavras nas frases, de modo que pouco ou nada entendera, mas sabia do que se tratava. O leilão de crianças seria inevitável.
Senhoras e senhores observavam o desfile dos infantis quase indigentes. Um maior, outro menor. Outro que chora pela chupeta. Todos os receptores de órfãos sabiam que quanto mais novo fosse a criatura, mais trabalho e despesas daria; motivo das coisas conspirarem a favor de Vany. Pelo menos neste sórdido quesito, levava vantagem.
- Ela possui dom para cuidar de casa; mãos ágeis para costurar; paciência para brincar com crianças? Ficaremos com ela para testes e se aprovada, receberá o sobrenome de nossa família.
Como um pedaço de papel higiênico cortado, que se usa quando e como querem, descartando-o em qualquer cesto, Vany espremia-se, acotovela-se no banco traseiro do carro. E fora a agonia de chegar para conferir visualmente o que tinham para lhe oferecer, era lata de sardinha que seguia pelos mistérios da estrada. Chegam e sem maiores porquês, uma pia de louça o esperava na cozinha. Tempo cronometrado para lavagem e após o término, seria apresentada à feitora da fábrica de tecelagem. Entre furos nos dedos e na palma das mãos, fim de linha naquela casa para a adolescente.
Segunda tentativa. Uma família composta por dois adultos e um amontoado de crianças, incluindo duas de colo. Desdobra-se para dar conta das tarefas de casa; cuidar das crianças; alimentar os animais. Atarefada, não lhe sobrava tempo para ir à escola que é uma das exigências dos dirigentes do “Trem dos órfãos”. Esgotada devido o trabalho intenso, ia resistindo. Dormindo amontoada com as demais crianças, a gota d`água foi ao acordar e sentir seu corpo molhado pela urina das crianças. Pegou os pertences que não possuía e sem bater com a língua nos dentes, na madrugada seguinte fugiu de casa; indo dormir numa escola em que estudou. Caminhava pelas alamedas acompanhada por uma estupenda noite de lua solvatada pelas estrelas; porém quando estirou o corpo sobre uma cama áspera de concreto, descobriu que estava gélida demais. Abraçar-se em quê? Puxar sobre si o quê? Feito um cão à beira do borralho e enfiado nas cinzas, enrolou em si mesma.
Vany é encaminhada a uma família conhecida da Diretora. Trato, se não fino, menos grosseiro; e a obrigatoriedade de ir à escola. Ares que mudam. Trabalhos diversificados, até gerencia da loja dos novos pais. Até que enfim conseguiu uns traços geométricos menos tortuosos. Dividindo os caminhos, ela casa-se. A independência caminha bem, até que seu marido é convocado para a guerra e por lá fica. Se não a tivesse dado após o parto para duas mãos que desconhecia, a filha seria a recordação mais próxima e real dele.
Luly comete um pequeno delito e precisa pagar a pena com trabalho social ou ir para o reformatório. Vaga desnorteada pela cidade procurando alguém que pudesse aceitá-la, pelo menos até pagar o montante de horas estabelecida pela Assistência Social. E a pessoa indicada para auxiliá-la é o seu amigo/paquera que, através de sua mãe que é empregada e administradora na casa de Vany, ficou sabendo que a patroa estava procurando alguém para limpar o porão.
Intermediado pela mãe de seu namorado, Luly inicia a limpeza do porão. Um pedido inquestionável da senhora é que, sempre que a adolescente retirasse um arquivo ou algo que o valha das prateleiras, ficaria ela incumbida de dizer o que havia dentro da caixa e a natureza do produto. Em virtude desta interatividade, as duas passaram a se entender tão bem, que causava ciúmes e desconfortos à governanta. E para descontrair, a velha da modorrenta monotonia diária e a adolescente do trabalho forçado de limpar e reagrupar os arquivos empoeirados num porão embolorado e fétido, tanto uma quanto outra, passavam horas e horas confabulando sobre as estradas pelas quais passaram para chegar onde estão. Indiscutivelmente, quem mais ouvia era a moça, e levada pela curiosidade e certa coincidência, logo-logo saberia tudo sobre a idosa; sobretudo, porque suas mãos mexiam e remexiam os arquivos órfãos, tanto do passado, como do presente, de Vany.
Intuitivamente, contudo, a idosa nutria profundo e sábio pressentimento que Luly não estava ali somente para limpar o seu porão em pagamento da dívida contraída com a sociedade. Para ela, havia algo mais complexo e útil por trás daquela moça, falsamente declarada como rebelde e arredia. A resistência, a irrelevância e a indiferença são os antídotos para a rejeição; e este foi o lema que a rebelde adolescente, às vezes, adotava. Sua convivência com o pai era plenamente aceitável e até certo ponto, relevante, mas o mesmo não acontecia entre ela e sua mãe; que pressionava implacavelmente o marido para dar um jeito à situação fatigante entre as duas.
Às furtivas, Luly sempre ouvia os arranca-rabos entre os dois, até que numa noite em que os lampiões fizeram greve, juntou suas coisas e saiu sem destino. Isolada, sozinha pelas ruas mal iluminadas, parecendo retornar ao estágio da caça ao tesouro de dias atrás. Como cão sem dono, farejando os becos e labirintos disponíveis, perambulava a deus dará pela cidade à procura de uma palavra que pudesse iluminar seus devaneios.
Passava das 23 horas, quando partira para o tudo ou nada. Mesmo receosa com o que poderia acontecer e o despropósito do telefonema fora de hora, discou os números do telefone fixo de Vany. Tocou uma, duas, três e nada. Quando ia desistir, ouviu um “alô” embargado do outro lado. E antes que se delongasse em perguntas e respostas o papo, disse que estava em sua porta e o que ela poderia fazer para ajuda-la. A idosa tremia de incredulidade.
Imediatamente olhou pelo olho mágico e notou a presença de Luly. Abriu a porta para que a adolescente entrasse. Naquela noite, confabulando os sentimentos que não podem ser ditos sob a luz solar, foram dormir altas horas da madrugada. E em virtude dos segredos revelados, a adolescente firmara um compromisso com ela de vasculhar as redes sociais à procura de sua filha. Mais uns dias se passaram, quando Vany leu para Luly um e-mail enviado pela filha: “Eu sempre me perguntei sobre você. Tinha perdido as esperanças de descobrir que você é e por que me deu para adoção”. E os três: a adolescente, a senhora e o namorado de Luly, que recebera a permissão para adentrar à casa e participar da nova família, sorriram de contentamento.
Tudo estava devidamente preparado, desde os retoques nas paredes e melhoria geral da casa, até o enchimento das prateleiras e gavetas da geladeira. A filha Sarah, o genro e a neta Becca acabam de descer do carro. Com muita dificuldade, Vany vai ao encontro dos mais recentes membros da família. Estupefata e muda de voz pelos dez braços que se enlaçaram por cerca de oito minutos de uma só vez, ela encara os olhos de avelã da neta e por fim, balbucia:
- E então? Por onde devemos começar?
O emaranhado de traços cruzam os destinos dos corações que, veladamente, silenciosamente, sofrem os ataques das dores. Em compensação, para alívio das coronárias, o mesmo emaranhado de traços aproximam os lacrimosos, festivos e calorosos pulsares dos corações em demorados abraços. E a moral da história é: ingerindo pequenas dosagens de paciência e perseverança diariamente, a vida torna-se uma redação com início, Meio e imprevisível fim. A vida é uma estrada enredada pelas emoções, pelas quais transitam somente os corajosos e desafiadores da própria sorte sem Fim!
------------------------------------------
Fonte: http://obviousmag.org/

            

Nenhum comentário:

Postar um comentário