Ensinava Sêneca que a
deprimente tristeza e a angustiante desorientação não decorrem de se estar só,
na solidão, mas resultam, sim, do sentimento de vazio interno. Que pode ser
reflexo de realidade externa ou ‘sentimento incontornável’. Daí tem-se que se
pode sentir isolado, sem ninguém, em plena multidão ou mesmo estando-se
integrado a uma família – como esposo, esposa, filho, filha, etc. Mutatis mutantis, estamos perante a
problemática da socialização e as suas derivações. As posições não assumidas. O brado arrogante de “verdades momentâneas” (falsas) que isolam os indivíduos para todo o sempre – aquela cena do finalzinho da vida em que a
pessoa olha para um lado e para outro e percebe que construiu uma ilha de
isolamento existencial, não tendo ninguém para dividir as palavras derradeiras. Em ‘O Trem
dos Órfãos’, Christina Baker Kline deixa sugerido que órfão não é apenas
aquele não tem pai ou mãe. Órfãos são também esses outros. Ressaltando bem: “O destino pode ser definido como um emaranhado de estradas.
Invariavelmente, é uma que vai. Outra que vem. Uma que as corta
transversalmente ao meio. Mais outra que sabe-se lá aonde vai dar. E outras...e
outras...e muitas outras. Destino são mapas rodoviários. Todavia, embora
possuam seus mistérios, segredos e aparentemente infinitos caminhos, todas as
estradas possuem início e fim.” A
aprender: “destinos [até ocultos, muitas vezes] são construções geométricas que
atam metáforas e vidas”. A propósito, vale a pena conferir o texto aí abaixo.
Por Profeta do Arauto
“O trem dos órfãos”, livro escrito por Christina Backer
Kline, é permeado de histórias reais que ocorreram entre 1854 e 1929 nos EUA.
Em seu interior não viajava ninguém, cuja geometria de vida, não fosse
determinada pela própria sorte. E, invariavelmente, regidas pelas boas ou más
oportunidades. Mas para desvendar o bom do ruim, o viajante teria que ser
perceptivo o suficiente para diferenciar um do outro. Missão nada fácil, porque
em certos casos e situações, a inocência era maior do que as malícias advindas
das experiências de vida.
“O trem dos órfãos” viajando pelas estradas da vida,
traça as curvas, as parábolas, as tangentes e as retas paralelas dos destinos.
E se não faltar o combustível da perseverança e do amor, em algum momento, os
destinos e as vidas se encontram nos entroncamentos da felicidade.
Perante
o conceito imposto pelos dicionários e racionalizado pela sociedade, órfão é
aquela pessoa que perde o vínculo familiar consanguíneo, ficando sozinho ao léu
num mundo sombrio. Porém, pensando pelo lado humano e cristão, a orfandade é
bem mais abrangente do que o simples conceito que impõem à palavra,
socialmente; e pode adquirir os significados: órfão é o fraco que se defende
mirando nos olhos do agressor, tentando entender porque foi vítima de seus
embrutecidos maus tratos. É aquela criança que, apesar de possuir um lar, vaga
pelas ruas descalça, esmolando por migalhas de pães e restos de comida.
É a velhice resumida às casas de repouso, lar de
idosos, ao isolamento do asilo, ao desprezo da família. É doar amor, sentimento,
emoção e receber em troca a ingratidão. São os indigentes que dormem enrolados
um no outro, para aquecerem-se da invernada rigorosa. É aquele que, embora
vista por fora grossos e valiosos ternos de linho, calce sapatos impecavelmente
lustrados, interiormente, por dentro, remói a perda do amor, o qual dedicou boa
parte de sua vida. A orfandade, portanto, vive à solta sob o implacável
silêncio, é invisível, não manda recado e apodera-se de qualquer um, em
qualquer época e funestamente, pode representar a depressão social moderna.
Vany, senhora de posses, que resistiu heroicamente o tempo, chegando aos noventa e um anos com uma memória assombrosa, que sorria ironicamente das tormentas e tempestades, por quais passou. Tornou-se tão rígida e ao mesmo sensível, que ainda se perguntava, questionava e refletia sobre aonde o entra e sai infernal da estrada, iniciada por volta de 1920, na Irlanda, ainda poderia lhe levar.
Vany, senhora de posses, que resistiu heroicamente o tempo, chegando aos noventa e um anos com uma memória assombrosa, que sorria ironicamente das tormentas e tempestades, por quais passou. Tornou-se tão rígida e ao mesmo sensível, que ainda se perguntava, questionava e refletia sobre aonde o entra e sai infernal da estrada, iniciada por volta de 1920, na Irlanda, ainda poderia lhe levar.
-
Estradas assinalam os destinos. Não sei e nem importa-me saber se já passei de
sua metade; porém, como o fim não chegou, toco a vida pra frente; e enquanto
possuo fôlego, tudo pode acontecer.
Luly:
piercing em formato de argola no nariz; duas bolas metálicas nas orelhas;
cabelos vermelhos esvoaçantes; celular na mão; notebook na mochila; fissurada
em games e jogos de computador; roupas extravagantes e espalhafatosas no corpo.
Rebelde em fase de formação: quinze anos, se muito. Como uma grande quantidade
de adolescentes de sua idade nos dias de hoje, vai vivendo por viver e para
distrair-se, correndo sério risco de meter a cabeça contra os postes, árvores
ou qualquer outro objeto, não desprega os olhos da tela do celular. De vez e sempre,
senta em um banco de praça e voada para lá de Marte ou trasladada para dentro
de si, enrola e examina as pontas dos fios de cabelo. Em transe quase que
absoluto, seus pensamentos divagam entre os pequenos erros e as futilidades
cotidianas: “parecem ressecados e queimados.
Quando
acorda para a realidade: "Sentir-se órfão, é muito diferente, bem
mais do que simplesmente ser órfão, e a família de modo geral, jamais entenderá
esta minha oculta verdade!”.
Poucos
sonhos, talvez, por lhe faltar oportunidades; no entanto, por mais obstáculos e
dificuldades que tenha encontrado em sua estrada, nada se compara as estradas
passadas por Vany.
-
Para mim, certas estradas possuem meio. Indiferente aos meios, quando os
destinos são comparados as estradas, o que importa é o entroncamento de parada
obrigatória. Para tanto, existe uma lei na geometria espacial que diz que duas
retas se encontram no infinito. Vá por onde for, passem por onde passem; se não
se encontrarem antes, duas retas se encontram no centro da Terra.
Pela
lei da gravidade, tudo tende ao centro da Terra. E pela lei universal terrena,
quando se faz com correção a tarefa, tudo tende a dar certo. Levada pelos
destinos, esta é a lei imutável. Soberana! Partindo deste pressuposto
físico/humano, Vany e Luly possuem algo em comum: são órfãs. Vany totalmente
órfã e Luly parcialmente, pois foi adotada e possui um lar, sob o qual, não se
sente totalmente acolhida.
O
trem partiu com aproximadamente duzentas crianças. Depois de presenciar o
incêndio que varreu, devassou o casebre onde moravam, Vany correu para dentro
dele. Por pior que fosse a estrada por qual passasse, seria melhor que
continuar inalando o cheiro de carne incinerada de seu pai. Primeira parada. Um
grande cartaz afixado à pilastra de uma da estação anunciava: “Venham, Venham!
“O trem dos órfãos” chegará por volta das 9 horas trazendo o seu futuro filho.
Virá com crianças recém-nascidas até adolescentes. Venha e garanta o seu. Desde
já, todos nós seremos gratos”! Vany embaralhava as letras nas palavras e
palavras nas frases, de modo que pouco ou nada entendera, mas sabia do que se
tratava. O leilão de crianças seria inevitável.
Senhoras
e senhores observavam o desfile dos infantis quase indigentes. Um maior, outro
menor. Outro que chora pela chupeta. Todos os receptores de órfãos sabiam que
quanto mais novo fosse a criatura, mais trabalho e despesas daria; motivo das
coisas conspirarem a favor de Vany. Pelo menos neste sórdido quesito, levava vantagem.
-
Ela possui dom para cuidar de casa; mãos ágeis para costurar; paciência para
brincar com crianças? Ficaremos com ela para testes e se aprovada, receberá o
sobrenome de nossa família.
Como
um pedaço de papel higiênico cortado, que se usa quando e como querem,
descartando-o em qualquer cesto, Vany espremia-se, acotovela-se no banco
traseiro do carro. E fora a agonia de chegar para conferir visualmente o que
tinham para lhe oferecer, era lata de sardinha que seguia pelos mistérios da
estrada. Chegam e sem maiores porquês, uma pia de louça o esperava na cozinha.
Tempo cronometrado para lavagem e após o término, seria apresentada à feitora
da fábrica de tecelagem. Entre furos nos dedos e na palma das mãos, fim de
linha naquela casa para a adolescente.
Segunda
tentativa. Uma família composta por dois adultos e um amontoado de crianças,
incluindo duas de colo. Desdobra-se para dar conta das tarefas de casa; cuidar
das crianças; alimentar os animais. Atarefada, não lhe sobrava tempo para ir à
escola que é uma das exigências dos dirigentes do “Trem dos órfãos”. Esgotada
devido o trabalho intenso, ia resistindo. Dormindo amontoada com as demais
crianças, a gota d`água foi ao acordar e sentir seu corpo molhado pela urina
das crianças. Pegou os pertences que não possuía e sem bater com a língua nos
dentes, na madrugada seguinte fugiu de casa; indo dormir numa escola em que
estudou. Caminhava pelas alamedas acompanhada por uma estupenda noite de lua
solvatada pelas estrelas; porém quando estirou o corpo sobre uma cama áspera de
concreto, descobriu que estava gélida demais. Abraçar-se em quê? Puxar sobre si
o quê? Feito um cão à beira do borralho e enfiado nas cinzas, enrolou em si
mesma.
Vany
é encaminhada a uma família conhecida da Diretora. Trato, se não fino, menos
grosseiro; e a obrigatoriedade de ir à escola. Ares que mudam. Trabalhos
diversificados, até gerencia da loja dos novos pais. Até que enfim conseguiu
uns traços geométricos menos tortuosos. Dividindo os caminhos, ela casa-se. A
independência caminha bem, até que seu marido é convocado para a guerra e por
lá fica. Se não a tivesse dado após o parto para duas mãos que desconhecia, a
filha seria a recordação mais próxima e real dele.
Luly
comete um pequeno delito e precisa pagar a pena com trabalho social ou ir para
o reformatório. Vaga desnorteada pela cidade procurando alguém que pudesse
aceitá-la, pelo menos até pagar o montante de horas estabelecida pela
Assistência Social. E a pessoa indicada para auxiliá-la é o seu amigo/paquera
que, através de sua mãe que é empregada e administradora na casa de Vany, ficou
sabendo que a patroa estava procurando alguém para limpar o porão.
Intermediado
pela mãe de seu namorado, Luly inicia a limpeza do porão. Um pedido
inquestionável da senhora é que, sempre que a adolescente retirasse um arquivo
ou algo que o valha das prateleiras, ficaria ela incumbida de dizer o que havia
dentro da caixa e a natureza do produto. Em virtude desta interatividade, as
duas passaram a se entender tão bem, que causava ciúmes e desconfortos à
governanta. E para descontrair, a velha da modorrenta monotonia diária e a
adolescente do trabalho forçado de limpar e reagrupar os arquivos empoeirados
num porão embolorado e fétido, tanto uma quanto outra, passavam horas e horas
confabulando sobre as estradas pelas quais passaram para chegar onde estão.
Indiscutivelmente, quem mais ouvia era a moça, e levada pela curiosidade e certa
coincidência, logo-logo saberia tudo sobre a idosa; sobretudo, porque suas mãos
mexiam e remexiam os arquivos órfãos, tanto do passado, como do presente, de
Vany.
Intuitivamente,
contudo, a idosa nutria profundo e sábio pressentimento que Luly não estava ali
somente para limpar o seu porão em pagamento da dívida contraída com a
sociedade. Para ela, havia algo mais complexo e útil por trás daquela moça,
falsamente declarada como rebelde e arredia. A resistência, a irrelevância e a
indiferença são os antídotos para a rejeição; e este foi o lema que a rebelde
adolescente, às vezes, adotava. Sua convivência com o pai era plenamente
aceitável e até certo ponto, relevante, mas o mesmo não acontecia entre ela e
sua mãe; que pressionava implacavelmente o marido para dar um jeito à situação
fatigante entre as duas.
Às
furtivas, Luly sempre ouvia os arranca-rabos entre os dois, até que numa noite
em que os lampiões fizeram greve, juntou suas coisas e saiu sem destino.
Isolada, sozinha pelas ruas mal iluminadas, parecendo retornar ao estágio da
caça ao tesouro de dias atrás. Como cão sem dono, farejando os becos e
labirintos disponíveis, perambulava a deus dará pela cidade à procura de uma
palavra que pudesse iluminar seus devaneios.
Passava
das 23 horas, quando partira para o tudo ou nada. Mesmo receosa com o que
poderia acontecer e o despropósito do telefonema fora de hora, discou os
números do telefone fixo de Vany. Tocou uma, duas, três e nada. Quando ia
desistir, ouviu um “alô” embargado do outro lado. E antes que se delongasse em
perguntas e respostas o papo, disse que estava em sua porta e o que ela poderia
fazer para ajuda-la. A idosa tremia de incredulidade.
Imediatamente
olhou pelo olho mágico e notou a presença de Luly. Abriu a porta para que a
adolescente entrasse. Naquela noite, confabulando os sentimentos que não podem
ser ditos sob a luz solar, foram dormir altas horas da madrugada. E em virtude
dos segredos revelados, a adolescente firmara um compromisso com ela de
vasculhar as redes sociais à procura de sua filha. Mais uns dias se passaram,
quando Vany leu para Luly um e-mail enviado pela filha: “Eu sempre me perguntei
sobre você. Tinha perdido as esperanças de descobrir que você é e por que me
deu para adoção”. E os três: a adolescente, a senhora e o namorado de Luly, que
recebera a permissão para adentrar à casa e participar da nova família,
sorriram de contentamento.
Tudo
estava devidamente preparado, desde os retoques nas paredes e melhoria geral da
casa, até o enchimento das prateleiras e gavetas da geladeira. A filha Sarah, o
genro e a neta Becca acabam de descer do carro. Com muita dificuldade, Vany vai
ao encontro dos mais recentes membros da família. Estupefata e muda de voz
pelos dez braços que se enlaçaram por cerca de oito minutos de uma só vez, ela
encara os olhos de avelã da neta e por fim, balbucia:
-
E então? Por onde devemos começar?
O
emaranhado de traços cruzam os destinos dos corações que, veladamente,
silenciosamente, sofrem os ataques das dores. Em compensação, para alívio das coronárias,
o mesmo emaranhado de traços aproximam os lacrimosos, festivos e calorosos
pulsares dos corações em demorados abraços. E a moral da história é: ingerindo
pequenas dosagens de paciência e perseverança diariamente, a vida torna-se uma
redação com início, Meio e imprevisível fim. A vida é uma estrada enredada
pelas emoções, pelas quais transitam somente os corajosos e desafiadores da
própria sorte sem Fim!
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Fonte: http://obviousmag.org/
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