A minha geração, não poucas vezes, ouviu o eco do brado segundo o qual, 'na política, importa [ter] os objetivos; no amor, o movimento'. Hoje isso está muito, muito confuso. Os acontecimentos que temos estado a testemunhar (não só no plano nacional) desmoralizam as exclamações - a cada dia surge algo novo que faz com que o "espanto" do dia anterior perda o sentido. O circo no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, as estripulias dos "idiotas da objetividade" e a carta do vice-presidente brasileiro fazendo pouso entre o tango e o bolero - sim, aqueles gêneros em que, como anotou a Folha em Editorial, o artista, a dada altura, interrompe o canto e passa à declamação da letra a meia-voz em tom do confidência. No segundo caso, a situação tem resvalado frequentemente para uma espécie de "publicismo epistolar" em que se dosam análises e ações tendo por base a "política da pornografia", que, como tal, consubstancia a "pornografia da política". A propósito, vale a pena ler o texto aí abaixo do cientista político Cláudio Gonçalves Couto.
Por Cláudio Gonçalves
Couto
(Fundação Getúlio Vargas e Pesquisador do CNPq)
Verificando
em nossos mais prestigiosos dicionários o sentido do termo “pornografia”, encontramos
uma certa variação de definições. Uma, comum a quase todos, é a de “estudo da
prostituição”. Nesse sentido, a pornografia seria se não uma ciência, um campo
de saber como qualquer outro, no âmbito das humanidades.
De
forma mais específica, o Aurélio a define como “tudo o que se relaciona à
devassidão sexual; obscenidade, licenciosidade; indecência”. O Michaelis fala
em “arte ou literatura obscena”, bem como do “caráter obsceno de uma
publicação”. Já o Houaiss afirma se tratar de “qualquer coisa feita com o
intuito de ser pornográfico, de explorar o sexo tratado de maneira chula, como
atrativo”. Por fim, talvez as mais interessantes definições venham do Aulete:
“Texto, foto, desenho, filme etc. que, com o objetivo único da excitação ou
satisfação sexual das pessoas, apresenta ou descreve pessoas nuas ou
copulando”, ou ainda “característica ou condição do que, com o propósito
exclusivo de excitação”.
Se
nessas definições substituirmos a palavra “sexo” e suas derivações por
“política”, teremos uma descrição acurada de um certo tipo de publicística que
ganhou público e autores de forma notável nos últimos anos. São pretensos
analistas do cenário político cujo estilo e propósito em muito se assemelham à
pornografia convencional. Descrevem a política como sendo uma forma de
prostituição, relacionando-a ao devasso, ao obsceno, ao licencioso, ao
indecente. A ela se referem de forma chula e grotesca, despertando assim os
instintos mais primitivos de um público ávido pelo politicamente incorreto e
pelo grosseiro. Por isso mesmo, trata-se de uma publicística cujo condão é
excitar a audiência por meio dessa escatologia política, causando-lhe um prazer
baseado no ódio.
Como
atores pornográficos, os publicistas pornôs vivem uma relação confusa com seus
personagens – o que lhes diferencia dos atores e dos publicistas normais,
respectivamente. Os atores normais, por mais que encarnem seu personagem quando
em cena, dele se distinguem claramente; já o ator pornô não tem como se separar
por completo de seu personagem, já que o encarna de uma forma muito mais
concreta – carnal, no sentido literal do termo. O publicista pornô cria um
personagem do qual se torna indissociável, de modo que se torna impossível
distinguir se quem fala ou escreve é, afinal, o publicista ou seu personagem.
Da mesma maneira, no ato sexual encenado não é possível distinguir o ator pornô
de seu personagem – afinal, um e outro efetivamente o praticam.
Por
essa razão, debater com tais publicistas é na melhor das hipóteses uma perda de
tempo e, na pior delas, um brutal equívoco. No primeiro caso, porque se debate
com personagens, em vez de interlocutores reais; no segundo, porque a polêmica
com simulacros argumentativos é uma disputa desleal, da qual sempre se sai
perdendo. Seria como um ator normal fazer uma pequena ponta num filme pornô.
Mesmo que não participe das conjunções carnais, ficará inescapavelmente
associado a elas, danificando sua reputação de ator sério.
Aliás,
a perda reputacional gera um problema grave aos publicistas pornôs que um dia
já tenham sido publicistas normais. Como os atores pornôs que um dia foram
atores normais, eles ingressam num caminho sem volta. Muito dificilmente
conseguirão se descolar dos personagens aos quais se fundiram carnalmente, de
modo a poder novamente atuar da forma convencional. O estigma pornográfico que
se autoimpingiram provavelmente lhes acompanhará para sempre.
A
razão do sucesso junto ao público também é similar nas duas espécies de
pornografia. A encenação – embora farsesca – oferece à audiência uma performance
que ela própria não tem a oportunidade de desempenhar. Assim, o prazer não vem
da própria atuação, mas daquela que é encenada. O outro faz o que seus
espectadores gostariam de estar fazendo, mas não conseguem por falta de
oportunidade: razões físicas, intelectuais, emocionais ou simplesmente de
acesso aos meios – sejam eles parceiros, momentos, lugares, coragem –, ou
espaço para publicação. Torna-se, assim, um substancioso filão de mercado, pois
sempre haverá um público necessitado dessa fonte projetiva de prazer – seja ele
sexual ou de ódio político.
Os
pornógrafos também não têm todos os mesmos atributos. Assim como os atores,
alguns publicistas são mais bem dotados do que os outros: argumentam melhor,
escrevem melhor, são mais eruditos, mais eloquentes ou, simplesmente, fingem
melhor. No caso dos publicistas mais toscos, o espectador sente satisfação
porque ele mesmo poderia ter formulado as assertivas do pornógrafo, o que gera
uma identificação prazerosa. Já quando o publicista tem um desempenho intelectualmente
superior (verdadeiramente ou não), ele se torna um alento para seus
espectadores, pois reforça neles o prazer projetivo de performances que
requerem atributos inacessíveis para o espectador ordinário – que as assiste
embevecido.
No
caso dos publicistas digitais, não raro o embevecimento se expressa através de
comentários postados nas páginas da internet, demonstrando aprovação, admiração
ou mesmo – paradoxalmente – rechaço. Reside aí um típico elemento constitutivo
dessa publicística pornô na sua versão digital: os comentários de aduladores e
detratores. Eles compõem o cenário junto com o texto do publicista, assim como
os gritos da torcida fazem parte do espetáculo esportivo e os aplausos
ambientam a apresentação musical. Mesmo quando não se trata apenas de adulação,
mas de apupos, isso não deixa de ser verdadeiro.
Os
comentários críticos que não são censurados pelos polemistas cumprem sua
função: primeiro, mostram-se claramente minoritários, reforçando a sensação de
uma relativa unanimidade em torno do publicista; segundo, fazem a escada para
que os admiradores reforcem o coro da adulação. Ademais, a possibilidade dos
comentários dá aos espectadores a sensação de que eles podem participar
efetivamente do espetáculo. Dessa forma, a mera encenação converte-se num
espetáculo interativo, aumentando o prazer, reforçando a espiral de ódio e –
consequentemente – aumentando mais ainda o prazer. Como naquelas peças de
teatro em que os atores interagem com o público, se os encenadores não colocam
certos limites à audiência (por exemplo, recriminando-a por seus excessos),
tornam-se cúmplices dela. Mesmo porque, alimentaram propositalmente suas
reações.
Por
fim, para além de um fenômeno relevante da cultura midiática, a publicística
pornográfica é um grande negócio – da mesma forma que sua correspondente
cinematográfica. Nesta última há os produtores e atores independentes, mas é
mais comum que eles se agrupem sob a guarda de alguma organização maior. O
mesmo fazem muitos dos publicistas pornôs, com suas colunas e blogs de
publicações dedicadas exclusiva ou predominantemente ao gênero. Antigamente era
comum chamá-las de revistinhas de sacanagem. Talvez devamos retomar a
expressão.
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Fonte: http://www.cartacapital.com.br/. Título original: 'Polêmica como pornografia'.
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