Por Robert G. Ingersoll
Herdamos a maior parte de nossas opiniões.
Somos herdeiros de hábitos e costumes mentais. Nossas crenças, assim como o
estilo de nossas roupas, dependem do local em que nascemos. Somos moldados e
formados pelo ambiente que nos circunda.
O ambiente é um
escultor — um pintor.
Se tivéssemos nascido
em Constantinopla, a maioria de nós diria: “Não há qualquer Deus senão Alá, e
Maomé é seu profeta”. Se nossos pais vivessem nas margens do Ganges, seríamos
adoradores de Shiva, sequiosos pelo céu de Nirvana.
Por via de regra, os
filhos amam seus pais, acreditam no que eles dizem e orgulham-se muito de dizer
que a religião de seus pais lhes é satisfatória.
Em grande parte os
indivíduos amam a paz; não gostam de desavenças com seus vizinhos; gostam de
companhia; são sociais; gostam de perseguir seus objetivos acompanhados.
Os escoceses são
calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses são católicos porque seus pais
eram. Os ingleses são episcopais porque seus pais eram. Os americanos são
divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é uma regra geral,
com muitas exceções. Os filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam
suas ideias, seus costumes, e chegam a conclusões diferentes. Mas normalmente a
divergência surge de modo tão gradativo que mal se percebe, sendo comum
insistirem que estão seguindo os passos dos pais.
Historiadores
cristãos afirmam que a religião de uma nação algumas vezes foi repentinamente
mudada, e milhões de pagãos foram transformados em cristãos sob o comando de um
rei. Os filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram alterados,
altares foram destruídos, mas as opiniões, os costumes e as crenças
permaneceram as mesmas. Um pagão, subjugado pela espada de um cristão, provavelmente
mudaria sua posição religiosa; um cristão, com uma cimitarra em seu pescoço,
espontaneamente se tornaria um maometano. Na realidade, por dentro, ambos
continuam sendo exatamente o que eram antes.
A crença não está
sujeita à vontade. Os homens pensam como precisam pensar. Crianças não creem,
nem podem crer, exatamente no que lhes foi ensinado. Elas não são totalmente
idênticas aos seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em
capacidade, em atmosfera. Apesar de imperceptível, há uma mudança contínua. Há
desenvolvimento, há crescimento consciente e inconsciente; comparando-se longos
períodos de tempo, percebe-se que o velho foi quase totalmente abandonado,
quase totalmente sobreposto pelo novo. O homem não é capaz de permanecer
imutável. A mente não pode ser ancorada. Se não avançarmos, vamos retroceder.
Se não crescermos, vamos definhar. Se não nos desenvolvermos, vamos atrofiar.
Como a maioria de
vocês, fui criado entre pessoas que sabiam — que estavam convictas. Não tinham
motivos para questionar ou investigar. Não tinham dúvidas. Sabiam-se
possuidoras da verdade. Em suas crenças não havia suposições, não havia talvez.
Elas tinham a revelação de Deus. Conheciam o início de tudo. Sabiam que Deus
havia começado a criação numa segunda, quatro mil e quatro anos antes de
Cristo. Sabiam que na eternidade anterior àquela manhã ele não havia feito
nada. Sabiam que ele levou seis dias para criar a Terra — todas as plantas,
todos os animais, toda a vida e todos os globos que giram no espaço. Sabiam exatamente
o que havia feito em cada dia e quando descansou. Sabiam qual era a origem, a
causa do mal, de todos os crimes, de todas doenças e da morte.
Conheciam não apenas
o começo, mas também o fim. Sabiam que a vida tinha dois caminhos, um largo e
um estreito. Sabiam que o caminho estreito, cheio de espinhos e urtigas,
infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado por pés sangrentos,
conduzia ao céu; e que o caminho largo, plano, ladeado por frutas e flores,
repleto de riso, música e felicidade conduzia diretamente ao inferno. Sabiam
que Deus estava fazendo todo o possível para escolhessem o caminho estreito, e
o Demônio usando todas artimanhas para que escolhessem o caminho largo.
Sabiam que havia uma
batalha perpétua entre os grandes Poderes do bem e do mal pela posse das almas
humanas. Sabiam que, muitos séculos atrás, Deus deixou seu trono e veio a este
pobre mundo na forma de um bebê — que morreu pelos homens — a fim de salvar uns
poucos. Também sabiam que o coração humano encontrava-se totalmente depravado,
que o homem naturalmente amava o mal e odiava a Deus com toda sua força.
Ao mesmo tempo,
sabiam que Deus havia criado o homem à sua imagem e semelhança, e que estava
perfeitamente satisfeito com sua obra. Também sabiam que o homem havia sido corrompido
pelo Demônio, que com embustes e mentiras enganou o primeiro ser humano. Sabiam
que, como consequência disso, Deus amaldiçoou o homem e a mulher; o homem com o
trabalho, a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte; e que também
amaldiçoou a própria Terra com espinhos e abrolhos. Tinham conhecimento de
todas essas coisas sagradas. Também sabiam tudo que Deus havia feito para
purificar e elevar a humanidade. Sabiam tudo sobre o dilúvio; sabiam que Deus —
com exceção de Noé e sua família — havia afogado todos os seus filhos — tanto
os jovens quanto os velhos, tanto os bebês quanto os patriarcas, tanto os
homens quanto as mulheres, tanto as mães amorosas quando as crianças felizes —,
pois sua misericórdia dura para sempre. Também sabiam que havia afogado todas
as bestas e aves — tudo que caminha, rasteja ou voa —, pois seu amor se estende
por todas as suas criaturas. Sabiam que Deus, no intuito de civilizar seus
filhos, devorou alguns com terremotos, destruiu outros com tempestades de fogo,
matou alguns com raios, milhões com fome, com pestilência, e sacrificou
inúmeros milhares nos campos de batalha. Sabiam que era necessário crer em tais
coisas e amar a Deus. Sabiam que a salvação só poderia vir através da fé e do
purificante sangue de Jesus Cristo.
Todos que duvidassem
ou contestassem estariam perdidos. Viver uma vida moral e honesta — honrar seus
contratos, cuidar de sua esposa e filhos, construir um lar feliz, ser um bom
cidadão, um patriota, um homem justo e reflexivo — era simplesmente um modo
respeitável de ser condenado ao inferno.
Deus não recompensava
os homens pela sua honestidade, sua generosidade, sua coragem, mas simplesmente
pela sua fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes convertiam-se em pecado. Todos
os homens que praticassem tais virtudes sem fé mereciam sofrer o suplício
eterno.
Todas essas coisas
confortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos, pelos
professores em aulas dominicais e pelos pais em casa. As crianças eram vítimas
— eram atacadas em seus próprios berços, nos braços de suas mães. Os
professores travavam sua guerra contra o sentido natural das crianças, e todos
os livros que liam eram repletos das mesmas verdades impossíveis. As pobres
crianças estavam indefesas. A atmosfera que respiravam estava saturada de
mentiras — mentiras que se tornaram parte delas.
Naqueles dias os
ministros dependiam dos cultos para salvar as almas e reformar o mundo. No
inverno, estando a navegação interrompida, o comércio era quase totalmente
suspenso. Não havia ferrovias e os únicos meios de transporte eram carroças e
barcos. Em geral, as estradas eram tão precárias que se dava preferência aos
barcos. Não havia óperas, teatros, nenhum entretenimento senão festas e bailes.
As festas eram consideradas mundanas e os bailes pervertidos. Para as pessoas
boas que estivessem em busca de uma alegria verdadeira e virtuosa, havia os
cultos.
Os sermões eram
predominantemente sobre as dores e as agonias do inferno, sobre a felicidade e
o êxtase do céu, sobre a salvação através da fé e a eficiência da expiação. As
pequenas igrejas onde ocorriam os cultos eram geralmente pequenas, mal
ventiladas e excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes,
os améns histéricos, a esperança do céu e o medo do inferno fizeram com que
muitos perdessem o pouco de senso crítico que tinham. Tornaram-se
substancialmente insanos. Nestas condições, dirigiam-se ao “banco das
lamentações”, tinham sensações estranhas, rezavam e lamuriavam, e pensavam ter
“renascido”. Então relatavam sua experiência — quão pervertidos eram, quão maus
eram seus pensamentos, seus desejos, e quão bons subitamente tornaram-se.
Costumavam contar a
história de uma velha mulher que, ao narrar sua experiência, disse o seguinte:
“Antes de ter me convertido, antes de ter dado meu coração a Deus, costumava
mentir e roubar. Agora, pela graça e pelo sangue de Jesus Cristo, abandonei
aquela vida”.
Obviamente, nem todas
as pessoas pensavam da mesma maneira. Alguns eram zombeteiros, e de vez em
quando alguns homens tinham bom-senso suficiente para rir das ameaças dos
padres e troçar do inferno. Alguns falavam de incrédulos que haviam vivido e
morrido em paz.
Quando eu era
criança, ouvi-os falar sobre um velho fazendeiro de Vermont que estava
morrendo. O pregador estava ao lado de sua cama, e perguntou se ele era um
cristão, se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia
preparado-se, que não era cristão — que em toda a sua vida não havia feito nada
senão trabalhar. O pregador respondeu que não poderia lhe dar qualquer
esperança caso não tivesse fé em Cristo — que sem fé sua alma certamente
estaria perdida.
O homem não estava
amedrontado, mas perfeitamente calmo. Com uma voz fraca e quebrantada, disse:
“Caro pastor, suponho que o senhor já tenha conhecido minha fazenda. Eu e minha
esposa viemos para cá há mais de cinquenta anos. Éramos recém-casados. Era tudo
uma floresta, e a terra estava coberta de pedras. Cortei as árvores, queimei os
troncos, recolhi as pedras e erigi as paredes. Minha esposa costurava e tecia,
trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossos filhos — abdicamos a nós
mesmos. Durante todos esses anos minha esposa nunca teve um vestido ou um
chapéu decentes. Eu nunca tive roupa boa. Vivíamos da comida mais simples.
Nossas mãos e nossos corpos deformaram-se pelo trabalho. Nunca tivemos férias.
Amamos um ao outro e os nossos filhos. Agora estou à beira da morte e o senhor
me pergunta se estou preparado. Caro pastor, não temo o futuro, nem qualquer
terror de outro mundo. Talvez até exista um lugar como o inferno, mas o senhor
nunca me fará acreditar que possa ser ainda pior que Vermont”.
Então contaram sobre
um homem que se comparou ao seu cachorro. “Meu cachorro”, disse ele, “apenas
late e brinca. Pode comer o quanto quiser. Nunca trabalha e nem se preocupa com
negócios. Daqui a algum tempo ele morrerá, e isso é tudo. Eu trabalho com toda
a minha força, não tenho tempo para brincar, me deparo com problemas
diariamente. Logo morrerei, e então irei para o inferno. Queria estar no lugar
do meu cachorro”.
Bem, enquanto durasse
o frio, enquanto houvesse neve, a pregação continuava, mas quando o inverno
terminava, quando o apito dos barcos a vapor fazia-se ouvir, quando o comércio
recomeçava, a maioria dos convertidos “apostatava”, retornando aos seus antigos
costumes. Mas no próximo inverno lá estavam eles, prontos para serem
“convertidos”. Formavam uma espécie de trupe, representando os mesmos papéis
todos invernos, e apostatando em todas primaveras.
Os ministros que
pregavam nestas cerimônias eram sérios. Eram diligentes e sinceros. Não eram
filósofos. Para eles, ciência é o sinônimo de uma vaga ameaça — de um perigoso
inimigo. Não sabiam muito, mas acreditavam bastante. Para eles as chamas do
inferno eram reais — podiam avistar a fumaça e as labaredas. O Demônio não era
um mito, era uma pessoa de verdade, um rival de Deus, um inimigo da humanidade.
Pensavam que o importante nesta vida era salvar a alma — que todos deveriam
resistir e desprezar os prazeres dos sentidos, mantendo os olhos totalmente
fitos no portão dourado da Nova Jerusalém. Eram desbalanceados, emotivos,
histéricos, fanáticos, odiosos, amorosos e insanos. Acreditavam literalmente
que a Bíblia era a verdadeira palavra de Deus — que era um livro sem erros ou
contradições. Chamavam suas crueldades de justiça; seus absurdos de mistérios;
seus milagres de fatos; viam suas passagens ingênuas como algo profundamente
espiritual. Cuidavam de evidenciar o pavor, o arrependimento e a agonia dos
perdidos e de demonstrar quão facilmente isso poderia ser evitado, quão
acessível era o céu. Diziam a seus ouvintes que acreditassem, que tivessem fé,
que dessem seu coração a Deus e seus pecados a Cristo, o qual carregaria seus
pecados e tornaria suas almas alvas como a neve.
Os ministros
realmente acreditavam nisso tudo. Estavam absolutamente convictos. Em vão, o
Demônio havia tentado semear dúvida em suas mentes.
Ouvi centenas desses
sermões evangélicos — centenas das mais aterrorizantes e vívidas descrições das
torturas infligidas no inferno, da horrível situação dos que se perderam.
Supunha que o que tinha ouvido era verdade, mas não conseguia acreditar. Eu dizia:
“É verdade”, então pensava: “Mas não pode ser”.
Esses sermões só
deixaram fracas impressões em minha mente. Não estava convencido.
Não tinha o desejo de
ser “convertido”, não queria um “novo coração” e não ansiava nem um pouco por
“renascer”.
Mas ouvi um sermão
que tocou meu coração, que deixou sua marca como uma cicatriz em meu cérebro.
Num domingo fui com
meu irmão ouvir um pregador batista do livre arbítrio. Era um homem corpulento,
vestido como fazendeiro, mas que era um orador. Ele conseguia pintar um quadro
usando palavras.
Escolheu para seu
discurso a parábola do “homem rico e lázaro” (Cf. ).
Descreveu o homem
rico — seu estilo de vida, os excessos a que se entregava, sua extravagância, seus
finos linhos purpúreos, seus banquetes, etc.
Então descreveu
Lázaro — sua pobreza, sua miséria maltrapilha, seu corpo consumido pela
enfermidade, as cascas e migalhas que devorava, os cachorros tinham piedade
dele. Descreveu sua vida solitária, sem amigos.
Então, mudando o tom
de piedade para triunfo, passando das lágrimas à exultação, da derrota à vitória,
descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas asas alvas estendidas
carregavam a alma do pobre desprezado para o Paraíso — para o seio de Abraão.
Em seguida, dando à
voz um tom de desprezo e repugnância, falou sobre a morte do homem rico. Estava
em seu palácio, em sua caríssima cama, o ar cheio de perfume, o quarto cheio de
servos e médicos. Todo seu ouro era inútil — não podia comprar outro suspiro.
Então morreu, e quando abriu os olhos estava no inferno, em tormento.
Então, com uma
expressão dramática, colocou sua mão direita na orelha e sussurrou:
“Escutem! Ouço a voz
do homem rico. O que ele diz? Ouçam! ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que
envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta de seu dedo na água e refresque minha
língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’. Oh, meus irmãos, ele vem
fazendo este pedido há mais de dezoito séculos. E por milhões de anos este
lamento ainda ecoará pelo abismo que separa os salvos dos perdidos. ‘Pai
Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta de
seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas
chamas’”.
Pela primeira vez
compreendi o dogma da danação eterna e as “boas novas da bem-aventurança”. Pela
primeira vez minha imaginação apreendeu as alturas e as profundezas do horror
cristão.
Então eu disse: “É
uma mentira, não gosto da sua religião”.
A partir daquele dia
não tive mais medo nem dúvidas. Para mim, naquele dia, as chamas do inferno
foram extintas. A partir daquele dia passei a desgostar profundamente de quaisquer crenças ortodoxas.
Aquele sermão me fez
algum bem.
Tudo o que a
humanidade sofreu com as guerras, com a pobreza, com a pestilência, com a fome,
com o fogo e com o dilúvio, todo o pavor e toda a dor de todas as doenças e de
todas as mortes — tudo isso se reduz a nada quando posto lado a lado com as
agonias que se destinam às ‘almas perdidas’.
Este dogma
aterrorizante, esta mentira infinita: foi isto que me tornou um descrente
dessas pregações dos representantes do cristianismo. A verdade é que a crença
na danação eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Fundou a Inquisição,
forjou as correntes e construiu instrumentos de tortura. Obscureceu a vida de
muitos milhões. Tornou o berço tão terrível quanto o caixão. Escravizou nações
e derramou o sangue de incontáveis milhares. Sacrificou os melhores, os mais
sábios, os mais bravos. Subverteu a noção de justiça, riscou a compaixão dos
corações, transformou homens em demônios e baniu a razão dos cérebros.
Por séculos, a
cristandade era um manicômio. Papas, cardeais, bispos, padres, monges, eram
todos malucos.
Apenas alguns poucos tinham o coração e a mente íntegros. Apenas alguns poucos — apesar do rugido, do estrondo, dos gritos selvagens — ouviram a voz da razão. Apenas alguns poucos — em meio à selvagem fúria da ignorância, do medo e do fervor — preservaram a perfeita calma que a sabedoria proporciona.
Apenas alguns poucos tinham o coração e a mente íntegros. Apenas alguns poucos — apesar do rugido, do estrondo, dos gritos selvagens — ouviram a voz da razão. Apenas alguns poucos — em meio à selvagem fúria da ignorância, do medo e do fervor — preservaram a perfeita calma que a sabedoria proporciona.
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