Por Audrey de Mattos
Se o
Surrealismo é a estética do onírico por excelência, ao se fitar um quadro de
Salvador Dalí, por exemplo, tem-se a dimensão do que isso quer dizer. Uma das
obras do artista catalão que considero expoentes da estética é o seu
"Hombre com la cabeza llena de nubes". Lendo isso, muitos poderão
relembrar, exaltados, o seu "Persistência da memória" - os célebres
relógios que se derretem ou, os conhecedores mais profundos de seu trabalho,
poderão argumentar que nada expressa melhor o inconsciente - cerne da estética
surrealista - do que o perturbador "El espectro del sex appeal", no
qual o homem se vê criança diante da imagem retorcida de si mesmo.
Pois bem, não posso discordar dessas vozes que, porventura, se levantarem.
Entretanto, penso que quando uma obra é tão explícita em relação aos seus
padrões, ideais ou, mesmo, ao seu manifesto, a ponto de desafiá-lo de algum
modo sem, contudo, negá-lo, à tal obra deve ser reconhecido esse valor. O homem com a cabeça cheia de nuvens, de
Dali, é um escancaramento do ideal Surrealista: negação do realismo castrador e
da ideia conservadora de que somente as coisas que existem é que são possíveis,
ou, como afirmou André Breton no primeiro Manifesto Surrealista: chegar ao
que não existia pela via da arte que valoriza da mesma forma os atos
executados em sonhos ou em estado de vigília.
Passados mais 100 anos do
surgimento das vanguardas artísticas na Europa, a herança legada pelos
vanguardistas, da qual o século XXI se farta, é a da estética despida de
rótulos, livre. Tão livre que penso ser completamente inadequado falar-se na
existência de uma estética. Mas, desse assunto, somente poderão assenhorar-se -
precariamente, como ocorre com todos os olhares que procuram sistematizar para
entender - aqueles que sobre ele debruçarem-se daqui uns 50 anos, talvez mais.
Por ora, talvez nos baste conferir como os novos artistas se valem dessa
herança libertária para produzirem peças de arte que atualizam as velhas
vanguardas - que se releve o paradoxo - deixando seus observadores em dúvida
quanto à origem de seu impulso criador: se reflexo de um olhar atento para
aquelas vanguardas ou produto de um completo à vontade instalado após as terapias
de choque que os movimentos modernistas representaram no início do século XX.
É nessa tônica que quero
apresentar um conto sem nome - "fujamos da mania incurável de reduzir o
desconhecido ao conhecido", gritava Breton -, em que a jovem contista Bruna
Marcheti de Mattos percorre, a exemplo de Dalí, o caminho surrealista
empunhando à vista de todos a sua bandeira. Bruna situa entre o sonho e a
vigília um narrador inominado e, por instantes, estranho a si mesmo cujas
sensações vão sendo descritas como espectros tampouco nomeáveis. Nada parece
gratuito nesse conto: da falta de título à quase impossibilidade de situar no
plano da realidade empírica o que vai sendo descrito, trata-se de um mergulho
no universo difuso onde Breton acreditava esconder-se o puro verdadeiro. No
momento em que o leitor pensa ter alcançado alguma lógica, ela se desfaz pela
justaposição de uma nova imagem incongruente. O final, surpreendente, mostra
como o poeta francês e teórico do Surrealismo, André Breton, tinha razão ao
dizer que aquilo que pensamos não existir é o que existe sem que saibamos
enxergar.
Abaixo, na íntegra, para
deleite dos leitores, o conto sem nome de Bruna Marcheti de Mattos, datado de
novembro de 2012.
As imagens difusas com cores opacas
ainda desfilavam à minha vista, parecendo aquarela que um sovina botou no papel
com a precisão de um bêbado. Os sons eram poucos, o tato já quase nada
percebia, mas o sentido e a coerência que o desfile inspirava ainda pairavam na
atmosfera que rodeava a minha presença. Ao longe, então, como se eu possuísse o
tato de outro corpo, distante de mim, uma pressão fez-se sentir em meu entorno.
Seria em minhas costas? Perscrutei com o olhar, mas não enxerguei coisa alguma
ao meu redor. Nem conseguia enxergar a mim mesma!
Mas já não estava ali. Minha presença
preenchia o espaço, mas meu corpo desaparecera ao mesmo tempo em que a pressão
em meu dorso fazia-se mais perceptível, mais intensa. As imagens imergiam em um
manto negro e ali paulatinamente começavam a afundar, a se desfazer. Os ruídos
débeis misturavam-se a um novo som que perturbava a coesão do que eu vivenciava
– mas não o conseguia identificar.
Meu segundo corpo se tornava cada vez
mais real e concreto. No entanto, sua visão me era tolhida e já não conseguia
me encontrar onde eu de fato estava desde que o primeiro invólucro se
dissolvera no ar. As imagens viraram pontos em um breu sem fim, como atores que
saem de cena rumo ao longínquo horizonte dos bastidores e concedem seus lugares
aos objetos que mimetizam. A temperatura morna da pressão parecia se
materializar, e já podia senti-la contra a minha carne, que a acolhia com a
hospitalidade com que a relva recebe o sono do animal. Sombras restavam no
lugar das imagens que me passavam em frente, e flutuavam no predomínio da escuridão
dos olhos fechados. A cada momento, que se prolongava ao infinito, a coerência
do que antes eu tão bem compreendera se desvanecia e dava lugar à confusão
mental tão lenta, tão atordoada...
O novo som se distinguiu, impondo-se
com valentia persistente em meus ouvidos: era o som da quietude. Um rumor ao
fundo, um ruído pausado ao lado, um apito agudo esporádico. A pressão morna se
solidificava... e se movia. Quando me dei conta, tudo já havia desaparecido: os
sons antigos, as imagens fracas. Só restaram os intrusos que meus sentidos
haviam passado a captar.
Num disparo contrastante com a anterior
lentidão, minha presença se encontrou com meu corpo, adentrou-o. A quietude da
manhã entrecortada pelos pios do filhote de joão-de-barro combinava com o baixo
e constante rufar do ventilador. Ao lado, a respiração pausada tão melodiosa se
interrompeu com um suspiro descansado e acompanhou o carinho da mão que afagava
minhas costas. Abri um buraco na escuridão com o olhar, que a atmosfera e a luz
não hesitaram em ofuscar. Senti um toque prolongado no que apenas segundos mais
tarde descobri ser minha mão direita.
Foi um quase ronronar que me apresentou
ao novo dia. Mas que belo
despertar.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/. Título original: 'Num Conto sem Nome uma Viagem ao Surrealismo'.
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