Por Boaventura de Sousa Santos
Há gente
demasiado pequena para ser humana. Talvez tenha sido sempre assim, mas desde
que a modernidade ocidental se expandiu no mundo graças ao colonialismo e ao
capitalismo a contradição entre a igual dignidade de todos os seres humanos e o
tratamento desumano dado a alguns grupos sociais tomou a forma de uma fratura
abissal. Uma fratura por onde correu muito sangue e se destilou muita
hipocrisia. As zonas de sub-humanidade foram tendo várias populações —
selvagens, indígenas, mulheres, escravos, negros — mas nunca foram encerradas;
pelo contrário, foram sendo renovadas com novas populações que ora se juntaram
ora se substituíram às antigas. A zona mais recente é a dos imigrantes
indocumentados. Por isso, o sangue vertido no Mediterrâneo vem de muito longe,
tanto no tempo como no espaço. E não é por coincidência que seja hoje vertido
tanto no extremo norte como no extremo sul do mesmo continente, na África do
Sul.
As zonas de
sub-humanidade são zonas de não-ser, onde quem não é verdadeiramente humano não
pode reclamar ser tratado como humano, isto é, ser sujeito de direitos humanos.
Quando muito, é objeto dos discursos de direitos humanos por parte daqueles que
vivem nas zonas de humanidade. A estes não passa pela cabeça que as zonas onde
vivem não seriam o que são se não existissem as zonas onde os “outros”
“sub-vivem” e donde desesperadamente querem sair movidos pela escandalosa
aspiração a uma vida digna. E não lhes passa pela cabeça porque a história não
lhes pesa; pelo contrário, confirma-lhes que só os empreendedores vitoriosos
(individuais e coletivos, passados e presentes) merecem a humanidade de que desfrutam.
A filantropia faz-lhes bem mas não têm dívidas a saldar com ninguém.
Só que não há
história de vencedores sem história de vencidos e estes, muitas vezes, não
perderam por serem humanamente menos dignos, mas apenas por não saberem ou
poderem defender-se das atrocidades e dos saques a que foram sujeitos. No
sangue que corre nos dois extremos de África há muita injustiça histórica e
muitas histórias entrelaçadas. O colonialismo europeu não terminou com a
independência de muitos dos países donde fogem os imigrantes. Continuou sob a
forma de controles militares e econômicos, de fomento de rivalidades entre
grupos étnicos para garantir acesso às matérias-primas ou para garantir
posições na Guerra Fria. Muitos dos Estados fracassados foram ativamente
produzidos como fracassados pelos poderes ocidentais. O caso mais recente e
mais trágico é a Líbia. Não era a Líbia uma das fronteiras mais seguras a sul
da União Europeia? Mereceu a pena destruir um país para garantir acesso mais
fácil ao petróleo e servir os interesses geoestratégicos de Israel e dos EUA?
Mas a história
do colonialismo europeu é muito mais complexa do que se pode imaginar e só essa
complexidade pode ajudar a explicar o que se passa na África do Sul. Em que
medida é que os colonizados aprenderam com os colonizadores a arrogância do
racismo? Formalmente um país independente, a África do Sul foi, desde o início
do séc. XX e até 1994, governada por uma das formas mais cruéis de colonialismo
interno, o regime do apartheid. O racismo institucionalizado, muito para além
de uma relação de poder assente na inerente inferioridade dos negros, tornou-se
uma forma geral de ser e de saber (racismo cognitivo) que insidiosamente se foi
libertando das grandes diferenças da cor da pele para se exercer. Será que é
por isso que os negros sul-africanos são considerados o povo de África mais
intolerante em relação a estrangeiros pobres e negros? Será que aqueles que se
libertaram do apartheid não se libertaram totalmente do regime de ser e de
saber em que ele assentava? Será que, bem à maneira da ideologia racista, um
tom mais escuro de pele corresponde a um grau mais baixo de humanidade? Será
que a solidariedade de moçambicanos e zimbabwianos na luta contra o apartheid é
uma parte da história que os sul-africanos não querem recordar para não terem
de pagar dívidas? Será que os sul-africanos correm o risco de serem europeus
fora do lugar?
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Fonte: http://saladeimprensa.ces.uc.pt/index.php?col=opiniao&id=11935#.VULr045Viko
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