A 'semática lítero-poética' está sujeita a uma série de incompreensões, sendo habitual o autor (ou reprodutor) trazer a lume algo com um sentido e a interpretação sobre esse algo variar em sentidos que ele sequer tinha imaginado. Conta-se que, certa feita, o lusitano Sérgio Godinho, presente em um colóquio que analisava a sua obra, não se conteve com as interpretações que emergiram, dizendo que 'não sabia que tinha feito tanto'. Pois bem, Raul Carvalho, poeta português do Baixo Alentejo e que viveu no Porto, possivelmente esteja por aí - tendo a sua obra entendida em sentidos vários. Foi incluído, por Jorge de Sena, na relação dos cem melhores poetas do século XX português, e Eduardo Lourenço considerou-o um herdeiro de Álvaro de Campos. Não por acaso. É da sua pena um poema que já foi considerado 'um dos mais belos uma vez escrito em língua portuguesa'- chama-se 'Serenidade és Minha'. Escrito exatamente em homenagem à memória de Fernando Pessoa. Reproduzo-o a seguir. Qual interpretação pode ser feita de 'Serenidade és Minha'? Trata-se de fazer um movimento mental-analítico, pode-se dizer, hercúleo, ou não? Deixo a resposta a seu juízo, caríssimo/a leitor/a.
Por Raul Carvalho
Vem, serenidade!
Vem, serenidade!
Vem
cobrir a longa
fadiga
dos homens,
este
antigo desejo de nunca ser feliz
a
não ser pela dupla humanidade das bocas.
Vem
serenidade!
Faz
com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e
com que os lábios cheguem à altura dos
beijos.
Carrega
para a cama dos desempregados
todas
as coisas verdes, todas as coisas vis
fechadas
no cofre das águas:
os
corais, as anémonas, os montros sublunares,
as
algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.
Vem
serenidade,
com
o país veloz e viginal das ondas,
com
o mart]irio leve dos amantes sem Deus,
com
o cheiro sensual das pernas no cinema,
com
o vinho e as uvas e o frémito das virgens,
com
o macio ventre das mulheres violadas,
com
os filhos que os pais amaldiçoam,
com
as lanternas postas à beira dos abismos,
e
os segredos e os ninhos e o feno
e
as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,
com
Deus molhando os olhos
e
as esperanças dos pobres.
Vem,
serenidade,
com
a paz e a guerra
derrubar
as selvagens
florestas
do instinto.
Vem,
e levanta
palácios
na sombra.
Tem
a paciência de quem deixa entre os lábios
um
espaço absoluto.
Vem,
e desponta,
oriunda
dos mares,
orquídea
fresca das noites vagabundas,
serena
espécie de contentamento,
suroresa,
plenitude.
Vem
dos prédios sem almas e sem luzes,
dos
números irreais de todas as semanas,
dos
caixeiros sem cor e sem família,
das
flores que rebentam nas mãos dos namorados,
dos
bancos que os jardins afogam no silêncio,
das
jarras que os marujos trazem sempre da China,
dos
aventais vermelhos com que as mulheres esperam
a
chegada da força e da vertigem.
Vem,
serenidade,
e
põe no peito sujo dos ladrões
a
cruz dos crimes sem cadeia,
põe
na boca dos pobres o pão que eles precisam,
põe
nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.
Vem
nos bicos dos pés para junto dos berços,
para
junto das campas dos jovens que morreram,
para
junto das artérias que servem
de
campo para o trigo, de mar para os navios.
Vem,
serenidade!
E
do salgado bojo das tuas naus felizes
despeja
a confiança,
a
grande confiança.
Grande
como os teus braços,
grande
serenidade!
E
põe teus pés na terra,
e
deixa que outras vozes
se
comovam contigo
no
Outono, no Inverno,
no
Verão, na Primavera.
Vem,
serenidade,
para
que não se fale
nem
de paz nem de guerra nem de Deus,
porque
foi tudo junto
e
guardado e levado
para
a casa dos homens.
Vem,
serenidade,
vem
com a madrugada,
vem
com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com
as núvens que proíbem o céu,
vem
com o nevoeiro.
Vem
com as meretrizes que chamam da janela,
volume
dos corpos saciados na cama,
as
mil aparições do amor nas esquinas,
as
dívidas que os pais nos pagam em segredo,
as
costas que os marinheiros levantam
quando
arrastam o mar pelas ruas.
Vem
serenidade,
e
lembra-te de nós,
que
te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,
um
sítio aonde a morte tem todos os direitos.
Lembra-te
da miséria dourada dos meus versos,
desta
roupa de imagens que me cobre
corpo
silencioso,
das
noites que passei perseguindo uma estrela,
do
hálito, da fome, da doença, do crime,
com
que dou vida e morte
a
mim próprio e aos outros.
Vem
serenidade,
e
acaba com o vício
de
plantar roseiras no duro chão dos dias,
vício
de beber água
com
o copo do vinho milagroso do sangue.
Vem,
serenidade,
não
apagues ainda
a
lâmpada que forra
os
cantos do meu quarto,
papel
com que embrulho meus rios de aventura
em
que vai navegando o futuro.
Vem,
serenidade!
E
pousa, mais serena que as mãos de minha Mâe,
mais
húmida que a pele marítima da cais,
mais
branca que o soluço, o silêncio, a origem,
mais
livre que uma ave em seu voo,
mais
branda que a grávida brandura do papel
em que escrevo,
mais
humana e alegre que o sorriso das noivas,
do
que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.
Vem
serenidade,
para
perto de mim e para nunca.
…
… ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … …
De
manhã, quando as carroças de hortaliça
chiam
por dentro da lisa e sonolenta
tarefa
terminada,
quando um ramo de flores matinais
é
uma ofensa ao nosso limitado horizonte,
quando
os astros entregam ao carteiro surpreendido
mais
um postal da esperança enigmática,
quando
os tacões furados pelos relógios podres,
pelas
tardes por trás das grades e dos muros,
pelas
convencionais visitas aos enfermos,
formam,
em densos ângulos de humano desespero,
uma
núvem que aumenta a vâ periferia
que
rodeia a cidade,
é
então que eu peço como quem pede amor:
Vem
serenidade!
Com
a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,
vem,
serenidade!
Com
as horas maiúsculas do cio,
com
os músculos inchados da preguiça,
vem,
serenidade!
Vem,
com o perturbante mistério dos cabelos,
o
riso que não é da boca nem dos dentes
mas
que se espalha, inteiro,
num
corpo alucinado de bandeira.
Vem
serenidade,
antes
que os passos da noite vigilante
arranquem
as primeiras unhas da madrugada,
antes
que as ruas cheias de corações de gás
se
percam no fantástico cenário da cidade,
antes
que, nos pés dormentes dos pedintes,
a
cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,
a
revolta semeie florestas de gritos
e
a raiva vá partir as amarras diárias.
Vem,
serenidade,
leva-me
num vagon de mercadorias,
num
convés de algodão e borracha e madeira,
na
hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,
na
carnívora concha do sono.
Leva-me
para longe
deste
bíblico espaço,
desta
confusão abúlica dos mitos,
deste
enorme pulmão de silêncio e vergonha.
Longe
das sentinelas de mármore
que
exigem passaporte a quem passa.
A
bordo, no porão,
conversando
com velhos tripulantes descalços,
crianças
criminosas fugidas à polícia,
moços
contrabandistas, negociantes mouros,
emigrados
políticos que vão
em
busca da perdida liberdade.
Vem,
serenidade
e
leva-me contigo.
Com
ciganos comendo amoras e limões,
e
música de harmónio, e ciúme, e vinganças,
e
subindo nos ares o livre e musical
facho
rubro que une os seios da terra ao Sol.
Vem,
serenidade!
Os
comboios nos esperam.
Há
famílias inteiras com o jantar na mesa,
aguardando
que batam, que empurrem, que irrompam
pela
porta levíssima,
e
que a porta se abra e por ela se entornem
os
frutos e a justiça.
Serenidade,
eu rezo:
Acorda
minha mãe quando ela dorme,
quando
ela tem no rosto a solidão completa
de
quem passou a noite perguntando por mim,
de
quem perdeu de vista o meu destino.
Ajuda-me
a cumprir a missão de poeta,
a
confundir, numa só e lúcida claridade,
a
palavra esquecida no coração do homem.
Vem
serenidade
lve
os vencidos,
regulariza
o trânsito cardíaco dos sonhos
e
dá-lhes nomes novos,
novos
ventos, novos portos, novos pulsos.
E
recorda comigo o barulho das ondas,
as
mentiras da fé, os amigos medrosos,
os
assombros da Índia imaginada,
o
espanto aprendiz da nossa fala,
ainda
nossa, ainda bela, ainda livre
destes
montes altíssimos que tapam
as
veias ao Oceano.
Vem,
serenidade,
e
faz que não fiquemos doentes, só de ver
que
a beleza não nasce dia a dia na terra.
E
reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e
não cedas demais ao vislumbre de vermos
a
nossa idade exacta
outra
vez paralela ao percurso dos pássaros.
E
dá asas ao peso
da
melancolia,
e
põe ordem no caoss e carne nos espectros,
e
ensina aos suicidas a volúpia do baile,
e
enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e
não apagues nunca o fogo que os consome,
o
impulso que os coloca, nus e iluminados,
no
topo das montanhas, no extremo dos mastros,
na
chaminé do sangue.
Serenidade,
assiste
à
multiplicação original do Mundo:
Um
manto terníssimo de espuma,
um
ninho de corais, de limos, de cabelos,
um
universo de algas despidas e retrácteis,
um
polvo de ternura deliciosa e fresca.
Vem,
e compartilha
das
mais simples paixões,
do
jogo que jogamos sem parceiro,
dos
humilhantes nós que a garganta irradia,
da
suspeita violenta, do inesperado abrigo.
Vem,
com teu frio de esquecimento,
com
a tua alucinante e alucinada mão,
e
põe, no religioso ofício do poema,
a
alegria, a fé, os milagres, a luz!
Vem,
e defende-me
da
traição dos encontros,
do
engano na presença de Aquele
cuja
palavra é silêncio,
cujo
corpo é de ar,
cujo
amor é demais
absoluto
e eterno
para
ser meu, que o amo.
Para
sempre irreal,
para
sempre obscena,
para
sempre inocente
Serenidade,
és minha.
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