O documetário José e Pilar trata da história amorosa do escritor português José Saramago com a jornalista espanhola Pilar del Río. A recepção ao mesmo foi variada, como, de resto, é habitual no contexto da crítica cinematográfica. História singular, tendo Pilar, primeiro, como ela própria diz, se apaixonado pelo escritor (o que a levou a cruzar a fronteira para conhecê-lo pessoalmente), um aspecto que marcou a relação dos dois foi a significativa diferença de idade (ela bem mais nova que ele). Ela diz que primeiro se apaixonou pela alma de José, e ele disse que morreria mais velho do que era se ela não tivesse aparecido. Pois bem, o Prof. Romero Venâncio (Universidade Federal de Sergipe), ativo interveniente no labor intelectual, escreveu um texto com uma interpretação acentuadamente original do documentário/da história de José e Pilar, onde, por exemplo, 'coloca no lugar' a diferença de idade nas relações amorosas e mostra o valor que tem ser 'amigo da sabedoria', até para fazer o caminho do momento final da existência. Vale a leitura, a seguir.
Saramago e Pilar |
Por Romero Venâncio
O documentário “José e Pilar”, do português
Miguel Gonçalves Mendes, é muito mais que um documentário no sentido tradicional
que conhecemos. O filme registra um momento da vida do escritor José Saramago,
mais precisamente os últimos anos de sua vida, entre 2006 a 2010. O diretor
teve o privilégio de acompanhar cotidianamente a vida do escritor durante um
tempo razoável e de ter um convívio direto e bem livre com o casal Saramago e
Pilar.
Filma as
viagens (que são muitas e causadoras da enfermidade do escritor quando estava
começando a escrever “A viagem do elefante“), a vida privada do escritor
e sua mulher, as divergências políticas do casal, as festas de aniversário, as
homenagens, o casamento dos protagonistas na Espanha… Até aqui não se percebe
nada de extraordinário num documentário destes. Um roteiro tranquilamente
previsível e normal sobre a vida de uma “celebridade”.
Aqui também
começa o engano. O filme, já na sua forma mostra algo muito diferente no
gênero: uma fotografia natural e apurada, que se articula perfeitamente com as
falas dos personagens e com o ambiente em que vivem ou por onde andam ao redor
do mundo. As músicas (Jazz, Música flamenca, Fado, Música clássica) foram muito
bem e delicadamente escolhidas, nos fazendo lembrar um filme de Almodóvar
(Augustin Almodóvar é um dos produtores do filme) e o mais importante na forma
filmica: há momentos em que vemos ou acreditamos ver que o documentário esta em
preto e branco, principalmente nos momentos mais reflexivos ou melacólicos do
escritor.
A forma do
filme quer revelar e consegue um Saramago “humano, demasiado humano”, falando
coisas comuns ou afirmando sua descrença em Deus (são sempre momentos sublimes
da película); falando de política ou de família; falando de livros ou de
jornalistas sem criatividade (o que é quase um pleonasmo!); recebendo
homenagens importantes ou caminhando nas ruas, vemos sempre um escritor em
busca da simplicidade da vida.
Dentre vários
temas possíveis de explorar num rico documentário como esse, dois me chamaram
bastante a atenção: Deus e o Amor. Parece coisa pieguista e beata tais temas,
mas na película ganham dimensões “metafísicas” e humanas de uma proporção
grandiosa e inteligente, alcançando aquilo que os primeiros filósofos chamavam
de “sabedoria”. Todos aqueles que acompanham a vida e a obra de Saramago sabem
do seu ateísmo declarado. Para ele é inútil e desnecessário a existência de
Deus e isto não o incomoda mesmo quando vai ficando mais velho e mais perto da
morte. No filme ele afirma categoricamente que pretende morrer coerente com o
que acreditou ou com o que não acreditou.
O que mais me
chamou a atenção nessa temática bem presente em vários momentos do filme foi
algo como uma espécie de “ateísmo místico” nas falas do escritor. Paradoxal
isto! Sem dúvida, mas toda mística é por natureza paradoxal. Saramago acredita
num sentido para a vida (sempre criticou os niilismos contemporâneos de toda
ordem) dado por nós mesmos e não tem preocupações existenciais em céu ou
inferno. A vida para ele é sagrada. Porém, o deus das Igrejas com seus pecados,
repressões, censuras, perseguições, vaidades e com seus sacerdotes e pastores
de práticas opulentas e adoradores de dinheiro não pode despertar nenhuma fé
religiosa em Saramago.
O que para dois
cristãos que conheço (Alder Julio Calado e Rolando Lazarte), as palavras
aparentemente amargas do escritor para com as igrejas cristãs em nada muda a fé
que eles conhecem e praticam no dia-a-dia. Ousaria (sem consultá-los sobre o
assunto) dizer que até concordam com o escritor comunista: O deus que Saramago
negou, eles também negam, mas há um Deus que Saramago não negou porque não o
conheceu que eles afirmam por convicção e posicionamento histórico e que é Deus
da vida e da misericórdia.
O deus de
Saramago é mais um ídolo celebrizado pelos poderosos das igrejas. Deus ou é um
afirmador da vida plena ou torna-se “ópio do povo”, sem sentido para uma
experiência de fé mais profunda e marcada pelo “principio misericórdia”. O deus
que Saramago negou é o espírito de um mero jogo de poder temporal. Como bem
afirmou o próprio escritor num determinado momento do filme: “Este deus das
religiões do poder é uma criação ideológica”.
Saramago talvez
não sabia, mas sempre houve uma tradição mística e séria no Cristianismo que
afirmou o mesmo que ele em diversos momentos da história das igrejas
ocidentais. A obra de Saramago foi um verdadeiro testemunho da luta por justiça
e sempre foi uma “arma de combate” contra todas as formas de opressão nesta
terra. Quereis vós cristãos e religiosos de toda sorte testemunho mais alto e
sublime que este?
No que diz respeito
ao amor, a centralidade é Pilar Del Rio. Mulher/personagem de Saramago e
protagonista da película. Em uma das conferências últimas do escritor no
Brasil, notamos uma afirmação lapidar: “Se Pilar não tivesse existido na minha
vida, eu teria morrido mais velho”. Percebe-se no cotidiano revelado no filme a
importância definitiva dela na vida do escritor. Percebe-se ainda que há um
“amor típico da maturidade” nas palavras e afetos de Saramago em todo o momento
que aparecem juntos e que é este amor que nos resgata da solidão de nós mesmos
e nos prepara para os últimos e difíceis momentos neste mundo.
Em nenhum
momento do filme a questão da diferença de idade dos dois é colocada em
questão. Não é preciso tal coisa quando se ama e quando se carece de alguém tão
precioso. Idade vira algo irrelevante. Daí podemos ler uma sabedoria final como
um legado para as gerações presentes vivida por Pilar/Saramago: “Esses moços,
pobres moços”, preparem-se para amar na maturidade e não para ficar sós… Talvez
seja esta a última lembrança que levamos deste triste /alegre mundo e, quem
sabe, sejamos um transeunte agradável no universo. O filme nos demonstra que
Saramago morreu onde queria e com quem queria. A isto o filósofo Epicuro
chamaria de “morte tranquila”.
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