Realçava Paul Valéry que a arte da elegância no pensamento não busca palco, não quer aparecer a todo custo, mas, mesmo assim, se distingue pelo que é, ao passo que Balzac não deixava por menos: "a liberdade de escolha é um direito de todos, mas só alguns a exercem com elegância." Ou seja, no pensamento e no comportamento, na ação. Pois bem, Carlos Fuentes, um dos grandes da literatura de nuestra latinoamérica, foi uma dessas pessoas. Neste mês de maio, vivemos os três anos da sua transvivenciação - razão mais do que suficiente para voltarmos ao texto do também escritor Eric Nepomuceno sobre Fuentes, sugestivamente intitulado 'Elegante na Ação e no Pensamento'. Aí abaixo.
Carlos Fuentes: livros e estética do pensamento |
Por Eric Nepomuceno
Será
preciso – é parte do ritual que se presta a quem se vai – recordar os livros
todos, e louvar a grandeza do ofício, e mencionar os prêmios e traduções e
honrarias, e recolher elogios entre os sobreviventes. Sim, será preciso cumprir
o ritual. Convém saber, para evitar enganos, que no caso de Carlos Fuentes os
elogios, mesmo os insinceros, serão justos, mais que justos. Foi um autor de
uma obra de imensa importância. Alguns de seus livros – penso em A
Região Mais Transparente, em A Morte de Artemio Cruz,
em Gringo
Viejo, em Terra
Nostra –
estão entre os que de mais valor foram escritos ao longo das últimas cinco ou
seis décadas na América Latina.
Será preciso, também,
mencionar sua trajetória de cidadão comprometido com tudo que disse e diz
respeito ao seu tempo, à sua terra, a esta América nossa. Mencionar a inteireza
com que se manifestou sobre a realidade latino-americana, sobre o peso das ambições
do mundo neste nosso continente de contradições e esperanças rotas.
Será preciso, enfim,
dizer que mesmo quem discordou dele em tudo ou quase tudo soube, quase sempre,
reconhecer e respeitar sua palavra e sua integridade. Discordamos um sem fim de
vezes, sem jamais deixar que isso roçasse o afeto, a lealdade, a solidariedade.
Será preciso dizer
isso tudo e muito mais. Foi-se embora mais um dos poucos grandes de verdade,
não apenas da literatura das Américas, mas dos homens dispostos a dar combate
sempre que julgaram ser isso necessário.
A maior brutalidade: enterrar os filhos
De minha parte, digo
tudo isso e algo mais. A memória que trago de Carlos Fuentes pouco ou nada
mudou desde nosso primeiro encontro, já lá se vão uns bons 20 anos. Carlos
Fuentes foi das pessoas mais elegantes que conheci. E digo elegante no sentido
mais amplo da palavra – elegante na conduta, no pensamento e na ação. Um homem
refinado, amigo dos amigos, capaz de alternar o humor rápido e leve com a
indignação em brasa quando se tratava das mazelas vividas pelo México, pela
América Latina, pelo ser humano neste mundo enlouquecido dos tempos que nos
tocaram viver.
Sua imagem de
viajante incansável corresponde à mais pura verdade. Mas muito além e muito
mais profundo que um lado supostamente mundano, o que havia nessa peregrinação
toda era a aguda curiosidade pelo que é vivido tempos afora, mapas afora.
Fuentes era um inquieto, um indócil, contido a muito custo nas aparências de
sua elegância. Porque na alma, ninguém jamais conteve – nem ele mesmo – essa
inquietação, essa indocilidade. Podia ser frio e racional em suas análises.
Jamais, porém, perdeu a capacidade de se indignar.
Passou pela maior
brutalidade reservada a um ser humano: enterrar os filhos. Em 1999, perdeu o
artista plástico Carlos Rafael aos 25 anos. Seis anos depois, perdeu Natasha
aos 29. E continuou em frente, desafiando e enfrentando os tempos. “Escrevo com
eles ao meu lado”, dizia. O que era uma forma de dizer: escrevo para continuar
vivo, continuar lembrando, continuar sendo.
Se fosse num jogo limpo, ele teria vencido
Lembro dele dizendo que
a natureza não basta a si mesma, que precisa de outra realidade, precisa da
imaginação.
Lembro dele dizendo
que é preciso aceitar, na literatura, a continuação do que veio antes. Que não
há nada original no mundo. Que o que existe é uma meia dúzia de grandes temas,
e que muito mais importante do que contar é como contar. Que o escritor luta
para ser dono do tempo – não do tempo do escritor, mas do tempo da escrita.
Lembro dele dizendo,
quando Carlos Rafael morreu, que jamais aceitaria aquela perda, mas tampouco se
deixaria sufocar pela melancolia. Que era preciso seguir em frente para
justificar e honrar a memória do filho.
Foi o que ele, ao
lado de Sílvia, fez até o fim. Há poucos dias andou por Buenos Aires. Anunciou
novos projetos, falou do livro que havia começado a escrever. Falava do futuro,
porque foi nisso – o futuro – que ele acreditou até o fim.
A morte chegou de
surpresa, na casa mexicana que foi seu porto mais seguro. Porque se não fosse
assim – de surpresa, à traição –, a morte não teria levado Carlos de nós. Se
fosse num jogo limpo e aberto, cara a cara, ele teria vencido de novo. E
ficado.
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Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,elegante-na-acao-e-no-pensamento-imp-,873505
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