Da lavra do psicólogo português Eduardo Sá, a seguir, uma leitura pertinente a estudantes de licenciatura (sobretudo de Pedagogia), professores e pais, de modo geral. É escrito tendo como referência o contexto europeu, mas, mutatis mutandis, também tem muito a dizer no que se refere à realidade brasileira.
Por Eduardo Sá
1. Reconheço nada ter contra o lobo, o lince, o
morcego, ou o bufo real, o koala, o leopardo das neves ou a arara azul mas, na
verdade, de entre os animais em vias de extinção, preocupa-me que o
bicho-carpinteiro não seja protegido. Não vos falo do escaravelho que, como
roedor perseverante da madeira é também conhecido como bicho-carpinteiro. Mas
de um misterioso animal, com o mesmo nome, que – qual Zorro – tem preservado a
sua privacidade a ponto de, habitualmente, os pais – ao referirem--se a ele,
quando as crianças são vivas e trapalhonas – não o conseguirem definir pela sua
forma mas, unicamente, pelos efeitos que parece provocar.
Não sei em que categoria
taxonómica o bicho-carpinteiro se incluirá: será um anfíbio ou uma ave que se
acanha de voar? Será um predador ou um discreto micro-organismo que rivaliza
com as bactérias, com a particularidade de não ter um antídoto à sua altura (o
que justificaria a verdadeira epidemia atípica de crianças que soçobram à sua
nefasta influência)? Preocupa-me que falemos do bicho-carpinteiro e não
saibamos onde vive, como acasala ou quantas células terá. Tem uma, como a amiba
(que, apesar disso, se emociona) ou, dado o seu lado de obreiro, terá um
punhado de neurónios, como as abelhas? Ainda assim, o bicho-carpinteiro, ao
contrário do que os pais imaginam, é o melhor amigo dos brinquedos: depois de
desmanchados, acrescenta-lhes (sempre!) mais umas peças e, ao leme dos gestos
das crianças, não deixa que os seus quartos se acomodem, preguiçosos, aos
excessos da arrumação.
Por mais que não pareça, o
bicho-carpinteiro é o melhor amigo da escola: é pela sua generosa contribuição
que elas parecem ter a vista na ponta dos dedos, levando-as a supor que só se
conhece no que se toca e que cheirar, escutar e sentir é sempre melhor que ver.
E não fosse terem de ser consertadinhas e sossegadas em cada aula, e o
bicho-carpinteiro não vacilava entre mordiscar as unhas ou os lápis das
crianças (o que só é possível quando as aulas compridas esticam a sua paciência
e lhe põem a barriga à razão das horas).
2. Apesar dos seus inestimáveis contributos para
a vida das crianças, há quem queira o bicho-carpinteiro a ‘engonhar’, menos
atrevido e, até, compenetrado. Ora esta ideia de que as crianças saudáveis,
sejam quantas forem as horas que a escola as empanturre com aulas, seja qual
for a magia de um professor que as cative, o número de colegas – vivos ou
adoentados – que se acumulem numa sala, ou as preocupações que se atrevessem no
seu coração, as crianças tenham de estar sossegadas é que preocupa. Presumir
que crianças sossegadas são, por inerência, atentas deixa-me atónito.
E, pior: medicar sem critério –
transformando o bicho--carpintério numa bactéria multirresistente e a escola no
seu exterminador implacável – confundindo crianças dopadas com crianças
atentas, põe-me à beira da ira. Sobretudo porque receio que não haja crianças
hiperativas mas adultos com défices de atenção.
3. Será possível que crianças vivas, educadas em
famílias cada vez mais democráticas (e que, por isso, não crescem confundindo
medo com respeito), cada vez com menos tempo para brincar, com menos espaço nas
suas casas e nos seus bairros, com mais compromissos escolares (que, se os pais
utilizarem toda a oferta que a escola lhes disponibiliza, podem lá estar 55
horas por semana) sejam ainda mais sossegadinhas? Não estaremos a esticar, de
tal forma, a vitalidade das crianças que, expondo--as a um stresse cumulativo
tão absurdo, só as podemos tornar agitadas para que depois, como quem tenta
concertar estragos a correr, as tentemos sossegar com uns aditivos químicos?
Acho que sim.
Será razoável que, por tudo e por
nada, se diagnostique hiperatividade nas crianças e, em consequência disso,
sejam medicadas, anos a fio, com intervalos de «desintoxicação» durante as
férias, sem que se ponderem os efeitos secundários que uma tal utilização tem?
Não. Ainda assim, existem crianças hiperativas? Sim. Como se manifestam, então,
essas crianças doentes? Com uma agitação hemorrágica, estejam onde estiverem ou
quem estiverem, que as faz, em cada momento, esvaírem-se em angústia como se,
ao serem paradas, parecessem soçobrar e morrer. Serão essas as que parecem
amigas do bicho-carpinteiro? Não...
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Fonte: http://www.paisefilhos.pt/index.php/destaque/7059
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