O desejo se expressa pela carícia, assim como o pensamento pela linguagem.
A carícia faz nascer o outro como carne para mim e para ele/a.
(Sartre)
Descontada alguma tautologia, a recensão aí abaixo da obra O Ser e o Nada, de Sartre, aporta uma interessante contribuição introdutória à compreensão da ontologia fenomenológica sartreana. Discrepando de outras perspectivas nesse tema, Sartre parte da tese da 'intencionalidade da consciência' (Husserl), mas com isso significando dizer que ela, a consciência, está direcionada à alguma coisa; contudo, não é mais que intenção, movimento para fora, não se confunde com os seus conteúdos. 'A consciência é um ser que, em seu ser, é consciência do nada de seu ser'. Isto posto, a consciência emerge como denegação do real como ele lhe aparece. Por aqui, chegamos a um ponto central do pensamento sartreano: 'a condição humana implica muito mais fazer-se do que ser'. Nisto está implicado o que se designa por existencialismo, até por uma questão etimológica, visto que existir quer dizer 'sair de si', 'projetar-se'. Logo, o ser humano é um projeto 'que se vive subjetivamente' - e então o existencialismo é um humanismo. No mais, vale uma incursão na recensão a seguir.
Por José de Souza Júnior
O pensamento moderno realizou progresso considerável ao
reduzir o existente à ‘série de aparições’ que o manifesta. Visava-se com isso
suprimir certo número de dualismos, um deles, talvez o mais importante e
primeiro tenha sido esse dualismo que no existente opõe o interior e o
exterior. As aparições que manifestam o existente equivalem-se entre si,
remete-se a todas as outras aparições. As aparições não são exteriores nem
interiores: as aparências, em geral, apenas se remetem às aparências. Trata-se,
sobretudo de compreender que a aparência revela a essência, afinal o ser de um
existente é o que ele aparenta, ou seja, destaca-se o fenômeno como
‘relativo-absoluto’. Então, a aparência revela a essência, eis a lei que
preside as sucessões de suas aparições, é a razão da ‘série’, isto é, a
essência como razão da série é apenas o liame das aparições. O ser fenomênico
se manifesta, portanto, ao manifestar tanto a sua essência quanto a sua
aparência em uma série bem interligada. Neste sentido, a teoria dos fenômenos
substitui a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno, que se mostra
transcendente, mas o sujeito transcende a aparição rumo à série total a que faz
parte. Se a essência está apartada da aparência individual que a manifesta,
assim compreende-se o ‘ser da aparição’ ou a ‘essência da aparição’ como um
‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser.
Enquanto a aparição possui o seu ser próprio – o
‘ser da aparição’ –, o ‘fenômeno do ser’ é o que se manifesta, o ser manifesta
a todos de algum modo, dele se fala e temos compreensão, por isso deve haver um
fenômeno de ser. A essência é o sentido do objeto, a razão de aparições que o
revelam, mas o objeto não possui ser. O existente é o fenômeno, que se designa
a si como conjunto organizado de qualidades. De modo que o ser é simplesmente a
condição de todo desvelar, de outro modo, a aparição necessita de um ser com
base no qual possa desvelar. Se há algo que possa medir a aparição, isso será o
fato de que ela aparece, limitando a realidade ao fenômeno, então, diz-se que o
fenômeno é tal como aparece.
A lei do sujeito cognoscível é ser-consciente. A
consciência não é um modo particular de conhecimento, mas se define pela
dimensão de ser transfenomenal do sujeito. Em outras palavras, toda consciência
é consciência de algo, ou melhor, não há consciência que não seja
posicionamento de um objeto transcendente, em suma, a consciência não tem
‘conteúdo’. Desta forma, toda consciência é posicional, pois transcende para
alcançar um objeto. Se toda minha intenção está voltada para o exterior, então
toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. Uma
condição fundamental para que a consciência seja conhecimento de seu objeto é
que ela seja ‘consciência de si’, ou seja, como sendo este próprio
conhecimento. Primeiramente, uma consciência dirige-se para algo que não é ela,
ou seja, trata-se de uma ‘consciência refletida’, assim, ela se transcenderia e
se esgotaria visando seu objeto, como consciência posicional do mundo, mas este
objeto não deixaria de ser uma consciência. Em seguida, compreende-se, pois
porque ‘saber é ter consciência de saber’ ou ‘saber é saber que se sabe’.
Toda consciência de si não deve ser considerada
como uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma
consciência de alguma coisa. Enfim, a consciência surge no ser, cria e sustenta
sua essência (em uma ordenação sintética de suas possibilidades). A consciência
é plenitude de existência e determinação de si por si, de tal sorte que a
consciência existe por si. A consciência é, portanto, pura aparência, só existe
na medida em que aparece: um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra
fora dela). A consciência pode ser considerada o absoluto (ou seja, ‘o sujeito
da mais concreta das experiências), por causa dessa identidade que nela existe
entre aparência e existência.
A subjetividade não deixa de ser uma espécie de
imanência de si a si. Para tanto, capturamos um ser que tanto nos escapa ao
conhecimento quanto o fundamenta, mas é o pensamento que é capturado enquanto
estrutura do ser. De um lado, o conhecido não poderá ser atribuído pelo
conhecimento, de outro, torna-se preciso que lhe seja reconhecido um ser: este
ser é o percepi. A relatividade e a passividade caracterizam o modo de ser
do percepi. Ressalta-se que a passividade é um fenômeno duplamente
relativo: relativo à atividade daquele que atua e à existência daquele que
padece. Em outros termos, a passividade não se refere a um ser existente
passivo, mas à relação de um ser a outro ser. Neste aspecto, a passividade e a
percepção são puras atividades, espontaneidade que nada pode capturá-las. Por
ser espontaneidade pura, nada pode capturar a passividade, com efeito, a
consciência não pode agir sobre nada. Assim, exige-se que a consciência
conserve seu nada de ser (total absoluto) ao mesmo tempo depara-se com a
relação entre a consciência e os existentes independentes dela, em uma palavra, hylé: fluxo puro do vivido e matéria das sínteses passivas. O ser
percebido está diante da consciência, mas existe apartado dela, de sua própria
existência. A relatividade e a passividade referem-se às maneiras de ser, não
se aplicam ao ser.
Toda consciência é consciência de alguma coisa
em dois sentidos, por um lado, como constitutiva do ser do objeto, por outro,
com relação a um ser transcendente. A consciência é uma subjetividade real e a
impressão, uma plenitude subjetiva. O ser do fenômeno depende da consciência,
contanto que o objeto se distinga da consciência, não por sua presença, mas por
sua ausência, seu nada. Se o ser pertence à consciência, então o objeto é um
não-ser. Portanto, o ser do objeto é um puro não-ser, o que se define como
falta, aquilo que se esconde. As coisas se dão por aparições, cada uma remete a
outras, cada uma é plenitude de ser uma presença. O objetivo não sai do
subjetivo, nem o transcendente da imanência, tampouco o ser do não-ser. A transcendência
é uma estrutura constitutiva da consciência, que nasce com o objetivo de um ser
que ela não é. A subjetividade é, pois, a consciência de ter consciência.
A consciência deve ser produzida como revelação
– revelada – de um ser que ela não é e que se dá como existente quando ela o
revela. A consciência é um ser cuja essência implica a existência, ou seja, a
aparência exige ser. Aplica-se à consciência a formulação que Heidegger
reservou ao Dasein: um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o
seu ser. Complementa-se essa proposição do seguinte modo: a consciência é um
ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este
implica outro ser que não si mesmo. O ser é si-mesmo. Em primeiro lugar, porque
todo o juízo sobre o ser já implica o ser. Em segundo lugar, pois o fenômeno de
ser revela-se à consciência. Em terceiro lugar, por isso exige-se uma
elucidação a partir da revelação-revelado. Por fim, desvelam-se duas regiões do
ser, o ser do cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Trata-se de uma
concepção realista das relações entre o fenômeno e a consciência.
O homem é ativo e os meios que emprega são
passivos. O ser não é ativo, o ser é si, não é relação a si. O ser é em si, é
este si mesmo, não remete a si. O ser pode estar além do si, porque está pleno
de si. O ser é o que é. O princípio contingente do ser-Em-si é ser o que se é
–, o que se traduz como opacidade do ser-Em-si. O Em-si pode ser designado como
uma síntese ‘de si consigo mesmo’. Se o ser está isolado em seu ser, é porque é
o que é por si mesmo: desconhece a alteridade, não se coloca como outro. O
ser-Em-si é. Ordenado de uma seguinte forma tem-se: O ser é. O ser é em si. O
ser é o que é. De modo amplo, partiu-se das aparições para se estabelecer dois
tipos de seres: o Em-si e o Para-si, ainda sob informações superficiais e por
demais incompletas.
O ‘concreto’ é uma totalidade capaz de
existência por si mesma, ou melhor, uma coisa espaço-temporal com todas as suas
determinações. Refere-se a uma totalidade da qual consciência e fenômeno são
apenas momentos. A relação entre as regiões do ser nasce de uma fonte
primitiva, parte da estrutura dos seres. Interroga-se, pois a totalidade do
homem no mundo, ‘ser-no-mundo’, a cada uma das condutas humanas como sendo
condutas do homem no mundo, revelando o homem, o mundo e as relações que os
une. Uma conduta privilegiada é a que se traduz sobre o homem que sou
(apreendido num momento e no mundo), frente ao ser em atitude interrogativa.
Toda interrogação presume um ser que interroga e outro interrogado. Decerto,
interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa, mas interrogamos o ser
principalmente sobre suas ‘maneiras de ser’ ou sobre seu ser.
Para qualquer investigador existe a possibilidade de uma resposta negativa,
obviamente não se sabe se a resposta vai ser negativa ou positiva.
Parte-se, enfim, em busca do ser, do seu núcleo, através da série de nossas
indagações. A possibilidade permanente do não-ser, fora de nós e em nós,
condiciona nossas perguntas sobre o ser. O não-ser é o novo componente do real.
A negação é uma qualidade do juízo, deste modo, o ‘nada’ tem sua origem nos
juízos negativos.
O ser-Em-si interrogado sobre a negação
remeteria ao juízo, enquanto o juízo (plena positividade psíquica) remeteria ao
ser. A negação é o resultado por operações psíquicas concretas e está
sustentada por elas. A negação é incapaz de existir por si, ela reside no seu percepi. A negação acha-se na origem do nada, mas o nada é uma
estrutura real, que origina e fundamenta a negação. Ressalta-se a negação sobre
seu fundo primitivo de uma relação entre o homem e o mundo. Igualmente,
destaca-se uma revelação do ser que se possa emitir juízo. Se eu espero uma
revelação ao ser é porque estou preparado para o eventual não-ser. A relação
‘não está’, ela é pensadamas é o juízo da negação que está sustentado pelo
não-ser. As indagações são feitas por um homem a outros homens, nota-se que
muitas condutas trazem sua compreensão imediata do não-ser sobre o fundo do
ser. A destruição, por exemplo, afinal o homem é o único ser pelo qual pode
realizar uma destruição. Para a destruição é necessário uma relação entre o
homem e o ser (uma transcendência). Assim, a nadificação é um recorte
limitativo de um ser no ser, observa-se com a seguinte proposição: o ser
considerado é isso e, fora disso, nada. A negação é recusa de existência, por
meio dela um ser é colocado e depois relegado ao nada. O ser é descoberto como
frágil, sempre além de toda destruição possível. O exame da ‘conduta da destruição’
nos leva, portanto, aos mesmos resultados da ‘conduta interrogativa’.
A conduta da interrogação se converte em simples
apresentação, oscilando entre o ser e o nada. Na pergunta interrogamos um ser
sobre o seu ser ou modo de ser, assim fica sempre em aberto a revelação do nada
como possível. Desvela-se a interrogação e a sua negatividade, que é
introduzida no mundo. Reconhece-se um processo humano em que o homem torna-se
um ser que faz surgir o nada no mundo. Observa-se um paralelismo entre as condutas
humanas frente ao ser e as condutas que o homem tem frente ao nada. Hegel
estudou na Lógica as relações entre o ser e o não-ser, em que o concreto é o
existente, com sua essência. Assim, para Hegel, o ser se reduz a uma
significação do existente, que está envolvido pela essência (seu fundamento e
origem), bem como o ser é condição de todas as estruturas e momentos
(fundamento em que se manifestam os caracteres do fenômeno). Nesta perspectiva
o ‘ser puro’ é determinado pelo entendimento, que só encontra no ser aquilo que
o ser é. Há forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exercem um sobre o
outro, onde o real é a tensão resultante dessas forças antagônicas.
Entrementes, Hegel observa que o ser e o nada são dois
contrários – simples modos de pensar; então, Hegel faz passar o ser ao nada,
por introduzir a negação na definição de ser: o nada supõe o ser para negá-lo.
Indagar a legitimidade da interrogação sobre o
ser foi um dos problemas que se propôs Heidegger. Há numerosas atitudes da
‘realidade humana’ que implicam uma compreensão do nada. É próprio do Dasein encontrar-se
frente ao nada. O Dasein está fora de si, no mundo, e é um ser das lonjuras, pois ele
não é em si e nem lhe está próximo. A filosofia de Heidegger é compreendida,
nessa perspectiva, sob o uso de termos positivos, que mascaram negações
implícitas para se descrever o Dasein. Aqui tanto a negação se fundamenta no nada como o nada
fundamenta a negação, que compreende o ‘não’ em sua estrutura. Assim, o nada é
a origem do juízo negativo, porque é negação e fundamenta a negação como ato e
como ser. Então, não poderia ser de outro modo, a realidade humana se apresenta
como emergência do ser no não-ser – o mundo está suspenso no nada
(transcendência do mundo): o Dasein capta,
pois a contingência do mundo. Questiona-se tanto em Hegel como em
Heidegger uma atividade negadora que se apresenta sem a
preocupação de se fundamentar num ser negativo.
Afirma-se que as relações entre o homem e o
mundo são indicadas pela negatividade. Que a aparição do homem a
um meio [o meio do ser] faz-se descobrir um mundo. Em seguida, que o
momento essencial dessa aparição é a negação, portanto o homem é o ser
pelo qual o nada vem ao mundo. Busca-se definir o homem condicionado à
aparição do nada, mas ser que nos aparece como liberdade. Trata-se de uma
liberdade em conexão com o nada, na medida em que o condiciona em
sua aparição. A condição para a realidade humana é negar o mundo e ao
mesmo tempo é carregar em si o nada como quem separa seu presente e seu
passado. A liberdade pode ser definida a partir do momento em que o
ser humano passa a jogar o seu passado fora e, com
efeito, quando passa a segregar seu próprio nada? Procura-se não
só repelir com todas as forças a situação ameaçadora, mas projetar
diante de si condutas futuras destinadas a afastar as ameaças do
mundo: essas condutas são as nossas possibilidades? Angustiamo-nos porque
nossas condutas são apenas possíveis, definidas por um conjunto de motivos que
virtualmente repeleriam uma dada situação, mas de um modo ou de
outro identificamos esses motivos como ineficazes. Se pudéssemos
interrogar temporariamente essa obra, a partir de poucas
frases, arriscaríamos: a consciência específica da liberdade é a angústia?
Ou nós é que buscamos estabelecer a angústia como consciência de liberdade?
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Fonte: http://resenhasexcertos.blogspot.com.br/
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