sábado, 9 de maio de 2015

O Ser e o Nada: sobre Consciência, Existência e Liberdade



O desejo se expressa pela carícia, assim como o pensamento pela linguagem.
A carícia faz nascer o outro como carne para mim e para ele/a.
(Sartre) 

Descontada alguma tautologia, a recensão aí abaixo da obra O Ser e o Nada, de Sartre, aporta uma interessante contribuição introdutória à compreensão da ontologia fenomenológica sartreana. Discrepando de outras perspectivas nesse tema, Sartre parte da tese da 'intencionalidade da consciência' (Husserl),  mas com isso significando dizer que ela, a consciência, está direcionada  à alguma coisa; contudo, não é mais que intenção, movimento para fora, não se confunde com os seus conteúdos. 'A consciência é um ser que, em seu ser, é consciência do nada de seu ser'. Isto posto, a consciência emerge como denegação do real como ele lhe aparece. Por aqui, chegamos a um ponto central do pensamento sartreano: 'a condição humana implica muito mais fazer-se do que ser'. Nisto está implicado o que se designa por existencialismo, até por uma questão etimológica, visto que existir quer dizer 'sair de si', 'projetar-se'. Logo, o ser humano é um projeto 'que se vive subjetivamente' - e então o existencialismo é um humanismo. No mais, vale uma incursão na recensão a seguir.  


Por José de Souza Júnior

O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à ‘série de aparições’ que o manifesta. Visava-se com isso suprimir certo número de dualismos, um deles, talvez o mais importante e primeiro tenha sido esse dualismo que no existente opõe o interior e o exterior. As aparições que manifestam o existente equivalem-se entre si, remete-se a todas as outras aparições. As aparições não são exteriores nem interiores: as aparências, em geral, apenas se remetem às aparências. Trata-se, sobretudo de compreender que a aparência revela a essência, afinal o ser de um existente é o que ele aparenta, ou seja, destaca-se o fenômeno como ‘relativo-absoluto’. Então, a aparência revela a essência, eis a lei que preside as sucessões de suas aparições, é a razão da ‘série’, isto é, a essência como razão da série é apenas o liame das aparições. O ser fenomênico se manifesta, portanto, ao manifestar tanto a sua essência quanto a sua aparência em uma série bem interligada. Neste sentido, a teoria dos fenômenos substitui a realidade da coisa pela objetividade do fenômeno, que se mostra transcendente, mas o sujeito transcende a aparição rumo à série total a que faz parte. Se a essência está apartada da aparência individual que a manifesta, assim compreende-se o ‘ser da aparição’ ou a ‘essência da aparição’ como um ‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser. 

Enquanto a aparição possui o seu ser próprio – o ‘ser da aparição’ –, o ‘fenômeno do ser’ é o que se manifesta, o ser manifesta a todos de algum modo, dele se fala e temos compreensão, por isso deve haver um fenômeno de ser. A essência é o sentido do objeto, a razão de aparições que o revelam, mas o objeto não possui ser. O existente é o fenômeno, que se designa a si como conjunto organizado de qualidades. De modo que o ser é simplesmente a condição de todo desvelar, de outro modo, a aparição necessita de um ser com base no qual possa desvelar. Se há algo que possa medir a aparição, isso será o fato de que ela aparece, limitando a realidade ao fenômeno, então, diz-se que o fenômeno é tal como aparece.
A lei do sujeito cognoscível é ser-consciente. A consciência não é um modo particular de conhecimento, mas se define pela dimensão de ser transfenomenal do sujeito. Em outras palavras, toda consciência é consciência de algo, ou melhor, não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, em suma, a consciência não tem ‘conteúdo’. Desta forma, toda consciência é posicional, pois transcende para alcançar um objeto. Se toda minha intenção está voltada para o exterior, então toda consciência cognoscente só pode ser conhecimento de seu objeto. Uma condição fundamental para que a consciência seja conhecimento de seu objeto é que ela seja ‘consciência de si’, ou seja, como sendo este próprio conhecimento. Primeiramente, uma consciência dirige-se para algo que não é ela, ou seja, trata-se de uma ‘consciência refletida’, assim, ela se transcenderia e se esgotaria visando seu objeto, como consciência posicional do mundo, mas este objeto não deixaria de ser uma consciência. Em seguida, compreende-se, pois porque ‘saber é ter consciência de saber’ ou ‘saber é saber que se sabe’. 
Toda consciência de si não deve ser considerada como uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. Enfim, a consciência surge no ser, cria e sustenta sua essência (em uma ordenação sintética de suas possibilidades). A consciência é plenitude de existência e determinação de si por si, de tal sorte que a consciência existe por si. A consciência é, portanto, pura aparência, só existe na medida em que aparece: um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela). A consciência pode ser considerada o absoluto (ou seja, ‘o sujeito da mais concreta das experiências), por causa dessa identidade que nela existe entre aparência e existência.
A subjetividade não deixa de ser uma espécie de imanência de si a si. Para tanto, capturamos um ser que tanto nos escapa ao conhecimento quanto o fundamenta, mas é o pensamento que é capturado enquanto estrutura do ser. De um lado, o conhecido não poderá ser atribuído pelo conhecimento, de outro, torna-se preciso que lhe seja reconhecido um ser: este ser é o percepi. A relatividade e a passividade caracterizam o modo de ser do percepi. Ressalta-se que a passividade é um fenômeno duplamente relativo: relativo à atividade daquele que atua e à existência daquele que padece. Em outros termos, a passividade não se refere a um ser existente passivo, mas à relação de um ser a outro ser. Neste aspecto, a passividade e a percepção são puras atividades, espontaneidade que nada pode capturá-las. Por ser espontaneidade pura, nada pode capturar a passividade, com efeito, a consciência não pode agir sobre nada. Assim, exige-se que a consciência conserve seu nada de ser (total absoluto) ao mesmo tempo depara-se com a relação entre a consciência e os existentes independentes dela, em uma palavra, hylé: fluxo puro do vivido e matéria das sínteses passivas. O ser percebido está diante da consciência, mas existe apartado dela, de sua própria existência. A relatividade e a passividade referem-se às maneiras de ser, não se aplicam ao ser.
Toda consciência é consciência de alguma coisa em dois sentidos, por um lado, como constitutiva do ser do objeto, por outro, com relação a um ser transcendente. A consciência é uma subjetividade real e a impressão, uma plenitude subjetiva. O ser do fenômeno depende da consciência, contanto que o objeto se distinga da consciência, não por sua presença, mas por sua ausência, seu nada. Se o ser pertence à consciência, então o objeto é um não-ser. Portanto, o ser do objeto é um puro não-ser, o que se define como falta, aquilo que se esconde. As coisas se dão por aparições, cada uma remete a outras, cada uma é plenitude de ser uma presença. O objetivo não sai do subjetivo, nem o transcendente da imanência, tampouco o ser do não-ser. A transcendência é uma estrutura constitutiva da consciência, que nasce com o objetivo de um ser que ela não é. A subjetividade é, pois, a consciência de ter consciência. 
A consciência deve ser produzida como revelação – revelada – de um ser que ela não é e que se dá como existente quando ela o revela. A consciência é um ser cuja essência implica a existência, ou seja, a aparência exige ser. Aplica-se à consciência a formulação que Heidegger reservou ao Dasein: um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser. Complementa-se essa proposição do seguinte modo: a consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este implica outro ser que não si mesmo. O ser é si-mesmo. Em primeiro lugar, porque todo o juízo sobre o ser já implica o ser. Em segundo lugar, pois o fenômeno de ser revela-se à consciência. Em terceiro lugar, por isso exige-se uma elucidação a partir da revelação-revelado. Por fim, desvelam-se duas regiões do ser, o ser do cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Trata-se de uma concepção realista das relações entre o fenômeno e a consciência. 
O homem é ativo e os meios que emprega são passivos. O ser não é ativo, o ser é si, não é relação a si. O ser é em si, é este si mesmo, não remete a si. O ser pode estar além do si, porque está pleno de si. O ser é o que é. O princípio contingente do ser-Em-si é ser o que se é –, o que se traduz como opacidade do ser-Em-si. O Em-si pode ser designado como uma síntese ‘de si consigo mesmo’. Se o ser está isolado em seu ser, é porque é o que é por si mesmo: desconhece a alteridade, não se coloca como outro. O ser-Em-si é. Ordenado de uma seguinte forma tem-se: O ser é. O ser é em si. O ser é o que é. De modo amplo, partiu-se das aparições para se estabelecer dois tipos de seres: o Em-si e o Para-si, ainda sob informações superficiais e por demais incompletas.
O ‘concreto’ é uma totalidade capaz de existência por si mesma, ou melhor, uma coisa espaço-temporal com todas as suas determinações. Refere-se a uma totalidade da qual consciência e fenômeno são apenas momentos. A relação entre as regiões do ser nasce de uma fonte primitiva, parte da estrutura dos seres. Interroga-se, pois a totalidade do homem no mundo, ‘ser-no-mundo’, a cada uma das condutas humanas como sendo condutas do homem no mundo, revelando o homem, o mundo e as relações que os une. Uma conduta privilegiada é a que se traduz sobre o homem que sou (apreendido num momento e no mundo), frente ao ser em atitude interrogativa. Toda interrogação presume um ser que interroga e outro interrogado. Decerto, interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa, mas interrogamos o ser principalmente sobre suas ‘maneiras de ser’ ou sobre seu ser. Para qualquer investigador existe a possibilidade de uma resposta negativa, obviamente não se sabe se a resposta vai ser negativa ou positiva. Parte-se, enfim, em busca do ser, do seu núcleo, através da série de nossas indagações. A possibilidade permanente do não-ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas sobre o ser. O não-ser é o novo componente do real. A negação é uma qualidade do juízo, deste modo, o ‘nada’ tem sua origem nos juízos negativos. 
O ser-Em-si interrogado sobre a negação remeteria ao juízo, enquanto o juízo (plena positividade psíquica) remeteria ao ser. A negação é o resultado por operações psíquicas concretas e está sustentada por elas. A negação é incapaz de existir por si, ela reside no seu percepi. A negação acha-se na origem do nada, mas o nada é uma estrutura real, que origina e fundamenta a negação. Ressalta-se a negação sobre seu fundo primitivo de uma relação entre o homem e o mundo. Igualmente, destaca-se uma revelação do ser que se possa emitir juízo. Se eu espero uma revelação ao ser é porque estou preparado para o eventual não-ser. A relação ‘não está’, ela é pensadamas é o juízo da negação que está sustentado pelo não-ser. As indagações são feitas por um homem a outros homens, nota-se que muitas condutas trazem sua compreensão imediata do não-ser sobre o fundo do ser. A destruição, por exemplo, afinal o homem é o único ser pelo qual pode realizar uma destruição. Para a destruição é necessário uma relação entre o homem e o ser (uma transcendência). Assim, a nadificação é um recorte limitativo de um ser no ser, observa-se com a seguinte proposição: o ser considerado é isso e, fora disso, nada. A negação é recusa de existência, por meio dela um ser é colocado e depois relegado ao nada. O ser é descoberto como frágil, sempre além de toda destruição possível. O exame da ‘conduta da destruição’ nos leva, portanto, aos mesmos resultados da ‘conduta interrogativa’. 
A conduta da interrogação se converte em simples apresentação, oscilando entre o ser e o nada. Na pergunta interrogamos um ser sobre o seu ser ou modo de ser, assim fica sempre em aberto a revelação do nada como possível. Desvela-se a interrogação e a sua negatividade, que é introduzida no mundo. Reconhece-se um processo humano em que o homem torna-se um ser que faz surgir o nada no mundo. Observa-se um paralelismo entre as condutas humanas frente ao ser e as condutas que o homem tem frente ao nada. Hegel estudou na Lógica as relações entre o ser e o não-ser, em que o concreto é o existente, com sua essência. Assim, para Hegel, o ser se reduz a uma significação do existente, que está envolvido pela essência (seu fundamento e origem), bem como o ser é condição de todas as estruturas e momentos (fundamento em que se manifestam os caracteres do fenômeno). Nesta perspectiva o ‘ser puro’ é determinado pelo entendimento, que só encontra no ser aquilo que o ser é. Há forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exercem um sobre o outro, onde o real é a tensão resultante dessas forças antagônicas. Entrementes, Hegel observa que o ser e o nada são dois contrários – simples modos de pensar; então, Hegel faz passar o ser ao nada, por introduzir a negação na definição de ser: o nada supõe o ser para negá-lo. 
Indagar a legitimidade da interrogação sobre o ser foi um dos problemas que se propôs Heidegger. Há numerosas atitudes da ‘realidade humana’ que implicam uma compreensão do nada. É próprio do Dasein encontrar-se frente ao nada. O Dasein está fora de si, no mundo, e é um ser das lonjuras, pois ele não é em si e nem lhe está próximo. A filosofia de Heidegger é compreendida, nessa perspectiva, sob o uso de termos positivos, que mascaram negações implícitas para se descrever o Dasein. Aqui tanto a negação se fundamenta no nada como o nada fundamenta a negação, que compreende o ‘não’ em sua estrutura. Assim, o nada é a origem do juízo negativo, porque é negação e fundamenta a negação como ato e como ser. Então, não poderia ser de outro modo, a realidade humana se apresenta como emergência do ser no não-ser – o mundo está suspenso no nada (transcendência do mundo): o Dasein capta, pois a contingência do mundo. Questiona-se tanto em Hegel como em Heidegger uma atividade negadora que se apresenta sem a preocupação de se fundamentar num ser negativo. 
Afirma-se que as relações entre o homem e o mundo são indicadas pela negatividade. Que a aparição do homem a um meio [o meio do ser] faz-se descobrir um mundo. Em seguida, que o momento essencial dessa aparição é a negação, portanto o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. Busca-se definir o homem condicionado à aparição do nada, mas ser que nos aparece como liberdade. Trata-se de uma liberdade em conexão com o nada, na medida em que o condiciona em sua aparição. A condição para a realidade humana é negar o mundo e ao mesmo tempo é carregar em si o nada como quem separa seu presente e seu passado. A liberdade pode ser definida a partir do momento em que o ser humano passa a jogar o seu passado fora e, com efeito, quando passa a segregar seu próprio nada? Procura-se não só repelir com todas as forças a situação ameaçadora, mas projetar diante de si condutas futuras destinadas a afastar as ameaças do mundo: essas condutas são as nossas possibilidades? Angustiamo-nos porque nossas condutas são apenas possíveis, definidas por um conjunto de motivos que virtualmente repeleriam uma dada situação, mas de um modo ou de outro identificamos esses motivos como ineficazes. Se pudéssemos interrogar temporariamente essa obra, a partir de poucas frases, arriscaríamos: a consciência específica da liberdade é a angústia? Ou nós é que buscamos estabelecer a angústia como consciência de liberdade?
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Fonte: http://resenhasexcertos.blogspot.com.br/

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