Da atilada pena de Miguel Torga, a seguir, o conto 'O Alma-Grande', constante do seu livro Novos Contos da Montanha (Coimbra, Edição do Autor).
Por Miguel Torga
Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano a fora, o Padre João
benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.
– Quem é Deus?
– É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa
desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o
Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a
Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à
pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele
segredo – abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar
a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado.
– Raios partam o vento!
Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre
ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
– Lá vai…
Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao
moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na
sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto
dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos
igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com
terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se
do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa
mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o
reclamava.
– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
– Lá vai…
E aparecia à porta logo a seguir.
Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O
garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como
a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.
– Que tem o teu pai, rapaz?
O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador.
– Febre…
– Bem, vamos então lá…
– E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?
– Vê-lo…
Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico,
persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno,
nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a
sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar
a morte como um rio aceita o seu movimento.
Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande
secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma
angústia calada, com a respiração suspensa.
– O que é que ele lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel, agora à mãe,
quando a porta do quarto se fechou.
A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo.
Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac parecia ter
chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como
que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um
febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e acabou por
aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no
cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E
sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de
azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra
estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na
sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se
à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande.
A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre João a
entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez
medo ao filho, mandou-o chamar o abafador.
Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase
sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo
apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à
seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas
abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra. Mas de nada
mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e
a solenidade de tal hora.
Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos
mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o
leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com
as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos
depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua
função.
No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar
na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no
quarto havia movimento e palpitação.Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando
de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz
diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro
mundo, e dizia:
– Não… Ainda não… Ainda não…
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos
sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes!
Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.– Não…
Não… Ainda não…
Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de
cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que
rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.
– Não… Ainda não… Ainda não…
Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava contra forças que
nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber
que ia matar, outro a saber que ia ser morto.
Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado,
o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do
Alma-Grande.
Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez explodir aquela
concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de
repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um
baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do pescoço do
lsaac.
Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande
adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender.
Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a
presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força
habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos
tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se lhe avivava na
consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro
instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de
uma testemunha.
Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante,
voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do
pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo,
longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a
vida não lhe dava grandeza.
Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o
filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança
debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita
ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara
já a entrada sorrateira e inquieta no quarto.
E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr novamente nas veias do
Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao
lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente
da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros
passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem
passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de
maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as
garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão
do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda
no pensamento.
Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança
da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath.
Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a
imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a
vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o
pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam
como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora
do filho a pedir bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e
monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns
aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a
eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o
toldava.
E esse momento, finalmente, chegou.
Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que
o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o
Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também por toda a parte, e olhava
a cena escondido atrás de um fragão.
– Não matarás…
Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros
caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia.
– Não matarás…
O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe
vira nas horas de agonia.
– Não… Não…
Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E, quando o Alma-Grande foi a dar
conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do
outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho.
– Não… Não…
O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o
esforço da respiração a forçar o garrote.
– Não…
Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um
estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o
Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal.
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