No tocante à temática drogas e escolares, o realce das abordagens tem se dado amplamente em torno das chamadas drogas ilícitas, isto é, aqueles consideradas ilegais, como a cannabis sativa. Eu próprio, nas pesquisas que tenho coordenado e nos trabalhos que tenho publicado, perfilo nessa perspectiva. Contudo, há um outro lado na questão: o do efeito que as drogas lícitas, em forma de medicamentos, tem provocado sobre crianças e adolescentes, diagnosticadas, por vezes, sabe-se lá de que forma como possuidoras de algum transtorno, ao que segue a prescrição de medicamentos, numa lógica que, ao fim e ao cabo, é tributária da 'biologização' das relações sociais e da medicalização em escala ilimitada. No silêncio, a medicalização da educação vai tendo um efeito preocupante, dopando crianças e adolescentes. Aí abaixo um texto de Eliane Brum, como um grito de alerta para essa situação. Trata-se de uma questão que nenhuma abordagem pedagógica (se for séria e quiser compreender o seu campo profissional) pode deixar de ter em atenção. Sob a coordenação da Profa. Renata Garcia, que fará a apresentação do referido texto, ele será o material-base da discussão da próxima reunião do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Sociedade e Culturas (GEPEDUSC)/UFPB/Campus IV-Mamanguape, a ocorrer no dia 26/05, às 16h00. A seguir, o texto.
Drogas lícitas na escola: doping de crianças e adolescentes[1]
Por Eliane Brum[2]
Um estudo divulgado pela Anvisa
(Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme
dentro das casas e das escolas – e aberto um grande debate no país. A pesquisa
mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento
comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre
crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para
combater uma patologia controversa chamada de TDAH – Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora
no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período
das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e
o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e
criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é
conhecido como “a droga da obediência”.
O boletim da Anvisa é uma indicação
de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde
pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de
investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital
brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as
unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que
Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado
com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros,
concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o
medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles
profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em
2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da
obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e
16 anos. É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.
A TDAH seria um transtorno
neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No
Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8%. Os sintomas
considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para
prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir
quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou
ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de
permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar
calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez;
interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.
Um parêntese. A droga tem sido usada
por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a
atenção e o rendimento. É difícil quem não conheça alguém que já usou o
medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em
vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional,
utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho
em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar “bombados” para
uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de
TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de
consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.
Entre as considerações finais, os
autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques
Mota, afirmam:
- Os dados demonstram uma tendência
de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é
se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as
indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos,
na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido
muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo
utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de melhoria do
desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os
Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre
adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças,
afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento
deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio
comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais,
sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação
pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem
atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o
desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de
medicamentos.
Além do questionamento proposto pelos
autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping
legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua
história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de
homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados
“diferentes”? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de
“método pedagógico” perverso? O que isso significa? E por que não há uma
discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?
A controvérsia sobre a droga da
obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. É comum
ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é
“hiperativa”, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser
resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela
significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas”
inquestionáveis.
Na realidade, os questionamentos são
muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à
prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer
existe – seria uma invenção promovida pelo marketing
da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser
chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das principais críticas e
ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das
áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados
– exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na
internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola,
explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.
1) A medicina e a definição da
“normalidade”
A história da medicina é uma história
também de como ela deixa de ser o estudo das doenças para passar a definir o
que é a normalidade. “A medicina se atribui todo o universo de relações do
homem com a natureza e com outro homem, isto é, a vida. Legislando sobre
hábitos de alimentação, vestuário, habitação, higiene, aplica a esses campos a
mesma abordagem empregada frente às doenças. Adotando (assim) um discurso genérico,
aplicável a todas as pessoas, porque neutro”, afirma Maria Aparecida Affonso
Moysés, professora titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da
Unicamp, em um artigo muito interessante, intitulado “A Medicalização na
Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente”.
“Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de
normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas
para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem.
(...) É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão, para que
o pensamento racional e objetivo se imponha. Não se esqueça que o discurso
médico, nesse momento – aliás, o discurso científico, em qualquer momento –
está afinado com as demandas dos grupos hegemônicos.”
A medicalização, segundo a pediatra,
é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas em
biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios. É
neste contexto que teria surgido uma doença que impediria a criança de
aprender, com outros nomes antes de ser registrada como TDAH. É assim que se
medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em
questões biológicas e médicas. “O discurso médico irá apregoar a existência de
crianças incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção
especial – uma intervenção médica”, afirma. E conclui: “A atuação medicalizante
da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no pensamento cotidiano,
ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios e preconceitos que
regem a vida cotidiana. E a extensão (e a intensidade) em que esse processo
ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico, não importa se
científico ou preconceituoso, pela população. A medicina constrói, assim,
artificialmente, as ‘doenças do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda
por serviços de saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente
e responsável por sua resolução. A partir deste momento, a medicina se
apropriará cada vez mais do objeto aprendizagem. Sem mudanças significativas,
apenas estendendo seu campo normativo”.
Em “Os Equívocos da Infância
Medicalizada”, Margareth Diniz, professora da Universidade Federal de Ouro
Preto, com doutorado em educação, explicita a diferença entre “medicar” e
“medicalizar”: “Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso. Já a
medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado
pela medicina e que interfere na construção de conceitos, regras de higiene,
normas de moral e costumes prescritos – sexuais, alimentares, de habitação – e
de comportamentos sociais. Este processo está intimamente articulado à idéia de
que não se pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa
social – de suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições
políticas implícitas. A medicalização tem, como objetivo, a intervenção
política no corpo social”.
2) A escola e o ciclo da
medicalização da infância
O caminho que leva ao diagnóstico de
TDAH e à prescrição da droga da obediência, entre os mais pobres e usuários da
rede pública de ensino, inicia na escola, a partir das dificuldades de
aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. Como a
família em geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou
encaminha ao médico, ou aciona o conselho tutelar. Entre as crianças mais
ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com exceção
de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado. Neste
caso, a escola encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente
ao neuropediatra, que prescreve o medicamento.
Esta é a análise da psicanalista
Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora
dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e
psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de
Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo. No artigo
intitulado “A Fabricação da Loucura na Infância: Psiquiatrização do Discurso e
Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela afirma que a escola se converteu
em um mecanismo de inclusão da criança no campo do saber médico-psiquiátrico.
“As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas agenciam e legitimam a
intervenção médica e farmacológica sobre a criança, fazendo com que a
medicalização venha se convertendo na principal forma de tratamento utilizada
para responder às demandas sociais realizadas pelas instituições de assistência
à infância”, diz. “A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social
e pedagógica, forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos. A partir do
momento em que a criança e sua família são capturadas, não conseguem mais
sair.”
É corriqueiro, segundo Margareth
Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência da
escola. “Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados com
solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola em
relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu
aprendizado e de sua socialização. Normalmente são os pais, mais
especificamente as mães, que nos formulam esse pedido. O que torna esses
pedidos curiosos é que, invariavelmente, trazem consigo um enunciado pedagógico
nos seguintes termos: ‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita
de um acompanhamento’”.
A psicóloga Renata Guarido, que
defendeu uma tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que
Não Tem Remédio, Remediado Está: a Medicalização da Vida e Algumas Implicações
do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança passou de objeto da
pedagogia a objeto da medicina. Renata afirma que a medicina passou a
determinar quem era “educável ou ineducável”): “Vemos as crianças e suas
famílias submetidas ao poder exercido pela constituição de um domínio do saber
médico-psicológico, sem que o contexto de seus sofrimentos, bem como sua
possibilidade de tratamento, sejam orientados para outras formas de
consideração da subjetividade, que não a normalizante e de ‘treinamento’”.
Em sua análise, Renata reforça como
são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores
dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados comportamentos das crianças e
adolescentes, encaminhando-os para avaliação psiquiátrica, neurológica e
psicológica. Também já faz parte da rotina professores e outros agentes
escolares perguntarem aos pais de um aluno em tratamento se ele foi corretamente
medicado naquele dia. “Tais procedimentos nos permitem entrever que estão
crentes de que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos
comportamentos e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma
relação com variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano
escolar. (...) Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia
não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a
escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.
3) A criança como objeto, não mais
como sujeito
Entre as principais críticas feitas
por aqueles que alertam para o processo de medicalização da infância – e
especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de
que as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um
protagonista que tem uma história e está inserido num contexto familiar e
social, para se tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção
e à correção por medicamentos. Assim, as crianças e adolescentes têm sido
calados naquilo que estão tentando dizer a pais e professores, em nome de um
ideal de “normalidade” determinado pelo olhar médico e legitimado e reproduzido
pela escola – e também pelos dispositivos de vigilância do Estado. O que se
cala são os conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.
Em O Livro Negro da
Psicopatologia Contemporânea (Via Lettera, 2011), o psicanalista
Alfredo Jerusalinsky escreve um capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para
crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a infância”. Ele
afirma: “Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este
gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se
apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades
que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado
ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito.
(...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É
uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação
terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido;
um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das
categorias não são inocentes”.
Em artigo já citado, Renata Guarido
mostra que não é calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes
classificados como fora do padrão de uma pretensa normalidade. Mas até mesmo o
seu nome é apagado. “Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas
escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua
classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo
o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata. “A medicalização em larga
escala das crianças nos tempos atuais pode ser lida também como apelo ao
silêncio dos conflitos, negando-os como inerentes à subjetividade e ao encontro
humano. Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo de
recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de que
o lugar do ato educativo seja redefinido.”
Em “Hiperatividade: o ‘Não Decidido’
da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda no Tempo da Infância”, as psicanalistas
Viviane Neves Legnani, professora da Universidade de Brasília (UnB), e Sandra
Francesca Conte de Almeida, professora da Universidade Católica de Brasília,
refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um caso concreto. Elas afirmam :
“Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos professores se
servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico de TDAH para
sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar
‘com os difíceis alunos portadores de hiperatividade’. O preço deste
planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a
criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade. Como
consequência da padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada,
tem-se que o educador não escuta e não legitima a palavra dita pela criança, já
que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”.
4) Ninguém se responsabiliza –
ou por que a medicalização prospera
Não é apenas a escola que se
desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado como
patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma vida.
Ao serem classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao
introjetarem este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um
transtorno, é o diagnóstico que lhes determina o destino. Na hipótese de
realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga. Em “O Sujeito
Refém do Orgânico”, Renata Guarido afirma: “Crianças e adultos, sendo
desresponsabilizados de sua implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se
também impotentes para atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados. E a
impotência é então mais um efeito deste discurso biológico. Só é visto como
potente o especialista que saberia o que fazer diante do diagnóstico que
profere. Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento cerebral, da
estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua descrição reduzida a
uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo e não a partir do
laço entre dois ou mais sujeitos. Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser
fruto da ação humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo
público, onde produzimos história”.
Margareth Diniz analisa por que a
aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é por ela reproduzido: “A criança
e o adolescente esperam do outro que lhe responda algo acerca do enigma de sua
existência, e os outros esperam das crianças que se conduzam na vida de modo a
responder aos seus ideais. A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante
do não saber, surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas
questões, na busca de aplacar o mal-estar. A ciência começa a forjar um saber
que não pertence nem ao pai, nem a mãe. Estes são levados a interferirem cada
vez menos na educação dos filhos. Entra em cena a figura dos especialistas,
autorizados principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro
fascínio pela promessa de um saber total, sem furos”.
Não são apenas os professores, mas
também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento para calar os
conflitos na escola e dentro de casa. Afinal, é muito mais fácil lidar com uma
“doença”, quase uma fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um
corpo e para a qual existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma
criança ou um adolescente está dizendo com seu comportamento. “Os pais acusam
as escolas de rotular suas crianças de hiperativas indiscriminadamente, antes
mesmo de obter um diagnóstico médico, mas há relatos de que também alguns pais
impacientes andam utilizando o diagnóstico de hiperatividade como desculpa para
entupir seus filhos de remédio e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento
tenha sido batizado por ‘droga da obediência’”, afirma Margareth. “Isso os
desculpabiliza por não estarem dando conta de impor limites aos filhos, por
exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar seus computadores e jogos
eletrônicos.”
5) O marketing da indústria
farmacêutica
O transtorno de hiperatividade pode
ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o diagnóstico. Críticos da
medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só
altere o comportamento e a aprendizagem. Neste sentido, a disseminação do
diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso
primeiro comprovar a doença e depois tratá-la. O fenômeno obedeceria mais à
lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima e, em alguns casos,
promíscua, entre laboratórios e médicos. “A ligeireza (e imprecisão) com que as
pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade
com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu
mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço
na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a
quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik
em O Livro Negro da Psicopatologia Moderna.
“A produção de saber sobre o
sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica
de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais. O consumo em
larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria
farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do exercício do poder médico
apoiado em um saber consolidado ao longo do século XX”, analisa Renata
Guarido. “Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com
fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico,
guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria
contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação
do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios. Há aí
uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual de construção
diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno. Visto que não há
mais uma etiologia (estudo das causas da doença) e uma historicidade a serem
consideradas, pois a verdade do sintoma/transtorno está no funcionamento
bioquímico, e os efeitos da medicação dão validade a um ou outro diagnóstico.”
*******************
Estes cinco pontos são apenas algumas
pistas para compreender o crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade entre as crianças e adolescentes e a disseminação da droga da
obediência. Dito de outro jeito, questionar o aumento dos “anormais” nas
escolas brasileiras. Ou dos “desobedientes”. A falta de espanto de pais e
professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está naturalizada na
sociedade brasileira. Afinal, parte destes pais e professores também fazem, no
seu próprio cotidiano, o uso de drogas legais para silenciar suas dores
humanas. Por que acreditariam que com seus filhos e alunos seria diferente?
Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.
Ninguém sabe quais serão os efeitos a
longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação das
crianças. O que acontecerá no futuro com essa geração legalmente drogada ainda
é uma incógnita. Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que
estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar escutá-los e
entendê-los em sua singularidade? E o que isso diz sobre nós, os adultos?
[1] - Publicado por Revista Época, em 26
de fevereiro de 2013, originalmente sob o título ‘O Doping das Crianças’.
[2]
- Eliane
Brum é jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas e de três
livros de reportagem: Coluna
Prestes – O avesso da lenda, A vida que ninguém vê (Prêmio Jabuti,
2007) e O olho da rua:
uma repórter em busca da literatura da vida real.
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