segunda-feira, 27 de abril de 2015

Déficit de atenção, pensamento acelerado e as implicações para a convivência

Dentre os temas emergentes que a ciência social terá de enfrentar nos próximos tempos, uma diz respeito, por certo, as implicações que a questão do déficit de atenção e da síndrome do pensamento acelerado acarretam para a vida em sociedade, para a interação e as relações sociais.  Na sociedade de risco em que vivemos, para usar aqui a expressão do sociólogo alemão Ulrich Beck, a problemática associada ao déficit de atenção e ao pensamento acelerado tem se acentuado em todas as faixas etárias da população. As razões para isso são diversas, sendo uma delas o papel das tecnologias (ou o modo como muitas vezes elas são concebidas/utilizadas). O certo é que já são muitos os desencontros no plano da sociabilidade decorrentes da referida problemática, área esta central, como sabemos, na esfera da reflexão sociológica. São cada mais comuns o registro de situações em que, numa conversa (ou tentativa de), um dos interlocutores não absorve nada da argumentação do outro, por causa da incapacidade de concentração, reforçada pela aceleração do pensamento, para logo contrapor-se, contestar o que foi dito com a apresentação de uma réplica. No reverso da medalha também está a precipitação, as conclusões apressadas. Aí já se sabe o que ocorre: adeus racionalidade. Sociabilidade truncada. Reproduzo a seguir uma entrevista sobre tal problemática com Mario Louzã, coordenador do Projeto de Déficit de Atenção do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. 

Entrevista conduzida por Drauzio Varella (disponibilizada em: http://drauziovarella.com.br/)

Meu filho não para quieto nem para comer. Desde o instante em que se levanta até a hora em que vai dormir, anda de um lado para o outro, pula, sobe nos móveis, derruba as cadeiras que encontra pelo caminho, corre pela casa. Seu quarto é um verdadeiro caos. Espalha roupas e objetos, mesmo aqueles que não está usando no momento, revira as gavetas, não fecha as portas dos armários.
No colégio, então, é um terror. Sua agitação incomoda os colegas e prejudica os relacionamentos. A desatenção e a inquietude interferem também no rendimento escolar. Não termina as lições, comete erros grosseiros nos exercícios e redações, esquece conteúdos que dominava satisfatoriamente um dia antes, rasga a folha da prova de tantas vezes que apaga as respostas.
Geralmente, essas queixas caracterizam os portadores do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), uma doença que acomete as crianças, mas que pode prosseguir pela a vida adulta, comprometendo o desempenho profissional, familiar e afetivo dessas pessoas.

Sintomas e diagnóstico
Drauzio – Em geral, as crianças são travessas e desatentas. Como se estabelece o limite entre a desatenção e inquietude próprias da idade e o comportamento potencialmente patológico?
Mario Louzã – À medida que a criança vai crescendo, aumenta o nível de exigência sobre ela. No entanto, o típico é o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ficar evidente quando ela vai para a escola. Normalmente, a criança consegue permanecer sentada na carteira da sala de aula, prestar atenção no que a professora fala, tomar nota, fazer exercícios e aprender as lições. A hiperativa, no entanto, com déficit de atenção não para quieta e comete erros por distração. Muitas vezes, fica evidente que ela sabe a matéria, mas não acerta as repostas, porque está distraída.
Existem casos mais leves da doença que eventualmente podem ser contornados apenas com medidas pedagógicas e há os mais graves que exigem tratamento medicamentoso.
Drauzio – Quem percebe primeiro o problema? Os pais em casa ou a professora na escola?
Mario Louzã – Para fazer o diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade, os sintomas precisam manifestar-se em dois ambientes distintos. Em geral, eles ocorrem em casa e na escola. A mãe, que geralmente acompanha a criança nos deveres de casa, percebe a agitação e a demora para fazer as tarefas. A professora nota o mesmo comportamento na escola. Por isso, pais e professores são bons informantes para ajudar o médico que observa a criança no consultório.
Drauzio – O déficit de atenção sempre começa na infância ou pode instalar-se mais tardiamente?
Mario Louzã – Por definição, a criança já nasce com a doença, tanto que para fazer o diagnóstico em outras fases da vida é preciso investigar como foi a evolução da enfermidade na infância.
O TDAH jamais se inicia quando o indivíduo é adulto. Ao contrário. Em geral, evolui com melhora dos sintomas, tanto que até alguns anos atrás acreditava-se que desaparecia com o crescimento. Hoje se sabe que, apesar de diminuírem o número e a intensidade dos sintomas nos adolescentes e adultos, parte das crianças continua com o problema por toda a vida e apresenta as dificuldades decorrentes da doença.
É importante lembrar que, quando se fala hiperatividade, estamos nos referido a dois sintomas agregados: a hiperatividade propriamente dita e a impulsividade.
Drauzio – Você poderia explicar o que isso significa?
Mario Louzã – Basicamente na criança, a hiperatividade está ligada à motricidade, aos movimentos. É a criança agitada, que não para quieta um segundo sequer, com o bicho carpinteiro, como dizem as pessoas. Já a impulsividade se caracteriza pelo agir sem pensar. Crianças hiperativas se machucam mais, sofrem mais acidentes, porque são intempestivas. Não têm paciência nenhuma, interrompem quem está falando, intrometem-se na conversa alheia. Esse é um sintoma que se manifesta também nos adolescentes e adultos.
Drauzio – Vocês falam déficit de atenção/hiperatividade. Essas duas coisas estão sempre associadas?
Mario Louzã – A síndrome tem esses dois sintomas básicos. Pode predominar um deles, mas em boa parte dos casos tanto o déficit de atenção quanto a hiperatividade estão presentes.

TDAH nos adultos
Drauzio – Você recebe um adulto que se queixa de ser muito distraído e que isso está atrapalhando sua vida. No entanto, o problema passou despercebido na infância e adolescência. Como você encaminha o diagnóstico nesse caso?
Mario Louzã – Essa é uma situação bastante comum. Há pessoas com déficit de atenção e hiperatividade que passam a vida toda sem terem sido diagnosticadas. Dá para imaginar quantos obstáculos precisaram vencer para chegar à universidade, por exemplo?
Na verdade, as queixas dos adultos são as mesmas das crianças: distração, dificuldade para concentrar-se, baixo rendimento no trabalho, impulsividade. Agem sem pensar e depois se arrependem do que fizeram.
O primeiro passo para o diagnóstico nessa faixa de idade é levantar uma história e tentar obter o máximo possível de dados sobre a infância da pessoa. É importante saber se, na escola, a professora reclamava de sua indisciplina, se era desorganizada, apresentava lições mal feitas, tinha os cadernos soltos, bagunçados e o material em desordem.
Nem sempre é fácil conseguir tais informações. Às vezes, a própria pessoa não tem lembrança clara de como eram as coisas. Uma saída é recorrer a informantes que lhe sejam próximos. Se os pais estão vivos, podem ser fonte importante de consulta.
Para o diagnóstico, levam-se em conta também as queixas atuais: o trabalho que não rende, a dificuldade para concentrar-se na leitura de um texto mais longo ou realizar as tarefas do dia a dia, o incômodo por ficar sentada numa reunião mais prolongada ou monótona, a dificuldade para assistir a uma aula na faculdade ou a um curso que exija concentração e permanência numa posição constante. Tudo isso somado ao fato de que se esquece dos compromissos e de pagar as contas. Delinear esse conjunto de dados possibilita reconhecer um quadro de déficit de atenção e hiperatividade no adulto.
Drauzio – Esses dados que você citou são queixas que se ouvem muito no mundo moderno. As pessoas reclamam que não rendem no trabalho, não se concentram porque os estímulos são muitos e não têm paciência para reuniões prolongadas. Como profissional, o que lhe permite estabelecer a diferença entre o comportamento que resulta das atribulações da vida e o que é realmente patológico?
Mario Louzã – Existem de fato alguns casos que estão no limite entre o que seria, digamos, o esperado para a população adulta no momento e o patológico que exige tratamento. Vale destacar que, no adulto, a dificuldade e as queixas vêm da infância. Mais velho, quando o quadro da doença é bem definido, ele se compara com seus pares e percebe que os colegas fazem o mesmo trabalho na metade do tempo, não esquecem a maioria dos compromissos, não atrasam. Já ele é um atrasado contumaz, um desorganizado. A conta está em cima da mesa, mas ele se esquece de levá-la e perde o prazo do pagamento. Não são coisas que acontecem de vez em quando. Acontecem sempre e passam a sensação de fracasso constante, de rendimento inferior à real capacidade de produzir.

Papel da genética
Drauzio – Há maior concentração de casos desse transtorno em determinadas famílias?
Mario Louzã – A genética tem papel importante na incidência do TDAH, embora sozinha não seja suficiente para explicar a doença. Quando se rastreia a família de um paciente, é muito comum encontrar outros casos de déficit de atenção e hiperatividade. Às vezes, enquanto fazemos o diagnóstico de uma criança, os pais percebem que também foram ou são portadores daqueles sintomas e os prejuízos que podem ter causado em suas vidas.
Drauzio – Além da genética, quais são os outros fatores implicados?
Mario Louzã – Os fatores ambientais são menos conhecidos. Imagina-se serem fatores que atuem de alguma forma no sistema nervoso central, no cérebro, na fase de desenvolvimento embrionário ou talvez no início da vida. No entanto, eles não foram claramente definidos.
Drauzio – É possível estabelecer algum tipo de alteração morfológica no cérebro associada ao TDAH?
Mario Louzã – Existem trabalhos que mostram diferenças em áreas do cérebro nas crianças com TDAH, se comparadas com um grupo de crianças sem a doença. Entretanto, é importante salientar que o diagnóstico é eminentemente clínico, baseado nas queixas da pessoa e em sua história de vida. Exames radiológicos, raios X, tomografia ou eletroencefalograma (exame pedido com muita frequência) não ajudam a esclarecer o diagnóstico, seja em crianças, seja em adultos.

Associação com outras doenças
Drauzio – O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade pode estar associado a outros distúrbios psiquiátricos como depressão ou transtorno bipolar?
Mario Louzã – Pode. É típico do TDAH estar associado a outras doenças qualquer que seja a faixa de idade do paciente. Nas crianças, além da ansiedade, aparecem os transtornos de conduta que não decorrem só da distração. São dificuldades de aprendizado específicas como dislexia (dificuldade para compreender o que lê), disgrafia (dificuldade para escrever), discalculia (dificuldade para fazer cálculos).
Nos adolescentes, o problema maior é a tendência ao abuso de drogas. Não existe uma explicação clara para o fato. Os estudos mostram, porém, que a partir da adolescência o uso de drogas nos portadores de TDAH é mais frequente, se comparados com os indivíduos sadios.
Drauzio – Algum tipo específico de droga?
Mario Louzã – Não existe especificidade. A tendência é ao abuso de drogas em geral.
Drauzio – Imaginei que talvez a maconha fosse a droga de predileção desses pacientes, porque a cocaína os deixaria mais agitados ainda.
Mario Louzã – Por estranho que pareça, o consumo de cocaína é comum entre eles. Sob a ação da droga, ficam mais atentos, mais concentrados. Aí, entra um aspecto interessante dessa doença. Os estimulantes diminuem a hiperatividade e a desatenção tanto que o tratamento é feito com uma medicação que contenha esse tipo de substância.

Tratamento
Drauzio – Você recebe um adulto muito agitado, com dificuldade de concentração, baixo rendimento no trabalho e a cabeça girando com múltiplos problemas. Ele conta que isso acontece desde a infância. Qual o primeiro passo para dar início ao tratamento?
Mario Louzã – Fechado o diagnóstico de TDAH, é preciso examinar se não existem outras doenças associadas. Nos adultos, as mais frequentes são ansiedade e depressão e o tratamento vai depender de como esses fatores combinam.
Nessa faixa de idade, o tratamento medicamentoso associado à abordagem psicoterápica ajuda a controlar a doença. O mais comum é prescrever psicoestimulantes (no Brasil há um único medicamento com essa característica) e alguns antidepressivos.
Na infância, o tratamento é mais complexo e envolve frequentemente equipe multidisciplinar, pois requer também a aplicação de medidas pedagógicas e comportamentais.
Drauzio – A medicação é usada por quanto tempo?
Mario Louzã – Se o paciente é uma criança, o ideal é acompanhar a evolução do caso para ver se há melhora com o crescimento. Estudos mostram que até a idade adulta os sintomas diminuem e que, em metade dos portadores de TDAH, desaparecem espontaneamente. Se persistirem no adulto, provavelmente o quadro estará estabilizado.
Como não faz muito tempo que os adultos portadores de TDAH estão sendo estudados, temos pouca informação de como evoluem até os 70 ou 80 anos. No entanto, a hipótese é que os sintomas continuam sempre os mesmos por toda a vida. Desse modo, pode-se afirmar que o tratamento deve ser mantido indefinidamente.
Drauzio – Os medicamentos disponíveis para TDAH provocam efeitos colaterais?
Mario Louzã – De maneira geral, os efeitos colaterais são leves e ocorrem no início do tratamento. Depois, o organismo se ajusta e é boa a tolerância aos medicamentos.
Drauzio – O paciente nota logo os efeitos benéficos dos medicamentos?
Mario Louzã – Isso depende do medicamento que está sendo usado. Geralmente, em algumas semanas, o paciente percebe melhora na atenção e na capacidade de ficar sentado. Percebe que passou a produzir melhor no trabalho e a não cometer os erros que cometia antes. TDAH é uma doença psiquiátrica cujo tratamento dá resultados bastante satisfatórios nas crianças, adolescentes e adultos.
Drauzio – Não parece paradoxal tratar uma pessoa hiperativa com remédios psicoestimulantes?
Mario Louzã – Soa paradoxal, mas atende ao que se supõe ser o mecanismo da doença: a falta de uma ação inibitória do sistema nervoso central sobre algumas áreas. Portanto, quando se estimula a inibição, aumenta o controle da atenção, da atividade motora e da impulsividade.
Drauzio – Você disse que o tratamento envolve uso de medicamentos e psicoterapia. Qual é o objetivo da psicoterapia nesses casos?
Mario Louzã – Nos adultos, a psicoterapia não visa exatamente à doença, mas à pessoa que tem déficit de atenção e hiperatividade. O que acontece frequentemente é que sua história de vida é marcada por insucessos acumulados ao longo dos anos. São falhas no dia a dia, mau desempenho escolar, repetência, suspensões. Depois, vêm problemas no trabalho e na organização das atividades. A longo prazo, isso gera um sentimento de fracasso muito grande, faz cair a autoestima e pode trazer dificuldades para lidar com situações emocionais.

Incidência nos dois sexos
Drauzio – Como é a distribuição da doença entre os gêneros, ou seja, entre homens e mulheres?
Mario Louzã – Pode-se dizer que, na infância, há prevalência dos meninos sobre as meninas. No entanto há os que discutem essa afirmação, alegando que TDAH fica mais evidente nos meninos, porque eles são naturalmente mais hiperativos e incomodam mais do que as garotas. Argumentam, ainda, que elas tendem mais à distração, sem apresentar o componente da hiperatividade. Desse modo, nelas, o risco de que o problema passe despercebido é maior.
O fato é que estudos epidemiológicos feitos em clínicas que recebem esses pacientes revelam a prevalência um pouco maior da doença nos meninos. Quando chega a idade adulta, porém, a incidência de TDAH é aparentemente igual nos dois sexos.

Considerações finais
Drauzio – Que dicas você dá aos portadores de TDAH?
Mario Louzã – Muitas vezes, as pessoas não reconhecem suas falhas de atenção como uma doença passível de tratamento. Elas as incorporam como características de personalidade, como seu jeitão de ser.  Admitir que possam ser sintomas de uma doença é o primeiro passo para buscar ajuda e tratamento e contornar o problema.
Além disso, é fundamental criar estratégias para compensar a desorganização natural e a falta de atenção dessas pessoas. Quanto mais rotineiras e sistemáticas forem, melhor será seu desempenho nas diferentes áreas.
De modo geral, os adultos com déficit de atenção e hiperatividade já desenvolveram algumas técnicas para lidar com as próprias dificuldades. Como sabem que são distraídos, anotam com cuidado os compromissos na agenda, criam hábitos como deixar os objetos sempre no mesmo lugar e estabelecem determinadas rotinas na vida.
Em relação às crianças, desenvolver essas atitudes comportamentais irá ajudá-las a organizar-se melhor. Outra dica importante é reconhecer os danos à autoestima que a doença provocou e procurar uma abordagem psicológica.


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