Certa feita, no Oriente Médio, escutei de um cidadão do Chipre que acadêmicos e governos ocidentais, além de não entenderem nada dessa região, ainda brincam de 'aprendizes de feiticeiro'. Na época (2001), vivia-se mais um momento de intensificação do conflito entre israelenses e palestinos. Todas às vezes que vejo algumas análises do Programa Painel, da Globonews, a respeito da região, lembro do que disse aquele cidadão chipriota. Hoje (28/05), em artigo publicado na Folha de São Paulo, o Prof. Salem H. Nasser (FGV), de ascendência árabe, foi direto ao ponto e mostrou como é vasta a ignorância e a hipocrisia sobre o Oriente Médio. Sugestivamente o título do seu texto é 'Os aprendizes de feiticeiro'. Que brincam com fogo. O foco é o Estado Islâmico. Pode ser lido aí abaixo.
Por Salem H. Nasser
O
Oriente Médio é um eterno desafio à nossa capacidade de compreensão. Talvez
nunca o tenha sido como agora. As conflagrações são tantas, os atores, os
interesses, as chaves de leitura, que mentirá quem disser que pode tudo
explicar. A não ser que, por querer ou sem querer, minta na explicação.
Um dos elementos incontornáveis desse
complexo emaranhado é o chamado Estado Islâmico (EI). Esse grupo, e com ele os
seus vários similares, aliados ou concorrentes, aparece como espectro a
assombrar desde a Nigéria até o Iraque, passando pela Líbia e o restante do
norte da África, pelo Levante Árabe e pelo Golfo, incluído aí o Iêmen, hoje sob
ataque saudita.
Em todos os lugares se multiplicam os relatos
de sua extraordinária violência e causam impressão os seus números, a sua força
e a sua capacidade de ação. Esse perigo gigantesco, que não pode ter sido fruto
de geração instantânea, parece ter surgido no nosso radar de repente e apenas
muito recentemente.
É verdade que antes disso, sob o nome
genérico de Al Qaeda, e no contexto da chamada guerra contra o terror, muito se
falava dos portadores da mesma visão torta do islã e da violência por eles
perpetrada.
Mas aquilo que era uma rede difusa de células
voltadas a ações pontuais transformou-se em legiões de homens bem treinados,
bem armados, com acesso a abundantes recursos materiais. E, por alguma razão,
aqui no Ocidente se decidiu, por um bom tempo, que não era o caso de prestar
muita atenção.
A metamorfose se deu originalmente no Iraque
e na Síria e o seu momento mais relevante foi a entrada do EI e outros grupos
similares, como a Jabhat Al Nusra, no combate ao governo sírio.
Essa questão temporal serve de pista para
explicar, ao menos em parte, tanto o nosso silêncio quanto o fenomenal
crescimento em força desses exércitos de ocasião.
Calou-se sobre aquilo que se estava
alimentando, direta ou indiretamente, na esperança de mudar a balança de poder
na região, derrubando o regime sírio e enfraquecendo os seus aliados mais
evidentes, o Irã e o Hizbollah libanês.
O Estado Islâmico e seus similares aparecem
assim como instrumentos, tão perigosos para quem os manuseia quanto para suas
vítimas imediatas, no jogo que opõe esses atores a que me referi às potências
ocidentais e seus clientes regionais, incluídos aí os países do Golfo e também
Israel.
Mas, mesmo enquanto ainda não escapam
totalmente ao controle de quem os apoia, esses grupos são como aqueles
parceiros com quem se tem vergonha de aparecer em público. Por isso ninguém
confessa as ligações perigosas que mantém.
Somos, portanto, convidados a ultrapassar os
discursos e observar o comportamento dos vários atores.
Mesmo após o avanço do Estado Islâmico sobre
o Curdistão iraquiano e a difusão de imagens de vítimas ocidentais executadas,
ou seja, depois de violada a linha do que era permitido e a opinião pública ocidental
ter sido de tal modo provocada, a resposta veio tímida.
Não há qualquer avanço relevante contra o EI
no Iraque ou na Síria que possa ser posto na conta das ações da coalizão
montada pelos Estados Unidos, ações que de resto aparecem ao observador como
meramente cosméticas.
Tampouco há qualquer ação visível por parte
dos parceiros e clientes dos Estados Unidos voltada a efetivamente estancar as
fontes de financiamento, fechar os campos de treinamento, impedir a chegada dos
combatentes etc.
Do mesmo modo, a mesma Arábia Saudita que
hoje bombardeia o Iêmen, em violação flagrante do direito internacional, sob o
pretexto de proteger a legalidade institucional do avanço dos houtis, não
pensou ser necessária qualquer ação contra a Al Qaeda e seus filhotes naquele
país.
Os aprendizes de feiticeiros continuam a
brincar com fogo.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/220696-os-aprendizes-de-feiticeiro.shtml
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