A experiência, costumo dizer, buscando amparo em Confúcio, é uma lanterna dependurada nas costas que ilumina os caminhos já percorridos - e ajuda a trilhar os caminhos futuros. Se os mais moços tomarem isso em conta, decerto não se iludirão com asneiras, como as de Olavo de Carvalho e seus adeptos. Veio-me isso à mente hoje (17/05) na leitura dos jornais dominicais, ao deparar-me com uma entrevista do veterano Prof. Francisco de Oliveira (USP), na Folha de São Paulo. Aos 81 anos, o Professor Oliveira conserva uma lucidez e uma disponibilidade ao trabalho intelectual que, indiretamente, desmascaram a indolência de determinadas mentes universitárias. Faz o que se requer de um cientista social que dignifique essa denominação. Pode-se até não se concordar com todas as suas posições, mas não se pode negar a franqueza de espírito das suas reflexões e a consistência analítica da articulação delas. Certa feita, ele disse que a realidade nacional é a de um ornitorrinco - o fracasso do nada. Agora, expõe-nos os riscos do tempo presente e fala do futuro que nos aguarda. Um intelectual que não desistiu de pensar, que enfrenta o oportunismo e não tem receios de dizer o pensa. E que não anda por aí, como uns certos "cientistas políticos", a bradar 'análises empafiosas', supostamente amparadas nos clássicos do pensamento social, mas que não resistem a um mínimo de debate assente em argumentos, e não em mera retórica e chavões. Analisa com independência e equilíbrio a realidade brasileira. Por isso, e muito mais, vale a leitura da sua entrevista aí abaixo.
Francisco de Oliveira: Presente e futuro em jogo |
Folha - O que está acontecendo no
Brasil?
Francisco de Oliveira - As posições se acirraram porque tem o
PT de um lado e os tucanos de outro. Todo o meio desapareceu. PDT, PPS, os
democratas, outros partidos praticamente desapareceram. A consolidação de
posições que são opostas dá essa sensação de que está tudo muito ruim, mas não
está não.
O que há de bom nessa conjuntura?
Bom seria um exagero. É uma conjuntura cíclica, que vai e volta. A crise parece
muito grande, mas não é. A concentração da crítica na Dilma é fogo de palha.
Nem ela mesma tem o controle do partido dela. O controle ainda é do Lula. Mas
Lula não é homem de partido, ele é muito personalista.
Há choque entre Lula e Dilma?
Vai haver sempre. Porque Lula elegeu a Dilma para ser um pau mandado. Mas,
quando se chega à Presidência, a regra do pau mandado não vale. Ela tem pouco
jogo de cintura político, tem que ouvir muito. O poder fica muito diluído.
Qual sua avaliação do governo Dilma? O
que ela faz de bom e de ruim?
Nem nada de muito bom nem nada de muito ruim. É um governo médio e medíocre.
Ela não é responsável pelos grandes males do país nem tem solução para esses
grandes males. É uma presidente fraca. Votei com convicção nela nas duas vezes
e não estou decepcionado. Ela me pareceu ser mais de acordo com as minhas
percepções. O governo não tem quase respostas para nada, mas não faz o programa
do PSDB. É um programa quase óbvio. Vai empurrando com a barriga. Felizmente,
apesar de governos fracos, a tentação autoritária não está voltando.
A ascensão de movimentos mais
conservadores nas ruas e no Congresso lhe preocupa?
Não me preocupo porque os tucanos não são populares. Eles não conseguirão
galvanizar essa tentativa de desestabilização com apoio popular. Os tucanos
sempre evitam recorrer às ruas. Panelaço não é o povo quem faz. Esse tipo de
movimento não tem continuidade. Já o PT não pode mover-se com a facilidade que
tinha antes de ser governo. Não acredito que o PT tenha solução para nada.
Há uma ascensão da direita?
Não vejo. A direita existe mais na imprensa do que no movimento real de setores
da população. A sociedade brasileira é muito diversificada e não comporta uma
direita extremada. Existe uma polarização entre os muito ricos e muito pobres.
Mas esses dois segmentos não fazem política. A polarização se dá em picos. A
linha de continuidade é muito por baixo e muito fraca. Os picos parecem nos
espantar. A discussão do impeachment não vai para frente. Renan Calheiros e
Eduardo Cunha são fracos. Se fosse com o Ulysses Guimarães, a senhora Dilma
estaria dançando miudinho.
Como o sr. analisa a situação do Brasil
no mundo?
O Brasil é área de disputa muito forte. É a sexta economia mundial ou algo
nessa dimensão. É muito bom fazer negócios aqui, especialmente num momento em
que EUA e Europa estão mais ou menos estagnados. A Índia é muito pobre. Na
China, ou os negócios passam pelo Estado ou não passam. O Brasil é uma ilha de
muita liberdade empresarial. Não tem muita regulação. Salvo em setores muito
vulneráveis, se faz qualquer negócio em qualquer parte. O Brasil cresce. Agora
está patinando, mas é só uma patinação. Esse ciclo é passageiro; haverá
reativação. O Brasil não é um país condenado ao esquecimento. É por isso que é
preciso lutar.
Lutar como e para quê?
Pelo poder. Numa sociedade estagnada a luta é mais fácil. Aqui, não. Aqui é
como um baile: está tudo em movimento. Dá uma sensação ao mesmo tempo de pressa
e de angustia. Porque você nunca está sossegado. E isso é ótimo. A pior coisa é
a estagnação. É preciso andar para dar um mínimo para a população mais pobre.
Não se pode mais deixar milhões sofrerem com necessidades básicas. Isso não
existe. É preciso jogar a bola para frente –e correr atrás dela.
O perfil desse governo é mais
protecionista ou liberal?
O governo não sabe se definir em relação a isso. Não sabe se é protecionista ou
livre cambista. Vem de uma herança pesada. FHC jogou para destruir regras de
proteção, fez um jogo liberal. O que não era esperado, pois sua tradição era
pela esquerda. Lula não puxou para a esquerda. Daí vem a indefinição do governo
federal, que prossegue com Dilma.
Reajustes reais do salário mínimo,
Bolsa Família não são pontos de um governo de esquerda?
Sim, comparando com outros. A ironia é que são medidas capitalistas. Moro num
prédio de classe média, onde quem trabalha na portaria já tem carro. É um
índice de êxito do capitalismo, até certo ponto. Só um socialista louco –como
já fui; hoje sou apenas socialista– para achar que eles não melhoraram de vida.
Melhoraram extraordinariamente.
O sr. já afirmou que as esquerdas no
Brasil, desde os tempos do auge do PC, passando pelo PT e pelo PSOL, nunca
conseguiram ter um projeto para o país. Por quê?
As esquerdas são muito brasileiras: tendem mais à conciliação do que ao
conflito. É da formação da sociedade e do Estado. As esquerdas também são muito
conservadoras. Na redemocratização, em 1945, o projeto do PCB para o petróleo
era privatista. Seguia a linha de aprofundar o capitalismo para criar condições
para o socialismo. Esquerda e nacionalismo convergiram numa certa fase. A atual
esquerda não tem projeto. Lula nunca teve; Dilma também não tem. O PT não sabe
o que é o Brasil, não tem um projeto para o país. Está superado. Não vai
acabar, mas não tem nada a dizer a respeito do desenvolvimento do Brasil. Vai
empurrando com a barriga. É o partido da ordem.
Seu diagnóstico de esgotamento do PT
significa previsão de derrota do partido em 2018?
É possível, mas não é provável. Quando jogo for pesado, Lula vai ter que se
realinhar. De forma até radical, o que não é do estilo dele. Ou Lula volta a
fazer política de forma mais contundente e mais consistente ou se prepara para
entregar o queijo para os tucanos. Lula vai ter que ser mais partidário e
retomar a militância política. Vai precisar dar apoio a Dilma para que o
mandato não tenha um desenlace que caia em cima dele. Se houver um desastre e o
PT for desalojado do poder, as burguesias nunca mais se esquecerão disso. Vão
tentar manter o PT afastado.
Há personalidades alternativas?
Brizola é o grande político que falta no Brasil. Governou dois Estados (o RJ
duas vezes). Não tem ninguém com esse perfil, com essa audácia. Falta alguém
com audácia.
Como o sr. enxerga o Brasil a longo
prazo?
Vai caminhar para ser uma sociedade mais igualitária. Não é otimismo. Em geral,
a obrigação do cientista social é ser pessimista. Nenhuma sociedade aguenta o nível
de desigualdade que se produziu no Brasil. Há pressão da população. Não existe
manter 200 milhões de pessoas sob o jugo da desigualdade, reprimida por
inteiro. No longo prazo seremos mais igualitários. A democracia está ao alcance
das mãos; não é um sonho utópico e é necessária. Menos para os democratas e
mais para os não democratas. Quem estiver jogando jogo autoritário não vai
aguentar. A burguesia brasileira é muito autoritária. Mas hoje a sociedade não
aguenta mais ver a demissão de 2.000 pessoas. Ela não permite. As empresas não
são mais donas absolutas do jogo econômico social e político. Têm que prestar
contas à sociedade. O confronto deslocou-se do âmbito de empresas e sindicatos
para a sociedade.
Como avaliar politicamente essa fração
da população que ascendeu nos últimos anos?
Ninguém sabe. É como olhar dentro de uma chaleira. Há vários pontos de
ebulição. Há uma ebulição geral na sociedade. Mas o Brasil vai melhorando,
incluindo mais gente. É a forma do capitalismo se renovar. Ninguém pense em
reformas profundas. As reformas são dadas pelo crescimento econômico e pelo
crescimento da população. Pela alfabetização. Essas são as reformas que movem a
sociedade. Eu, como um velho socialista –mais velho do que socialista–, não
vejo revolução à vista. O Brasil vai engatar, vai crescer. É impossível conter
200 milhões de pessoas, cada uma querendo o melhor para si. Esse egoísmo
capitalista é positivo. O socialismo é algo para além.
O sr. planeja um novo livro?
Sobre o ciclo do lulismo. A chance que o Brasil teve desde FHC e, com mais
intensidade com Lula, não é de fácil repetição. FHC abre o ciclo. É homem de
elite, não gosta do Nordeste, dos pobres. Tenho desgosto em relação a isso.
Trabalhamos muito juntos; ele não era assim. O Lula não fez nada de excepcional,
não na dimensão que poderia. Excepcional foi o Brasil desde 1930. Agora a
chance foi desperdiçada, principalmente por Lula. O capitalismo só funciona com
inserção social e não houve nenhum milagre no Brasil. A economia brasileira é
privilegiada, disputada. Mas está faltando capacidade de aproveitar isso,
ocupar espaços. No passado, quem percebeu isso com lucidez foi San Tiago Dantas
(1911-1964, ministro de João Goulart). Ele meteu o pé. Hoje também há
oportunidades, mas não há percepção.
Como seria o título do livro?
Vi recentemente "Um Sonho Intenso" [documentário de José Mariani] e
tem um título me perseguindo que é "Um Pesadelo Intenso". Pela
frustração dessa oportunidade única. Erraram. Foi um sonho que poderia ter sido
e não foi em toda a sua intensidade. Não culpo a Dilma. É o lulismo que,
contraditoriamente, é muito conservador. Lula não ousa tudo o que poderia ter
ousado. O que ele fez em relação à previdência social? Basicamente nada. Quando
não se pode incluir pela expansão do mercado, essa é a forma de inclusão, fora
do mercado. Ele poderia ter feito um esforço mais intenso para ampliar os
benefícios sociais. E isso não é risco para o Tesouro, porque vem compensação
pelo outro lado –pela expansão da economia, pelo aumento de arrecadação. Era
hora de meter o pé no acelerador e Lula fez o contrário.
Como o sr. avalia o caso Petrobras?
Petróleo ainda é o melhor negócio do mundo. A Petrobras é de 1953 e avançou.
Vargas foi obrigado a se suicidar por isso. Os norte-americanos até hoje não
engolem o fato de ela ser estatal, mesmo sendo um estatismo frouxo. Não engolem
porque é um filé. Está abalada hoje. Há pressão para que ela seja fatiada. A
burguesia brasileira quer pegar nacos. A Petrobras é um item de segurança
nacional; não pode ser privatizada.
E a questão da corrupção envolvendo
empreiteiras?
Há tempos, quando todo mundo se desesperava com isso, Ignácio Rangel
(1914-1994), que era realista e cético, dizia: "A corrupção é o creme do
capitalismo. Não se desesperem, isso é sinal de que o capitalismo está se
expandindo".
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1629867-panelacos-nao-vao-prosperar-diz-chico-de-oliveira.shtml
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