Por Isabel Nobre
Em 2010 foi lançado um livro com dez contos de autores
variados, chamado Essa história está diferente. O que todos esses contos têm em comum? Todos foram inspirados
em músicas de Chico Buarque. Dentre eles, um particularmente, chama atenção. O
nome desse conto é Olhos nus: olhos, do africano Mia Couto. O conto é a expressão de como o
recurso da intertextualidade pode ser uma forma de criação literária. As letras
de Chico já contém um rico material e Mia o aproveita com maestria.
Mia
Couto, que é um amante da música e literatura brasileira assumido, escreve esse
conto com claras referências à música olhos nos olhos, composta pelo nosso
Chico e inserida no álbum Meus Caros Amigos (1976).
Os
personagens são: Clarice, a mulher abandonada que sofre; João Rosa, o ex-marido
que descobre que não é possível se separar de alguém de verdade e Adélia, a
nova namorada do ex-marido de Clarice. A título de curiosidade, os nomes das
personagens são homenagens de Mia a grandes nomes da literatura, Clarice é
Clarice Lispector e João Rosa é João Guimarães Rosa. Entretanto, é necessário
frisar que as homenagens cessão aos nomes. Clarice é no conto uma mulher que se
encontra triste e reflexiva, e pode até parecer com a Lispector, mas João Rosa
é um economista sedutor, que não consegue enfrentar a ex-mulher, que é
completamente diferente o médico altruísta Guimarães Rosa.
No
conto, João Rosa, homem galante, que já se envolveu com muitas mulheres, mas
nunca se lembrava dos nomes, talvez porque jamais tenha realmente amado alguém,
exceto, Clarice. Um talvez de incerteza que quase sempre denuncia os amores
eternos. João Rosa decidiu então apaziguar seu amor por Clarice com uma nova
paixão, Adélia. A embriaguez da sedução entrelaça o coração dos dois amantes,
os olhos negros e a gramática refinada de João Rosa, atuam como checkmate na indecisão de Adélia. Muitas vezes
ela não compreendia o significado de algumas poesias, mas do que importava? O
seu corpo possuía inúmeros adjetivos que superavam a emissão de qualquer
advérbio. Foi assim que começou a paixão vulcânica entre ambos. Adélia era para
João como uma pausa entre uma longa corrida, como um alívio.
Fica
evidente para todos, e até mesmo para João, que ele ainda amava Clarice, quando
deitado na cama com Adélia, João explica que não a havia visto na plateia onde
dava uma palestra, que chorou ao final junto com os aplausos, coisa atípica
para um homem como ele.
–
Pois, foi pena não poder ver os meus olhos cheios de orgulho por lhe ver ali,
brilhando no pódio. – Ficou vaidosa? – Me derreti. – Pois eu lhe digo meu amor,
a sala estava toda Clarice… Perdão, queria dizer: a sala estava toda
claríssima. (COUTO, 2010, p.203).
João
Rosa esquecia-se de apenas um detalhe, deixara toda as suas coisas na casa da
ex-mulher. Roupas, livros, sapatos, vinhos e os infinitos dissabores do amor.
Passou a morar na casa de Adélia, e adiava sempre a visita à antiga residência.
A atual namorada não se conformava, porque ele sempre evitava retornar ao
antigo lar. Se já não havia mais nada entre os dois porque resistir ao
encontro? Mas era em tal situação que Adélia enganava-se, acerca de João Rosa e
Clarice existia um silencioso emaranhado de entrelinhas.
Para
extinguir o amor Clarice matou da memória João Rosa, ela fingia viver em luto
eterno mediante a separação. Passou a esquecer da existência nos gargalos da
bebida, embriagava-se para não fazer mais parte do grupo dos esquecidos. Era
assim que ela sentia-se, uma viúva de um amor morto. Já João Rosa afogava as
dores da ausência de Clarice nos braços e pernas de Adélia, era um fogo
corrosivo que tornava a recente paixão uma companhia essencial.
Após
evitar por vários meses um reencontro com Clarice, Rosa, retorna ao antigo lar.
Em cada batida da porta era como se a madeira lhe rasgasse a carne e cortasse a
alma, o amor ali ainda existia. Clarice continuava em luto, profundamente,
ferida pela partida do seu amado, entregava-se ao álcool, no entanto, a mágoa
que sentia de João Rosa era imperdoável. O reencontro dos dois no antigo lar,
onde viveram por anos, agora se resumia em cinzas, apenas os olhos permaneciam
os mesmos; nus e entregues. “Clarice sabia: amar é um verbo sem passado. Uma
vez tendo amado nunca mais se deixa de amar.
[…]
Amar e viver são verbos sem pretérito” (COUTO, 2010, p.210). Esse foi o
resultado do primeiro reencontro; alfinetadas no amor ferido e a permanência do
sentimento verdadeiro. Até que um dia Clarice decide sair do profundo abismo em
que caíra e dá uma reviravolta em suas atitudes. Trocou a bebida por roupas
bonitas, as lágrimas por uma maquiagem instigante, decidira agora ser Adélia.
Iria ganhar as ruas, conheceria novos amores, desejaria e ficaria com quem
quisesse. Se João Rosa estava com outra porque ela ficaria sozinha e degustando
os seus vinhos? O único consolo era a música olhos nos olhos de, Chico Buarque.
Agora era a sua vez de provocar e se sentir desejada. Quando estava prestes a
sair pela imensidão das ruas, Clarice, depara-se com João Rosa. Ele viera buscar
os livros que haviam ficado, no entanto, sua ex-mulher não tinha mas tempo de
atendê-lo. Clarice agora era do infinito mundo e para João Rosa ali acabava o
seu. Observá-la atravessando a rua em busca de uma outra vida, não era o que os
olhos de João gostaria de ver. Por isso hesitou pela partida da amada:
– Eu
estou cego, Clarice! – Você apenas está chorando, meu querido. – Chorando, eu?
-Eu sei. Porque esses, no seu rosto, são os meus olhos. E lágrimas que não eram
suas desceram como gota de chuva em vidro de janela (COUTO, 2010, p.210).
São com essas últimas linhas que Mia Couto finaliza o conto.
São com essas últimas linhas que Mia Couto finaliza o conto.
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Fonte: http://www.contioutra.com/
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