quarta-feira, 20 de maio de 2015

Olhos nos olhos ou olhos nus: olhos

Por Isabel Nobre
Em 2010 foi lançado um livro com dez contos de autores variados, chamado Essa história está diferente. O que todos esses contos têm em comum? Todos foram inspirados em músicas de Chico Buarque. Dentre eles, um particularmente, chama atenção. O nome desse conto é Olhos nus: olhos, do africano Mia Couto. O conto é a expressão de como o recurso da intertextualidade pode ser uma forma de criação literária. As letras de Chico já contém um rico material e Mia o aproveita com maestria.
Mia Couto, que é um amante da música e literatura brasileira assumido, escreve esse conto com claras referências à música olhos nos olhos, composta pelo nosso Chico e inserida no álbum Meus Caros Amigos (1976).
Os personagens são: Clarice, a mulher abandonada que sofre; João Rosa, o ex-marido que descobre que não é possível se separar de alguém de verdade e Adélia, a nova namorada do ex-marido de Clarice. A título de curiosidade, os nomes das personagens são homenagens de Mia a grandes nomes da literatura, Clarice é Clarice Lispector e João Rosa é João Guimarães Rosa. Entretanto, é necessário frisar que as homenagens cessão aos nomes. Clarice é no conto uma mulher que se encontra triste e reflexiva, e pode até parecer com a Lispector, mas João Rosa é um economista sedutor, que não consegue enfrentar a ex-mulher, que é completamente diferente o médico altruísta Guimarães Rosa.
No conto, João Rosa, homem galante, que já se envolveu com muitas mulheres, mas nunca se lembrava dos nomes, talvez porque jamais tenha realmente amado alguém, exceto, Clarice. Um talvez de incerteza que quase sempre denuncia os amores eternos. João Rosa decidiu então apaziguar seu amor por Clarice com uma nova paixão, Adélia. A embriaguez da sedução entrelaça o coração dos dois amantes, os olhos negros e a gramática refinada de João Rosa, atuam como checkmate na indecisão de Adélia. Muitas vezes ela não compreendia o significado de algumas poesias, mas do que importava? O seu corpo possuía inúmeros adjetivos que superavam a emissão de qualquer advérbio. Foi assim que começou a paixão vulcânica entre ambos. Adélia era para João como uma pausa entre uma longa corrida, como um alívio.
Fica evidente para todos, e até mesmo para João, que ele ainda amava Clarice, quando deitado na cama com Adélia, João explica que não a havia visto na plateia onde dava uma palestra, que chorou ao final junto com os aplausos, coisa atípica para um homem como ele.
– Pois, foi pena não poder ver os meus olhos cheios de orgulho por lhe ver ali, brilhando no pódio. – Ficou vaidosa? – Me derreti. – Pois eu lhe digo meu amor, a sala estava toda Clarice… Perdão, queria dizer: a sala estava toda claríssima. (COUTO, 2010, p.203).
João Rosa esquecia-se de apenas um detalhe, deixara toda as suas coisas na casa da ex-mulher. Roupas, livros, sapatos, vinhos e os infinitos dissabores do amor. Passou a morar na casa de Adélia, e adiava sempre a visita à antiga residência. A atual namorada não se conformava, porque ele sempre evitava retornar ao antigo lar. Se já não havia mais nada entre os dois porque resistir ao encontro? Mas era em tal situação que Adélia enganava-se, acerca de João Rosa e Clarice existia um silencioso emaranhado de entrelinhas.
Para extinguir o amor Clarice matou da memória João Rosa, ela fingia viver em luto eterno mediante a separação. Passou a esquecer da existência nos gargalos da bebida, embriagava-se para não fazer mais parte do grupo dos esquecidos. Era assim que ela sentia-se, uma viúva de um amor morto. Já João Rosa afogava as dores da ausência de Clarice nos braços e pernas de Adélia, era um fogo corrosivo que tornava a recente paixão uma companhia essencial.
Após evitar por vários meses um reencontro com Clarice, Rosa, retorna ao antigo lar. Em cada batida da porta era como se a madeira lhe rasgasse a carne e cortasse a alma, o amor ali ainda existia. Clarice continuava em luto, profundamente, ferida pela partida do seu amado, entregava-se ao álcool, no entanto, a mágoa que sentia de João Rosa era imperdoável. O reencontro dos dois no antigo lar, onde viveram por anos, agora se resumia em cinzas, apenas os olhos permaneciam os mesmos; nus e entregues. “Clarice sabia: amar é um verbo sem passado. Uma vez tendo amado nunca mais se deixa de amar.
[…] Amar e viver são verbos sem pretérito” (COUTO, 2010, p.210). Esse foi o resultado do primeiro reencontro; alfinetadas no amor ferido e a permanência do sentimento verdadeiro. Até que um dia Clarice decide sair do profundo abismo em que caíra e dá uma reviravolta em suas atitudes. Trocou a bebida por roupas bonitas, as lágrimas por uma maquiagem instigante, decidira agora ser Adélia. Iria ganhar as ruas, conheceria novos amores, desejaria e ficaria com quem quisesse. Se João Rosa estava com outra porque ela ficaria sozinha e degustando os seus vinhos? O único consolo era a música olhos nos olhos de, Chico Buarque. Agora era a sua vez de provocar e se sentir desejada. Quando estava prestes a sair pela imensidão das ruas, Clarice, depara-se com João Rosa. Ele viera buscar os livros que haviam ficado, no entanto, sua ex-mulher não tinha mas tempo de atendê-lo. Clarice agora era do infinito mundo e para João Rosa ali acabava o seu. Observá-la atravessando a rua em busca de uma outra vida, não era o que os olhos de João gostaria de ver. Por isso hesitou pela partida da amada:
– Eu estou cego, Clarice! – Você apenas está chorando, meu querido. – Chorando, eu? -Eu sei. Porque esses, no seu rosto, são os meus olhos. E lágrimas que não eram suas desceram como gota de chuva em vidro de janela (COUTO, 2010, p.210).
São com essas últimas linhas que Mia Couto finaliza o conto.
----------------------
Fonte: http://www.contioutra.com/


Nenhum comentário:

Postar um comentário