Sartre sempre atual. A seguir, um arguto trabalho o tendo em perspectiva, com foco na questão da liberdade/dinâmica psicológica, o que, claro, implica ter em conta o seu 'Esboço para uma Teoria das Emoções', trabalho que, como sabemos, procura elucidar o fenômeno sentimental no ser humano. Emoções no espelho. Algo como que uma pintura abstrata: expressão imaginária de situações e sentimentos.
Quadro abstrato - Mariza Protzek: sentimentos a partir de O Último Samurai |
Por Daniela Ribeiro Schneider (UFSC)
A imaginação é como um braço extra, com o qual
você pode agarrar coisas que de outra forma não estariam ao seu alcance.
(Sartre)
O que faz
uma pessoa agir, muitas vezes, “contra a sua própria vontade”? Como explicar,
por exemplo, que alguém não suporte mais a rotina de, mesmo sem necessidade,
lavar as mãos constantemente, mas, ainda assim, por mais que lute contra, não
consiga parar com esse comportamento compulsivo? Ou que um indivíduo que sabe
que a ingestão excessiva de álcool o está prejudicando, mas, por mais que
tente, não consegue parar de beber? Poderíamos dizer que essa pessoa é livre?
Como entender, então, em Sartre, a noção fundamental, de que “o homem é
liberdade”, se muitas vezes nos experimentamos, ao contrário, como que determinados a
realizar certos atos, a viver certas emoções, ainda que não queiramos? O
próprio Sartre (1943, p. 553) expressa essa contradição em uma passagem de O
Ser e o Nada:
[...] os
psicoastênicos que Janet estudou sofrem de
uma obsessão que eles mantêm intencionalmente e da qual querem ser curados.
Mas, precisamente sua vontade de ser curados tem por objetivo afirmar essas
obsessões como sofrimentos e,
em decorrência, realizá-las com toda sua força.
Da
mesma forma, um paciente expressou apropriadamente tal contradição quando, ao
sofrer de agorafobia e experimentar-se impossibilitado de tomar um ônibus
devido à ansiedade que o acometia, afirmava em sua simplicidade: eu sei que posso ir ao centro, ir para
lá ou para cá; ainda que alguém me diga para não ir, eu posso ir se quiser, não
tem nada que me impeça, eu sou livre para fazer o que eu quiser, no entanto, eu
não consigo... é isso que me desespera! (sic).
É exatamente essa incongruência entre o antropológico (poder escolher ir e vir)
e o psicológico (não conseguir entrar no ônibus) que temos que explicar.
Pareceria
mais fácil entender tal situação se recorrêssemos à explicação, já popularizada
e apropriada pelo senso comum, dos “mecanismos inconscientes”, conforme postula
a psicanálise. A constatação que serviu a Freud de ponto de partida para a
constituição da psicanálise foi a de que “a histeria era uma patologia que
tinha origem numa situação traumática que acabava por produzir idéias
inconscientes no interior do psiquismo; essas idéias estariam ativas e agindo
sobre o paciente, produzindo seus sintomas” (Fulgêncio 2003, p. 139). Portanto,
a explicação dos sintomas dos pacientes adviria de seus mecanismos
inconscientes, baseada em noções como trauma, psiquismo interior, etc. Sartre e
outros críticos consideram essa concepção a dimensão
metafísica da psicanálise.
Será que a única alternativa que temos para explicar tais fenômenos cotidianos
é recorrer a essesmitos metafísicos? É possível compreender essa
contradição entre a liberdade do sujeito e a
experimentação de uma certa determinação psicológica sem
precisar apelar às concepções subjetivistas, tão comuns na psicanálise e nas
psicologias mentalistas? A perspectiva do existencialismo sartriano,
considerado em sua ontologia, antropologia e psicologia dialéticas, traz-nos
outro horizonte de compreensão.
Portanto,
a elucidação do paradoxo entre liberdade e dinâmica
psicológica, conforme
elaborada pela psicologia existencialista, é o desafio que nos propomos
enfrentar neste artigo. Para tanto, vamos discutir as seguintes questões: 1) o
projeto fundamental da obra técnica de Sartre desemboca na proposição de uma
nova perspectiva para a psicologia clínica, estabelecida a partir de
interlocuções com a psicanálise freudiana; 2) a história de um indivíduo
concreto, utilizada como estudo de caso no
transcorrer da explanação, especificamente a biografia do poeta francês Jean
Genet, escrita por Sartre, exemplifica os fundamentos de sua psicologia
clínica; 3) o conceito de liberdade em Sartre e suas implicações para a
compreensão do humano; 4) a questão da dinâmica psicológica e seus
desdobramentos para o entendimento dos impasses psicológicos.
Com
o esclarecimento desses itens, estabelecemos as bases para a compreensão do
desafio que nos dispusemos a enfrentar nestas reflexões.
Sartre, psicologia clínica e psicanálise
A
psicologia, a partir de sua constituição enquanto disciplina, no século XIX,
tornou-se um dos alicerces dosaber antropológico moderno, quer dizer, do
conhecimento e da postulação acerca do homem, de suas características, de suas
possibilidades de ser. Sartre, desde o início de seus estudos no campo da
filosofia, compreendeu a relevância do conhecimento psicológico na definição do
ser do homem hodierno. Dessa forma, o filósofo debruçou-se sobre essa
disciplina em função de tal importância, além da influência sofrida pela
fenomenologia de Husserl e de Heidegger, que realizavam uma crítica contumaz ao
psicologismo dominante no final do século XIX. Sartre começou suas incursões
teóricas elaborando proposições no campo da psicologia (Sartre 1936, 1938,
1940); voltou-se, porém, à filosofia pela necessidade técnica de melhor
fundamentar seus estudos naquela área, na medida em que constatava que não
havia uma ontologia à disposição que lhe possibilitasse as mudanças necessárias
para a constituição de uma nova psicologia (Bertolino 1995).
Esse
intelectual, mais conhecido pelo seu perfil de filósofo, foi também um
pesquisador sistemático da psicologia, sendo que sua obra técnica inscreve-se,
boa parte dela, nesse campo. Poderíamos afirmar que, primordialmente, o projeto
fundamental do trabalho técnico de Sartre foi reformular a psicologia, o que
realizou numa démarche coerente
com a ciência contemporânea, totalmente diferente daquela do empirismo e da
metafísica, perspectivas que determinaram a constituição daquela disciplina até
aquele momento histórico (Schneider 2002).
Sartre
realizou sua compreensão psicológica em moldes totalmente diversos dos que
tinham sido elaborados pela psicologia e a psicanálise até então, ao colocar em
xeque: 1) a perspectiva subjetivista, na qual tudo se resolve “no mundo interno
do sujeito”; 2) a perspectiva mentalista, que entende esse mundo
internosubstancializado
em uma estrutura mental que,
uma vez constituída, ganha motor próprio; 3) a concepção metafísica do
psiquismo, como vemos aparecer nos conceitos da metapsicologia freudiana.
Sartre traz a dialética definitivamente para o corpo da psicologia, sem perder
de vista a subjetividade e o sujeito. Dessa forma, na psicologia
existencialista, a noção de doença mental não
tem lugar. O francês não trabalhará nem com a noção de doença, por implicar a
criticada noção organicista de entidade mórbida, herança da medicina e psiquiatria
clássica, nem com a noção de mental, como vimos acima. Em conseqüência,
será outra a sua compreensão dos processos de impasse psicológico e da loucura,
já que outra é a sua noção de consciência, de mundo e de personalidade.
Quando
Sartre escreveu parte de sua obra psicológica, nos anos 1930-40, inclusive
elaborando a proposição de uma metodologia para a psicologia – sua psicanálise
existencial – contida no livro O
Ser e o Nada, tinha
interesse na viabilização prática, clínica, da psicologia que elaborava. A
psicologia clínica ainda não havia nascido oficialmente na França, pois só se
estruturou enquanto disciplina independente a partir de 1945, com a obra de
Daniel Lagache. O existencialista acompanhava, no entanto, o movimento de
constituição dessa área de atuação, bem como da consolidação da psicanálise em
solo francês, mantendo relações intelectuais profícuas com psiquiatras e
psicanalistas de sua época, como Daniel Lagache, já citado, J. B. Pontalis,
entre outros, o que demonstra que esses temas faziam parte de seu contexto
intelectual e de seu campo de interesses. Em boa parte de suas obras
filosóficas Sartre dialoga com psicanalistas, psiquiatras, psicólogos clínicos.
No Imaginário, o existencialista debate as teorias
sobre a imaginação que aparecem em Pierre Janet, Lagache, Binet, Alain, Wallon,
Dembo, Freud, discutindo, inclusive, patologias da imaginação a partir de casos
clínicos descritos na literatura da área. Em o Esboço
de uma teoria das emoções,
destrincha as teorias clássicas da emoção: William James, Janet, os teóricos da
Gestalt, além da psicanálise, para, por fim, propor sua própria teoria
fenomenológica da emoção. Essas referências demonstram como Sartre construiu
sua obra em interlocução com o contexto daquilo que viria a ser a psicologia
clínica e a psicanálise francesa.
Portanto,
quando Sartre propôs a sua psicanálise existencial, ele não estava simplesmente expondo
um método para a psicologia, mas, especialmente, para a clínica
psicológica,
entendida por ele como sinônimo depsicanálise, pois esse era o único
modelo de clínica vigente em sua época (anos 1930 e 1940) que superava o modelo
marcadamente neurológico e organicista da psiquiatria de então, já bastante
criticado pelo existencialista. É por isso que acabou por utilizar o termo psicanálise, o que foi considerado por muitos
como uma impropriedade, pois na verdade sua concepção contrapõe-se àquela
teoria em muitos aspectos. No entanto, a função do termo é a da demarcação da
sua proposição no campo da clínica. A sua argumentação de que “esta psicanálise
ainda não encontrou seu Freud; quando muito, pode-se encontrar seus prenúncios
em certas biografias particularmente bem-sucedidas” (Sartre 1943, p. 663)
demonstra como sua preocupação era a de viabilizar uma prática clínica para sua
psicanálise existencial.
Sartre
deixar-se-á influenciar pela rica experiência clínica da psicanálise,
interessando-se pela temática das neuroses e demais psicopatologias, buscando,
a partir de seu exemplo, construir um novo método de investigação e intervenção
na realidade humana:
Somente uma
escola partiu da mesma evidência original que nós: é a escola freudiana. Para
Freud, assim como para nós, um ato não se limita a si mesmo: ele reenvia
imediatamente a estruturas mais profundas. A psicanálise é o método que permite
explicitar tais estruturas. Freud se questiona como nós: em que condições é
possível que tal pessoa realiza tal ação em particular. E ele recusa como nós
de interpretar a ação pelo seu momento antecedente, quer dizer, de conceber um
determinismo psíquico horizontal. O ato lhe aparece como simbólico, quer dizer, parece traduzir um
desejo mais profundo, que ele mesmo não saberia interpretar senão a partir da
determinação inicial da libido do sujeito. Somente que Freud acabou, assim, por
constituir um determinismo vertical. (Ibid., p. 535)
Dessa
forma, Sartre “tem o desejo de se apropriar de um instrumento admirado (a
psicanálise), mas lamenta vê-lo desvirtuado por aqueles mesmos que o
inventaram. (...) O existencialista lançou-se em relação à psicanálise como um
companheiro de percurso, só que em uma perspectiva crítica” (Lavers 1990, p.
172).
Sartre
aproximar-se-á da compreensão de dinâmica psíquica, ou seja, da noção de que os atos do
sujeito têm significados que remetem à sua constituição psicológica, ganhando
uma dinâmica transcendente às condições sociomateriais que a geraram. No
entanto, Sartre o faz sem apelar para o determinismo
vertical, que ele
critica em Freud, quer dizer, sem utilizar a noção de causalidade
psíquica, que
compreende as situações psicológicas a partir de ocorrências ou traumas
recalcados no passado. Na psicanálise freudiana, ficamos presos a uma
reconstrução determinista da vida psíquica, muito ao contrário do que concebe o
existencialismo, para o qual o futuro, o projeto, é que são fundamentais para
se compreender o significado da realidade humana. Como explicita Cannon (1993),
em seu livro intitulado Sartre e a Psicanálise, esses aspectos conduzem a uma
diferença de metodologia entre a psicanálise existencial e o freudismo. Através
da análise regressiva, Freud não introduz senão a primeira metade do método.
Ele reconhece que seu método deve permanecer analítico, mais do que sintético:
ele pode reconstruir o passado, mas não pode predizer o futuro. Sartre (1943,
p. 536) discute que “devemos aplicá-lo [o método psicanalítico] no sentido
inverso. Nós concebemos, com efeito, todo ato como fenômeno compreensível e não
admitimos o acaso determinista
de Freud. Mas, em lugar de compreender o fenômeno considerado a partir do
passado, concebemos o ato compreensivo como um retorno do futuro sobre o
presente”.
Essa
crítica à temporalidade em Freud não significa desconsiderar a importância da
história na constituição do sujeito. Ambas as perspectivas tomam o ser humano
como uma historialização perpétua, considerando o homem em sua situação
concreta, ou seja, no desenrolar histórico de suas relações com o mundo, com os
outros e, especialmente, com a família.
A
psicanálise é um método que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a
maneira pela qual a criança vive suas relações familiares no interior de uma
sociedade dada. (...) O existencialismo acredita poder integrar este método
porque ele descobre o ponto de inserção do homem em sua classe, isto é, a
família singular como mediação entre a classe universal e o indivíduo: a
família, com efeito, é constituída no e pelo movimento geral da história e
vivida, de outro lado, como um absoluto na profundidade e na opacidade da
infância. (Sartre 1960, p. 47)
As
duas psicanálises não objetivam, assim, restaurar um evento psíquico isolado,
mas, sim, o processo de constituição do sujeito, ao afirmarem que o indivíduo é
um todo não fragmentado (Cannon 1993). Ambas destacam “o acontecimento crucial
da infância e a cristalização psíquica em torno desse acontecimento” (Sartre
1943, p. 657). Essa cristalização é
fundamental para o entendimento da questão da dinâmica
psíquica em ambas as perspectivas, pois
exatamente nessa cristalização ocorre a absolutização
do cogito, segundo
Sartre (conforme explicaremos mais adiante), ou instaura-se o evento
traumático, segundo
Freud, situações que estão na raiz das psicopatologias. No entanto, o
existencialista rejeita “a linguagem e a mitologia coisificante da psicanálise”
(ibid., p. 91). A dinâmica psíquica na
psicanálise freudiana, quando traduzida numa linguagem física de interação de
forças psíquicas, que se explicita em noções como censura, pulsão, sublimação,
etc., é considerada como uma herança metafísica da psicanálise. Afirma o
filósofo que:
Se
renunciarmos, com efeito, a todas as metáforas que representam a repressão como
um choque de forças cegas, teremos de admitir que a censura deve escolher e,
para escolher, deverepresentar-se. Por outro lado, como ela deixaria
passar impulsos sexuais lícitos e permitiria que necessidades (fome, sede, sono)
se exprimissem na consciência clara? Como explicar que ela possa relaxar sua
vigilância, que ela possa mesmo ser enganada pelos disfarces dos instintos.
(...) Pode-se admitir um saber que seja ignorante de si mesmo? (Ibid., p. 91)
A
crítica do existencialista não é exatamente ao uso da noção de forças, pois estas são constatações
objetivas, ainda que não dadas à observação empírica, pois as forças, até mesmo
as físicas, não se dão à simples percepção, mas sim à verificação de um
conjunto de características de um dado fenômeno, compreendido enquanto
articulação de ocorrências por relações de funções (Bertolino 2003). As forças
sociológicas, as que nos interessam na questão da dinâmica psicológica, são
ocorrências de pressão social, advindas de seu contexto material, sociológico,
que levam o sujeito a experimentar-se atraído ou repelido por certas situações.
Diz Sartre, em O Imaginário: “há aqui este espaço pleno de
vetores de tensão, de linhas de forças que Lewin chama de espaço hodológico. No
entanto, no lugar de rodear a mim, ele rodeia e pressiona um certo objeto que imagino no
meio dos outros e que é o eu-objeto” (Sartre 1940, p. 334). Em A
Transcendência do Ego afirma:
“tudo se passa como se nós vivêssemos num mundo em que os objetos, além de suas
qualidades de calor, odor, forma, etc., tivessem as de repulsivo, atrativo,
encantador, útil, etc., e como se essas qualidades fossemforças que
exercessem sobre nós certas ações” (Sartre 1936, p. 42). Portanto, a crítica
sartriana ao ponto de vista dinâmico em Freud é dirigida, mais especificamente,
à utilização do “paradigma neurofisiológico evolucionista” (Cannon 1993, p.33),
que leva o psicanalista a lançar mão de um arcabouço especulativo contido em
noções como pulsão, libido, censura, entre outras, enquanto elementos
constitutivos da concepção deaparelho mental, quer a partir do modelo
tópico, quer do modelo econômico, que acabam por substancializar o
psíquico, aspecto incompatível com a concepção sartriana de consciência.
Além
disso, Sartre considera uma contradição o fato de a psicanálise freudiana, em
sua prática clínica, pautar-se por relações de compreensão e, ao mesmo tempo,
pela elaboração de uma metapsicologia, que estabelece relações de causalidade,
sustentando-se em uma interpretação genérica dos atos humanos, a partir de um
simbolismo a priori. Argumenta que esses dois tipos de
ligação são incompatíveis:
Por isso,
o teórico da psicanálise estabelece laços transcendentes de causalidade rígida
entre os fatos estudados (no sonho, uma pregadeira de alfinetes “significa”
sempre seios de mulher e entrar numa carruagem “significa” praticar o ato
sexual), enquanto o prático assegura os êxitos estudando os fatos de
consciência em compreensão, isto é, procurando com flexibilidade a relação
intraconsciente entre simbolização e símbolo. Pela nossa parte, não repelimos
os resultados da psicanálise quando estes são obtidos através da compreensão.
Limitamo-nos a negar todo o valor e toda a inteligibilidade à sua teoria
subjacente da causalidade psíquica. (Sartre 1938, p. 65-66)
Essa
distinção entre a psicanálise dos fatos clínicos e os conceitos
metapsicológicos freudianos remete à crítica da metapsicologia como a dimensão
metafísica da psicanálise, fruto de uma ficção científica, remarcada por vários
autores, entre eles Grünbaum A. e Holzman P (1993), Mannoni (1982), Spence
(1992), Fulgêncio (2003, p. 145), que assinala que a metapsicologia constitui
“a superestrutura especulativa da psicanálise”, bem como Loparic (1999, p.
356), que argumenta que
[...] a
sua metapsicologia não é senão a tentativa de construir vários tipos de
metáforas (...) que permitam visualizar o inconsciente e o psiquismo em geral.
(...) Esses modelos eram tidos como estritamente causais. O caráter não
experencial das especulações só aprofundam o seu naturalismo.
Sartre
rejeita, peremptoriamente, a metapsicologia psicanalítica, considerando que as
contribuições da clínica psicanalítica são muito importantes para serem
reduzidas a uma mitologia coisificante. Daí o existencialista definir a
compreensão da dinâmica psicológica, fenômeno facilmente constatável na
atividade clínica, numa nova perspectiva, a partir de uma démarche dialética.
É
bem por isso que Sartre, em suas biografias, seu Saint
Genet, por exemplo,
utilizar-se-á da perspectiva psicanalítica, no sentido de buscar a elucidação
da infância, através dos processos de mediação familiar, enquanto determinante
do projeto de ser do sujeito. Ao mesmo tempo, porém, justamente para não cair
num subjetivismo, traz a contribuição do marxismo, com a análise das
determinantes sócio-históricas do sujeito. Dessa forma, realiza o movimento
progressivo-regressivo (Sartre 1960), através do qual explica o individual a
partir do contexto da época e a época a partir das experiências concretas dos
sujeitos e grupos. Diz Sartre (1976, p.100): “desde o início eu utilizei
conjuntamente os dois métodos. Considero ser impossível falar de uma criança ou
de um jovem sem situá-lo em sua época. (...) Queria mostrar como a infância
interioriza o mundo social”.
Vejamos,
então, a partir da biografia de Jean Genet, a compreensão da dinâmica psíquica
na perspectiva existencialista, bem como sua relação com a noção de liberdade
humana.
A biografia de Jean Genet
Em
seu Saint Genet: ator e mártir, Sartre escreve a
biografia de Jean Genet, poeta e escritor francês de grande renome no século
XX, autor de livros como Nossa Senhora das Flores, Diário de um
Ladrão, Querelle (filmado por Fassbinder), entre
outros. Na sua adolescência e início de vida adulta, Genet foi ladrão,
homossexual prostituído, mendigo. A questão que Sartre se propôs a compreender
foi como alguém “destinado” a ser um excluído social conseguiu fazer uma reviravolta
e tornar-se um escritor reconhecido? Para responder a essa questão, elaborou a
biografia do poeta, utilizando-se do método de sua psicanálise
existencial.
Falaremos aqui somente de aspectos de sua infância, pois o espaço limitado não
permite maiores detalhes.
Genet
foi abandonado ao nascer, tornando-se pupilo da assistência pública francesa.
Aos sete anos, foi adotado por uma família do interior da França, cujos valores
eram fortemente ligados à cultura camponesa e religiosa, na qual a posse da terra
era muito valorizada e o comportamento devoto e dentro das regras morais era a
exigência; aspectos que marcaram o horizonte de racionalidade do menino. Genet,
por sua condição de bastardo, já se encontrava fora dos padrões requeridos.
Desde cedo, preferiu o isolamento à inserção nos grupos; passava muitas horas
brincando sozinho nos quartos existentes no exterior da casa dos pais (White
1993). Não se experimentava pertencendo àquele ambiente, era como se fosse
sempre um estrangeiro na casa. Tinha ressentimento e hostilidade pelo lugar em
que vivia.
Começou,
na inocência e espontaneidade da infância, a praticar pequenos furtos, como
forma de se apoderar de certos objetos que o fariam proprietário e pertencente
a esse meio hostil. Seus colegas de classe lembram-se dele como uma criança
solitária, que não brincava junto com os outros e que roubava pequenas
bobagens. Um deles declara que “ele pegava pequenas quantias de sua mãe para
comprar balas, coisa que qualquer criança já fez”. Outro lembra que “quando algo
sumia da sala de aula todos já sabiam quem tinha dado o golpe” (ibid., p. 42).
O próprio Genet declara:
Quando eu
era criança eu roubava meus pais adotivos. (...) Aos dez anos, eu não provava
nenhum remorso de roubar as pessoas que eu amava e que eu sabia que eram
pobres. Eu fui descoberto. Eu creio que a palavra “ladrão” me fere
profundamente. Profundamente, quer dizer suficientemente para me fazer desejar, deliberadamente,
ser isto que os outros me fazem enrubescer por sê-lo, de querer ser com orgulho, apesar
dos outros. (Genet apud White 1993, p. 40)
Esse
flagrante marcará a sua história, pois, uma vez acusado de ladrão, passará a
experimentar-se humilhado, definitivamente excluído daquela sociedade. Vive o
despertar de sua ingenuidade: abre os olhos e se dá conta de que rouba.
Volta-se para si mesmo, talvez pela primeira vez. Descobre que é ladrão e que é
culpável. Rapidamente, toda a comunidade onde mora fica sabendo do acontecido;
seu comportamento passa a ser vigiado por todos. Aos poucos, vai assumindo o
papel de “marginal” que sua comunidade lhe outorga, como se essa fosse sua sina
(Sartre 1952). Genet, a partir desse episódio, compreender-se-á como destinado
para o mal. “Serei aquilo que o crime fez de mim”, diz ele (Genet 1983).
Passará boa parte de sua vida como um excluído, sem conseguir tecer-se às
pessoas, sem estabelecer reciprocidade, nem com os criminosos, nem com seus
amantes. Viverá em absoluta solidão.
Detenhamo-nos
nesses poucos elementos para voltarmos à teoria existencialista, utilizando a
biografia de Genet como uma espécie de estudo de caso.
A liberdade enquanto aspecto essencial do homem
Uma
das grandes metas de Sartre, no conjunto de sua obra, foi fazer valer sua
definição de homem enquantoliberdade –
entendendo por isso que ele é o sujeito de sua própria história (engendrando
aquilo que designou como compromisso ontológico), ao mesmo tempo em que é
também sujeito da história da humanidade (desdobrando-se no compromisso
político), constituindo-se, dessa forma, no produtor da realidade social, da
qual, dialeticamente, é também produto.
A liberdade em Sartre é um conceito ontológico. Ou seja, ela é definidora do ser da
realidade humana. É preciso estabelecer, portanto, a estrutura ontológica do
homem. “A liberdade, longe de ser algo a ser conquistado e conferido como
prêmio – visão própria do senso comum – surge com o ser como fato contingente”
(Boechat 2004, p. 116).
Sartre,
ao afirmar que o homem é liberdade, indica que isso só é possível porque a
realidade humana não é umsi mesmo, mas presença
a si, conforme
postula Heidegger. Esclarece o existencialista:
O ser que é
o que é não poderia ser livre. A liberdade é
precisamente o nada que por ter sido no
âmago do homem pressiona a realidade humana a fazer-se, em vez de ser. Nós já vimos que para a realidade
humana ser é escolher-se (...).
Ela está inteiramente abandonada, sem nenhuma ajuda de nenhuma espécie,
entregue a sua insustentável necessidade de se fazer ser até os mínimos
detalhes. Assim, a liberdade não é um ser:
ela é o ser do homem, ou melhor, seu nada
de ser. (...) O homem
não poderia ser ora livre e ora escravo: ou ele é inteiro e sempre livre ou não
o é. (Sartre 1943, p. 516)
Quer
dizer, o ser que é em-si, que coincide consigo mesmo, não pode
ser livre, já que está condenado ao determinismo de ser o que é. O homem,
outrossim, ainda que pretenda, não consegue coincidir consigo próprio, posto
que “é o que não é e não é o que é”, o que quer dizer que ele é obrigado a
fazer-se, em vez de, simplesmente, ser, como vimos acima. Dessa forma, ele é
presença em um mundo que exige sua posição ou atuação constante. Assim, ser é
escolher-se e essa escolha se põe como ação no mundo.
Ser
livre é ter de escolher em cada situação, situação essa que aponta um campo
de possibilidades de ser para o sujeito. Aqui é preciso
esclarecer que a liberdade não pode ser comparada a uma simples escolha
gratuita. Afirma Sartre (ibid., p. 530): “isto não significa absolutamente que
eu seja livre de me levantar ou me sentar, de entrar ou sair, de fugir ou
enfrentar o perigo, se se entende por isso uma pura contingência caprichosa,
ilegal, gratuita, incompreensível”. Da mesma forma, o animal realiza escolhas:
entre esta e aquela comida, entre correr ou ficar deitado, etc. Poderíamos
dizer que está na mesma situação do homem enquanto liberdade? Não. A escolha no
homem é livre nos sentido em que ela transcende a situação dada em direção a um campo
de possibilidades de ser,
aponta ao sujeito um futuro a
realizar. Exatamente esse futuro que se especifica em forma de projeto
de ser,
concretizando-se no mundo enquanto desejo de ser. Quer dizer, o homem tem o seu ser
comprometido nessa escolha, enquanto que o animal não postula um devir. “A
liberdade, se ela reina como mestra, deveria afirmar-se como ruptura, como
tensão em direção ao futuro, como descolamento em relação ao passado”
(Coorebyter 2005, p. 109).
Dessa
forma, ao realizar sua liberdade, o sujeito humano sempre se situa em direção a
um fim, a um projeto de ser, que acaba por definir as
significações do mundo para ele. Sartre (1943) dá o exemplo de um grupo de
pessoas que faz uma excursão a pé: um deles não suporta mais o cansaço e
desiste da caminhada. O senso comum afirmaria que a fadiga provocou sua
decisão, foi o motivo de sua desistência. No entanto, as outras pessoas também
deviam estar cansadas e não desistiram, demonstrando que as pessoas suportam os
percalços de modo diferente! Mas o que as faz agir diferentemente ante as
circunstâncias? Exatamente o fim que perseguem, ou seja, o projeto de ser de cada
um. No exemplo citado, alguém que queira ser esportista, além de ter um melhor
preparo físico, terá que ter uma disposição mais enérgica de enfrentar o
cansaço; já outro, que faz caminhada por puro lazer, sem grande compromisso com
o treino físico, pode se permitir que o cansaço vença mais rápido; ou, ainda,
alguém que tenha por máxima na vida “vencer os desafios”, suporta muito mais
tempo o cansaço do que alguém que se sabe aquele que, ante qualquer
dificuldade, desiste de seus propósitos. O coeficiente de adversidade nas
situações tem seu dado objetivo (a montanha realmente é íngreme), no entanto,
essa adversidade é sempre apropriada singularmente pelo sujeito, que lhe
atribui significados. A desistência da caminhada, no nosso exemplo, foi
expressão da liberdade daquele sujeito, de sua escolha de ser. Ao desistir,
definiu contornos precisos ao mundo onde estava inserido, intuindo que aquelas
montanhas eram muito íngremes e que ele não tinha condições de explorá-las.
Preferiu o risco de ser criticado pelos amigos ao de enfrentar a empreitada.
Sartre
esclarece que é livre aquele ser que pode realizar seus
projetos. No entanto,
é preciso distinguir entre o fim projetado e a realização desse fim; não basta
conceber, para realizar; é preciso agir no mundo na direção dessa realização.
Se assim não fosse, não nos diferenciaríamos de nossos sonhos, nos quais o
possível não se distingue do real. Portanto, a liberdade não é somente dizer
que se quer algo, mas fazê-lo acontecer. O homem é aquele que faz e
nesse fazer se faz. A sua ação compromete-o em determinada direção.
O
existencialista posiciona-se, com firmeza, contra o senso comum e contra toda a
filosofia anterior, ao afirmar que ser livre não significa obter
o que se quer, mas
sim determinar-se a querer. Portanto, a liberdade não diz
respeito ao plano moral, da escolha entre o “bem e o mal”, mas sim ao plano
ontológico, da escolha de ser. A liberdade é constitutiva do ser do homem.
Esclarece mais:
O êxito
não importa em absoluto à liberdade. A discussão que opõe senso comum aos
filósofos vem aqui de um mal-entendido: o conceito empírico e popular de liberdade, produto de circunstâncias
históricas, políticas e morais, equivale à
faculdade de obter os fins escolhidos.
O conceito técnico e filosófico de liberdade, o único que consideramos aqui,
significa somente: “autonomia de escolha”. (Sartre 1943, p. 563)
Portanto, liberdade
de escolher é muito diferente de liberdade
de obter. Sartre cita
o exemplo do presidiário que, apesar de não ser livre para sair da prisão
quando lhe aprouver, é sempre livre, no entanto, para tentar sua libertação;
qualquer que seja sua situação, ele sempre pode projetar sua fuga e descobrir o
valor desse projeto. Nada mais paradoxal do que uma pessoa em situação de
tortura, como ele descreve no conto O Muro: viver a angústia da liberdade em seu
extremo, pois terá que decidir até quanto suportará a dor, se preferirá morrer,
sofrer ao extremo ou contará ao torturador o que ele quer saber.
Sendo
assim, não poderíamos conceber que o homem é livre em certas ocasiões e em
outras não, conforme as condições em que se encontra. Não! O homem ou é
inteiramente livre ou não o é, independente da situação onde se encontre. Não
seria concebível essa dualidade no âmago do ser humano. Sendo assim, somos uma liberdade
que escolhe, no entanto, nós não escolhemos ser livre. Justamente por isso,
afirma Sartre, estamos condenados à liberdade. “Estabelecemos que o para-si é
livre. Mas isto não significa que ele seja seu próprio fundamento. Se ser livre
significa ser seu próprio fundamento, seria preciso que a liberdade decidisse
sobre a existência de seu ser” (Sartre 1943, p. 564).
Estar
condenado à liberdade significa que não podemos deixar de escolher; mesmo não
escolher é ainda escolher: neste caso, uma escolha alienada, quando o ser do
sujeito está em poder dos outros é, ainda assim, uma escolha. O fato de não
poder não ser livre é a facticidade do homem. Isso quer dizer que a liberdade
não escapa ao mundo, de estar nele
situada, de ter de se relacionar com o que está “dado”. Portanto, toda
liberdade é sempre em situação. Esse é seu paradoxo! A liberdade é delimitada
pela situação que, por sua vez, só ganha sentido por ser posta por uma
liberdade.
Não há
liberdade senão em situação e não há situação senão pela liberdade. A realidade
humana encontra por todo lugar resistências e obstáculos que ela não criou, mas
estas resistências e obstáculos não têm sentido senão pela livre escolha que a
realidade humana é. (...) O que temos denominado de faticidade da liberdade é o
dado que ela tem-de-ser e
que ilumina pelo seu projeto. (Sartre 1943, p. 569)
Dessa
forma, a liberdade só existe em uma estrutura de escolha, dada pela situação
onde está inserida. Portanto, o indivíduo se escolhe dentro de determinadas
condições. A liberdade só pode ser em situação, pois em tudo aquilo que a liberdade
empreende há uma face não escolhida por ela, que lhe escapa e com a qual tem de
se haver. Portanto, a liberdade não é gratuita e caprichosa, ela é a escolha
inelutável que o sujeito tem de fazer dentro de determinada situação, ou seja,
dentro de uma estrutura de escolha, que acaba por defini-lo. Por exemplo,
quando Genet foi flagrado roubando, o modo como as pessoas lidaram com a
situação implicou uma estrutura de escolha, na qual Genet, ainda muito jovem,
teve de tomar uma posição. Essa estrutura de escolha definiu-lhe um campo de
possibilidades de ser: Genet decidiu ser ladrão, ainda que na alienação.
Portanto,
uma das características essenciais da liberdade é a do compromisso ontológico,
significando que, ao escolher, ainda que de forma alienada, sob pressão das
circunstâncias, o sujeito escolhe o ser que
ele é e será. A escolha que faz compromete seu ser em um devir. Não adianta em
nada, por exemplo, eu dizer que quero ser uma pessoa calma, se cada vez que me
deparo com uma dificuldade perco o meu próprio controle, começo a roer as
unhas, a brigar com as pessoas próximas, etc. Meus atos acabarão por me definir
como uma pessoa nervosa e os outros me confirmarão nesse perfil que tento
negar. Sou, assim, responsável pelo meu ser, mesmo que esteja numa situação
adversa, perigosa, excludente. Sempre sou responsável pela maneira como vou
enfrentar uma situação, ainda que extrema. A tradicional justificativa para a
desresponsabilização de meus atos, contida na frase “não pedi para nascer”, só
faz enfatizar minha facticidade. Posso indagar por que nasci, declarar que não
pedi para nascer, maldizer esse dia, mas todas essas atitudes não fazem mais do
que fazer com que eu assuma com plena responsabilidade esse meu nascimento e o
torne cada vez mais meu. Portanto, não há como fugir da liberdade, nem a
alienação absoluta me livra dela (ibid.).
Podemos
agora compreender a amplitude da frase: “o essencial não é aquilo que se fez do
homem, mas sim aquilo que ele fez daquilo que fizeram dele” (Sartre 1952). É a
expressão do sujeito enquanto liberdade em situação. Estamos cercados de determinações,
mas, ainda assim, não somos seres passivos, condicionáveis, pois sempre fazemos
algo do que fazem de nós (como Genet fez ao decidir “ser o que o crime fez
dele”), ainda que seja simplesmente corresponder à expectativa dos outros.
Como
vimos, o êxito não importa em absoluto à liberdade. Escutemos o que o filósofo
declara na Conferência de Araraquara:
Eu,
pessoalmente, falei da liberdade em meus livros de filosofia. Creio mesmo que
essa liberdade é a noção capital de nosso mundo. Penso, entretanto, em uma
liberdade alienada. Acho que, por ora, o homem é livre para ser alienado.
Alienação e liberdade não são, em absoluto, conceitos contraditórios. Muito
pelo contrário: se não fosses livre como poderia transformar-te em escravo? Não
se escraviza um pedregulho ou uma máquina: só se escraviza e se aliena a um
homem que, primeiramente, é livre: não há alienação a não ser de um homem
livre. (Sartre 1987, p. 39)
Como
conciliar, portanto, que o homem é condenado à liberdade se ele não escapa à
alienação? Para compreender tal situação, é preciso distinguir diferentes
níveis de realidade: a liberdade é da condição humana; já a alienação – que vem
a ser o fato de não podermos, em termos absolutos, ser senhores de nós mesmos,
na medida em que o sentido de nossos atos sempre nos escapa através do que os
outros fazem de nós –, portanto, é do processo sócio-histórico, pois depende do
contexto cultural em que o homem vive, depende das condições do sujeito
concreto no seu processo histórico de relações. Só uma personalidade, no
sentido existencialista do termo, pode ser alienada, pois é só para quem é sujeito do
seu ser que passa a ser problemático o sentido do seu ser lhe
evadir. Temos de considerar aqui a dimensão psicológica. A liberdade nunca se
aliena, nem a consciência, uma vez que elas são uma condição fática da
realidade humana (nível ontológico). Já o sujeito concreto não tem como escapar
à alienação, uma vez que ela resulta do processo dialético da relação eu/outro,
resulta do fato de o homem não ser fechado em si mesmo, mas de viver em um
constante processo de totalização/destotalização/retotalização. Dessa forma, podemos
passar de uma situação de maior para uma de menor alienação, mas nunca
atingiremos uma desalienação absoluta.
Há
de se distinguir, portanto, as diferentes ordens de realidade. A liberdade não
é um dispositivo da personalidade humana, ela não é de ordem psicológica, mas
sim ontológica e antropológica. Como vimos, eleger-se é escolher-se em um campo
de possibilidades; o homem é aquele que faz e
nesse fazer ele se faz. No entanto, ele não faz o que bem entende, pois está
inserido em uma estrutura de escolha, que define os contornos do seu ser,
levando-o a se saber sendo tal
sujeito específico (Bertolino 2003).
A dinâmica psicológica na psicologia existencialista
Como
compreender a constituição desse saber-de-ser?
O
psicológico é segundo ontologicamente.
O que quer dizer isso? Que a dimensão psicológica no homem não é um dado
primeiro da realidade, como o é, por exemplo, a
consciência ou o corpo, mas sim resultante de um processo de construção. Afirma
o existencialista em seu livro Esboço de uma Teoria das Emoções:
A
psicologia, encarada como ciência de certos fatos humanos, não poderia ser um
começo, porque os fatos psíquicos com que nos deparamos nunca são os primeiros.
São sim, na sua estrutura essencial, reações do homem contra o mundo;
pressupõe, portanto, o homem e o mundo e não podem assumir o seu verdadeiro
sentido se, primeiramente, essas duas noções não forem elucidadas. (Sartre
1938, p. 18)
É
que, no existencialismo sartriano, o subjetivo é um momento do processo
objetivo. O psicológico não é umaentidade em-si, uma estrutura
mental; ele é
transcendente, é um processo dialético de apropriação da objetividade, de
interiorização da exterioridade. O psicológico só existe como subjetividade
objetivada (Sartre 1960). Quer dizer, o sujeito encontra-se inserido em
condições materiais, antropológicas (sociais, culturais), sociológicas
(familiares, relações de mediação) e é no processo de apropriação ativa dessas
condições que se constitui psicologicamente; dimensão essa que imediatamente se
objetiva através de seus atos, de seus pensamentos, de suas emoções (Schneider
2002).
Dessa
forma, a pessoa singular encontra-se condicionada por suas relações humanas. Na
relação com os outros, no entrecruzamento de projetos singulares, constitui-se
a rede sociológica, que se torna algo diferente do que o sujeito fez, na justa
medida em que os outros também a fizeram, voltando-se para ele como uma força
que lhe é constitutiva. Assim, “o acaso não existe ou, pelo menos, não da
maneira como se imagina: a criança torna-se esta ou aquela porque vive o
universal como particular” (Sartre 1960, p. 45).
A
personalização, processo pelo qual o sujeito constitui sua singularidade,
ocorre através de um constante processo de interiorização/exteriorização do
contexto sócio-histórico. “A personalização, diz Sartre, não é mais do que, no
indivíduo, a conservação e a superação (assunção e negação íntima), no seio de
um projeto totalizador, daquilo que o mundo fez – e continua a fazer – dele”
(Sartre 1971, p. 657). Dessa forma, as possibilidades de ser de um sujeito não
são dadas simplesmente por ele; são dadas pelas condições de materialidade,
pelo contexto antropológico, pela rede sociológica à qual pertence, que definem
seu campo de possibilidades de ser, quer dizer, sua estrutura de escolha.
Há,
assim, um contexto antropológico de gênese, que produz um campo de forças
sociológicas1 que
estão na base de qualquer processo de personalização. Dessa forma, um sujeito
objetivado numa dada atmosfera humana, quer dizer, num ambiente cujas
relações envolvem forças e pressões antropológicas e sociológicas,
experimenta-se atraído ou repelido por diferentes situações, e, assim, remetido
a um campo de possibilidades de ser no qual terá de eleger e, assim, eleger-se
em determinada direção (Bertolino 2003; 2004). Pode-se verificar a atmosfera
que envolveu o acontecer de Genet: ao ser adotado por uma família camponesa,
cujos valores eram ligados à propriedade e à religião, uma série de
circunstâncias acabaram por impor a ele a certeza de que não cabia naquele
ambiente, que estava excluído; experimentação de ser que o levou a se inteligir
como que destinado ao
mal, à marginalidade, aos pequenos furtos, a se saber em uma atmosfera de
eterna vigilância. É Genet que escolhe roubar, é ele que escolhe se isolar, mas
em função das possibilidades que a ele se impuseram pelo contexto em que estava
inserido.
O fato de
Genet ter crescido no seio de uma sociedade camponesa, que
define o ser pelo ter,
foi decisivo. (...) Nosso futuro ladrão começou por aprender o respeito
absoluto pela propriedade, daí decorrer ele ser remetido ao roubo, justamente
porque o roubo constitui a transgressão por excelência nesse universo fundado
sobre o direito à propriedade. (Coorebyter 2005, p. 123)
As
escolhas cotidianas ocorrem no nível antropológico e não psicológico, ou seja,
são livres. No entanto, ao serem realizadas, tais escolhas instauram um
psicológico, pois, ao eleger sobre o que os outros fizeram de nós, o sujeito se
escolhe em um cogito, quer dizer, em um modo de se
saber sendo tal sujeito específico. O cogito é,
pois, a consciência de existência que
se impõe a partir das situações concretas onde o sujeito está inserido, sendo
que nele o sujeito se reconhece como aquele que realizou tais ações, que teve
tais emoções e que, portanto, é esta ou aquela pessoa. Ao lançar-se livremente
em dada direção, a possibilidade escolhida acaba por se impor a ele como um
futuro que deve ser realizado, ou seja, como um destino, que acaba por engendrar sua dinâmica
psicológica. O
sujeito experimenta-se, assim, como que arrastado por forças alheias, como se
algo o estivesse fazendo agir, quando, na verdade, ele sabe que é ele próprio
que se lança nessa direção, daí o sofrimento gerado pelas situações de impasse
psicológico (Bertolino 2003), conforme podemos ver na biografia de Genet:
Um
acidente lançou Genet em uma lembrança da infância e esta se tornou sagrada. Em
seus primeiros anos, jogou-se em um drama litúrgico, do qual foi o oficiante:
teve o paraíso e o perdeu, era criança e o expulsaram de sua infância. Sem
dúvida, esse corte não é facilmente localizável: muda de lugar, ao sabor de
seus humores e de seus mitos, entre os dez e os quinze anos. Pouco importa, o
corte existe, Genet acredita nele. (...) Passou a jogar seu destino em um lance
de dados. (Sartre 1952, p. 9)
Assim,
a partir do contexto antropológico, constituem-se arranjos sociológicos que
induzem o sujeito a umarranjo racional imanente, gerando a certeza
de ser este e não aquele indivíduo; pois o
arranjo racional é oteorema que se impõe ao sujeito a partir dos
elementos racionais, emocionais, sociológicas que o afetam na atmosfera em que
está inserido, teorema esse que o remete ao redemoinho de seu saber
de ser (Bertolino 2003). Assim, em seu Saint
Genet, o existencialista
explica: “é possível traçar, com uma certa fidelidade, as etapas pelas quais
Genet se transforma lentamente, para si mesmo, num estranho. E veremos que não
se trata mais do que de uma interiorização progressiva da sentença dos adultos”
(Sartre 1952, p. 41).
O cogito é,
assim, a síntese de vários perfis do sujeito, cada qual com seu saber de ser.
Genet se sabia ladrão, homossexual, mendigo, solitário. Seu cogito foi
a síntese desses vários perfis, pois, a partir da experimentação psicofísica
ocorrida em cada um deles, intuia-se como sendo destinado
ao mal, possuidor de
uma natureza maléfica, dizia o próprio poeta. Sabia-se excluído e objeto
para os outros: por
isso, ele mesmo se excluía das situações. Antecipava as situações a partir
dessa certeza; quando as pessoas lhe estendiam a mão, via nesse ato segundas
intenções. Mesmo depois de ser escritor famoso, já em outro contexto
antropológico e sociológico, em outra condição material, Genet, ainda assim,
não conseguia se tecer às pessoas, ter amizades. Permaneceu prisioneiro de seu cogito
absolutizado.
O cogito acontece
a todo e qualquer sujeito e é, por isso mesmo, como Sartre (1965) assinala, uma
empresa pessoal. “A forma lingüística cogito indica
que o cogitare é
efetuado em primeira pessoa e designa, bem como oego, ao autor dessa
efetivação. (...) Dessa forma, o ego opera, por nela se reconhecer, em toda
região da experiência” (Desanti 2005, p. 578).
Aqui
aparece o erro de Descartes, pois este fez do cogito um universal
a priori, uma abstração, um princípio
primeiro da filosofia, quando o cogito é,
na verdade, uma experiência concreta, singular e histórica, pois cada sujeito
tem a sua forma específica de apreender sua existência e se saber nela. O cogito não
é primeiramente reflexivo, como tenta nos convencer o filósofo racionalista;
ele é pré-reflexivo, esclarece Sartre, ou seja, ele é irrefletido e espontâneo.
“O cogito pré-reflexivo
é condição para o cogito cartesiano”,
ou seja, para o cogitoreflexivo, afirma Sartre (1943, p.
20).
O
plano da espontaneidade é aquele no qual não estamos posicionais enquanto
sujeito, é a consciência não judicativa. Nele realizamos as nossas ações,
nossos pensamentos, nossas emoções, sem tomarmos distância delas, estamos como
que engolidos pela nossa experimentação concreta. “Tudo é, portanto, claro e
lúcido na consciência: o objeto está face a ela em sua opacidade
característica, mas ela é pura e simplesmente consciência de ser consciência
desse objeto, é a lei de sua existência” (Sartre 1936, p. 24). É o que Sartre
denomina consciência de primeiro grau, na qual não há lugar para o eu, sendo, portanto, não posicional
deste. Depois temos de nos haver com a situação que experimentamos, temos de
nos apropriar, tomar distância daquilo que fizemos,
pensamos, sentimos anteriormente. Tomamos a situação anterior como objeto,
refletimos sobre ela e, ao fazer esse exercício, aparecemos perante nós mesmos,
ficamos posicionais do eu, posicionamo-nos enquanto sujeitos. É o que Sartre
define como consciência de segundo grau (ibid.).2 Essa
apropriação, que é sempre reflexiva, é nosso esforço de harmonizar aquilo que
fizemos espontaneamente (nossas escolhas) com aquilo que somos (somos aquilo
que nos sabemos sendo, aquilo que nosso arranjo racional
nos impõe) (Bertolino 2003).
O cogito não
é, assim, aquilo que um sujeito pretende ser, ou seja, ele não é da ordem nem da
vontade, nem do conhecimento, como queria Descartes. O cogito é
da ordem do saber,3 sendo
uma certeza de ser e,
portanto, dá-se no nível irrefletido, no plano da espontaneidade, da
experimentação psicofísica de ser; ou seja, o cogito é
o sujeito concreto (moi), espontaneamente afetado pelas coisas, pelos
outros, pelas situações. Coisas, outros, situações que, dessa forma, ganham função sobre
o sujeito, ou seja, estabelecem relaçõesnoemático-noéticas, como se
refere Sartre, tomando tal noção de empréstimo a Husserl.4
Essa
propriedade de um objeto afetar uma pessoa tem suas raízes no contexto
antropológico, e é gerada em decorrência da relação estabelecida com tal objeto
ou situação ali contextualizado. A relação noemática-noética é, assim, uma
relação objetiva, temporal, espacial, concretizando-se como sendo a função de
um dado objeto no ser do sujeito. O mito construído por Genet em função de sua
situação de exclusão foi alimentado por preocupações cotidianas: por exemplo,
tinha a certeza de ser um covarde; sendo assim, quando, junto aos seus amantes
fortes e valentões (noema), aparecia seu temor de revelar sua covardia (noese),
experimentando ansiedade, suor frio, tremedeira ante eles, ficando, portanto,
afetado psicofisicamente por essa antecipação. Ou, ainda, ante qualquer olhar
de uma pessoa de bem (noema),
experimentava-se imediatamente excluído, essa certeza tomava conta de seu ser
e, imediatamente, despontava o orgulho de ser do mal, ficava alterado no seu
ser, como que possuído por forças maléficas (noese), remetendo-o aos atos de
contravenção. É bem por isso que “Sartre afirma que se poderia inventar uma psicanálise
dos objetos, fundada
sobre as qualidades dos objetos e a relação dessas qualidades na escolha
individual de ser no mundo” (Cannon 1993, p. 50).
Dessa
forma, ao realizamos uma série de escolhas (que são livres), experimentamos
diferentes afetações psicofísicas de ser, as quais acabam por ser apropriadas
reflexivamente por nós, de sorte que, quando o cogitonos ocorre, já é a totalização do
caminho que fizemos até ali. Aí nós constatamos aquele sujeito que o cogitonos impôs, instaurando nossa dinâmica
psicológica. O cogito ocorre à
pessoa, impõe-se ao sujeito; não é escolhido por ela. É resultante do seu processo
histórico, de sua condição de ser na sua vida de relações. A biografia do poeta
estudado deixa claro como essa situação pôde acontecer: “enquanto Genet rouba
com inocência, enquanto cobiça modestamente a palma do martírio, ignora que
está forjando um destino!” (Sartre 1952, p. 28).
Assim,
o cogito é
decorrente da articulação de um conjunto de ocorrências objetivas, fruto das
escolhas livres do sujeito, mas a forma como o sujeito se
sabe sendo nessas situações não é simplesmente
fruto de sua escolha, mas a imposição de um teorema, que advém dos arranjos sociológicos
com os quais convive e que são apropriados ativamente pelo sujeito, tornando-se
sua dinâmica psicológica.5 Essa
dinâmica pode ser dialetizada ou absolutizada. Este último é o caso de Genet,
que se tornou “o carrasco zeloso de si próprio”, “o tribunal e o réu de si
mesmo”, na medida em que foi tomado pela certeza
de estar destinado à marginalidade (ibid.). Dessa forma,
Genet foi um homem obcecado pela repetição, pois viveu em função de sua certeza
de ser excluído e da possibilidade de sua situação de exclusão repetir-se em
qualquer situação. Genet não conseguiu mudar, no pior dos desvarios,
continuava fiel à moral da infância. (...) A crise original gravou-se nele como
ferro em brasa (ibid., p. 27).
O
regular da realidade humana é haver constante relação entre o antropológico
(dimensão da liberdade) e o psicológico (dimensão da experimentação psicofísica
de ser); ou seja, o regular é o cogito ser
dialetizado, o sujeito ter flexibilidade para enfrentar as contradições da sua
vida de relações. No entanto, ocorre com freqüência haver uma cisão entre o
antropológico e o psicológico, como é o caso de Genet, sendo que a pessoa fica
prisioneira do seu cogito, que se torna, assim, absolutizado
(Bertolino 2003). O sujeito fica, assim, prisioneiro do recurso à
psicologização de si mesmo; retido em sua dinâmica psicológica. O sujeito
privado de sua objetividade torna-se uma liberdade alienada. Eis aí a base da
maioria das psicopatologias.
Todo
dia temos de continuar sendo quem somos, mas não podemos ignorar que podemos
escolher diferente. Queremos mudar e não conseguimos, é como “se algo de fora
nos governasse” porque não conseguimos compreender o próprio fenômeno em que
consistimos, daí instalar-se a dinâmica psicológica (ibid.). É isso que ocorre
na grande maioria dos casos psicopatológicos, como, por exemplo, o dependente
de álcool que é impelido à compulsão. Ele sabe que não deve beber, que se
prejudica fisicamente, socialmente, com a ingestão da bebida; na maioria dos
casos, faz esforços para se livrar do vício, mas não consegue parar. Certamente,
essa dinâmica ocorre em função do acontecimento de diversas situações que o remetem
ao núcleo de seu saber de ser, ou seja, aos seus impasses
psicológicos (que sempre são advindos do seu
contexto antropológico e sociológico) e, para suportá-los, precisa de tal bengala
química. Porém, o
feitiço vira contra o feiticeiro,
pois a bengala, em vez de ajudá-lo, vira seu próprio inferno. Dessa forma, o sujeito experimenta
uma ambigüidade, pois não suporta mais sua situação, mas continua repetindo-a
indefinidamente. Daí ser condenado à repetição, como aconteceu com nosso poeta:
Este é um
passado que não passa, que suscita sempre em Genet reações vivas e
ambivalentes, introduzidas por Sartre sob o duplo signo do horror e
da nostalgia –
o horror, como se este passado estivesse desesperadamente presente; a
nostalgia, como se Genet não a quisesse superar, como se ele participasse de
sua repetição. (...) Esta é a descrição daquilo que Sartre chama de clima
interiorde Genet e
que se identifica ao horror. Tal situação insinua-se sobre sua
repetição. (Coorebyter 2005, p. 110)
Genet
quer escapar ao seu destino, quer despertar do pesadelo: ao ser preso,
denunciado, ele jura que
não recomeçará. Com toda a sinceridade, é claro! Mas, no mesmo momento do
juramento, o olhar dos outros intervêm mais uma vez. Os outros não têm as
mesmas razões para acreditar em suas juras; relacionam-se com um futuro
previsível e imprevisível. “Previsível: Genet errou, logo, errará novamente.
Imprevisível: ninguém sabe a hora do próximo delito. Por não conhecer essa
data, a vigilância dos adultos confere ao roubo uma presença perpétua” (Sartre
1952, p. 42). Tal destino instala-se
na medida em que os arranjos sociológicos (o que cabe ou não nas relações que o
cercam) são condenatórios de suas atitudes. Genet é engolido por
essaatmosfera: ele encarna como sendo sua a expectativa dos outros,
tomará precauções contra si mesmo, temerá a si próprio, aos seus impulsos;
desconfiará de seus próprios juramentos. O futuro se impõe a ele como uma
fatalidade, quer se livrar de seu destino, mas não consegue, pois se experimenta
condenado ao ser quem foi, a ser o sujeito do mal. Dessa forma, seu clima de horror é
encharcado de pura fascinação.
Ainda
que o homem não possa deixar de escolher, já que livre, ainda assim, não
consegue escapar a um certodeterminismo.
De uma
certa maneira nós todos nascemos predestinados. Somos lançados para um certo
tipo de ação desde nossa origem, em função da situação onde se encontra a
família e a sociedade em um momento dado. (...) A predestinação, ela nos coloca
frente ao determinismo: eu considero que nós não somos inteiramente livre – ao
menos provisoriamente hoje, já que somos alienados. (Sartre 1976, p. 98)
É
importante não confundir determinismo com determinação: na medida em que o
sujeito tem um determinismo que lhe é próprio, que define os contornos de sua
relação com o mundo, confunde-se que ele está reificado, no sentido de não ter
como mudar. Não é assim. O ser do homem é um processo contínuo de
totalização/destotalização/retotalização, ou seja, um vir-a-ser, justamente porque
livre. Não esqueçamos que o homem é condenado à liberdade. No entanto, o
sujeito não pode fazer o que bem quiser, nem mudar a toda hora como bem
entender, na medida em que antecipa seu futuro por se saber sendo tal sujeito,
com tais experimentações de ser, lançado em um certo modo específico de relação
com os outros e com as coisas, tendo certos estados emocionais, certas
qualidades de ser, agindo de forma particular, ou seja, enredado em seu
dinamismo psíquico (Bertolino 2003). Daí a necessidade de compreender essa
relação entre liberdade e dinâmica psicológica.
Para
alterar uma dinâmica psicológica, não basta dizer para a pessoa que ela tem que
escolher, que ela pode escolher diferente do que sempre o fez. Ela sabe disso!
Só que ela não consegue! Para alterá-la, tem de intervir no cogito, no saber
de ser, na certeza
que o sujeito formou acerca de si mesmo. Esse sistema de certezas de ser não é
uma simples cognição, uma linha de raciocínios aprendidos e encadeados. Ele é
uma experimentação psicofísica de
ser, ou seja, é o sujeito inteiro encarnado por
este saber de ser quem
ele é.
O
sujeito terá de compreender como ocorre
essa experimentação, quais as situações e objetos que o afetam, como ele é pego
pela atmosfera do ambiente onde se encontra. Terá de localizar-se ante as
determinantes antropológicas e sociológicas que o remetaram a esse saber de
ser, para que possa superar a dinâmica psicológica instaurada por esse cogito absolutizado.
Somente assim conseguirá estar novamente inteiro em seu contexto antropológico,
ter a titularidade de seu ser, ou seja, ser sujeito de sua história, uma
liberdade desalienada.
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phénoménologique de l’imagination.
Paris, Gallimard.
_____
1943: L’Être et le Néant – essai d’ontologie
phénoménologique. Paris,
Gallimard.
_____ 1947: Baudelaire.
Paris, Gallimard (Col. Folio).
_____ 1952: Saint
Genet: Comédien et martyr. Paris, Gallimard.
_____ 1960: Critique
de la Raison Dialectique (précédé de Question de Méthode). Paris, Gallimard.
_____
1965: La Transcendance de l’Ego. Paris, J. Vrin.
_____
1968: Uma idéia fundamental da
fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. Situações I. Lisboa, Publicações Europa-América.
_____
1971: L’Idiot de la Famille – Gustave
Flaubert, de 1821 a
1857. Paris, Gallimard.
_____
1972: Situações IX. Paris, Gallimard.
_____
1976: Situações X. Paris, Gallimard.
_____
1987: Sartre no Brasil: a Conferência de
Araraquara. São
Paulo, Paz e Terra/Unesp.
_____
1997: O Ser e o Nada. Petrópolis, Vozes.
_____
2002: Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis, Vozes.
Schneider,
Daniela 2002: Novas Perspectivas para a Psicologia Clínica – um estudo a partir
da obra “Saint Genet: comédien et martyr de Jean-Paul Sartre. Tese de
Doutorado. São Paulo, PUC-SP.
White,
Edmund 1993: Jean Genet. Paris,
Gallimard (Col. NRF Biographies).
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1 Forças aqui entendidas não no sentido físico do termo, mas
sim, como Sartre (1939) nos explica, no Esboço
de uma Teoria das Emoções, como
“ação que se realiza à distância”, ou seja, como ação virtual.
2 Sartre
(1936), em seu livro A Transcendência do Ego, investiga a relação entre a consciência e o eu,
demonstrando que, ao contrário das filosofias idealistas, que postulam o eu
enquanto pólo unificador da consciência (como, por exemplo, Kant, que, conforme
crítica do existencialista, concebe o eu enquanto presença formal na consciência,
ou Husserl, que prega a presença material do eu na consciência; dessa forma, ambos acabam
por substancializar o psíquico), o que produz a sua unidade é, na realidade, o
objeto. Dessa forma, é uma unidade noemática que unifica as consciências. O eu resulta
desse processo de unificação e não o contrário. Sendo assim, o ego não existe a priori, mas sim
enquanto produto do
processo de totalização do sujeito, enquanto objeto
transcendente.
3 Conhecimento é
a atividade de conhecer realizada por meio da razão ou experiência, ato de
apreender intelectualmente, de tomar abstratamente um fato ou uma verdade,
entendimento. Já o saber, apesar
de no senso comum ser sinônimo de conhecer, significa mais precisamente “estar
convencido de, ter a certeza de, prever”. Em termos etimológicos significa ter
o sabor de, saborear, recordar (Houaiss, 2002). Dessa forma, conhecimento é
fruto de uma investigação racional, de uma consciência de segundo grau, no
dizer de Sartre. Já o saber vem da experiência espontânea, do sabor advindo de
uma experimentação concreta, consciência de primeiro grau.
4 A
noção capital da intencionalidade em
Husserl é que permite a elaboração da ontologia e psicologia dialética de
Sartre. Para Husserl (2001, p. 51): “a palavra intencionalidade não
significa nada mais que essa particularidade fundamental e geral que a
consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de conter, em sua qualidade
de cogito, seu cogitatum em
si mesma”. Dessa forma, esse objeto intencional que é visado pela consciência é
uma unidade noemato-noética, diz Husserl (obid, p. 58). O noema refere-se
aos dados hiléticos (sensíveis), que se tornam intencionais ao contato com a
vivência; já a noésis refere-se,
dessa forma, à intencionalidade, enquanto conjunto de vivências orientadas
subjetivamente. O par noema-noése representa, portanto, a relação intrínseca
entre dois pólos imanentes: o objeto e o eu. Essa relação, no entanto, ocorre, para Husserl,
ao nível da consciência pura (Fragata
1959). São exatamente as noções husserlianas deintencionalidade e de relação
noemático-noética que permitem, segundo Sartre,
as bases para a superação do idealismo ou da velha filosofia alimentar,
como ela denomina (Sartre 1968), já que coloca o sujeito e o mundo como
indissociáveis. Devemos, porém, segundo o existencialista, livrar-nos da
instância idealista ainda contida em Husserl, justamente por considerar o noema
como pertencente ao universo da consciência, tornando-o, assim, um correlativo
irreal da noese (Sartre 1943). Em Sartre, noema é o objeto do mundo concreto,
porém, significado pelo sujeito. Ou seja, é o objeto que adquire, em razão do
contexto de relação antropológico e sociológico onde se encontra, a função de
afetar o sujeito.
5 Dessa
forma, assim como na psicanálise, o existencialismo admite que o sujeito é arrastado por
uma dinâmica psíquica, no entanto, esta não é fruto de mecanismos
inconscientes, processos subjetivos, mas resultante do embate com seu contexto
antropológico e sociológico.
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Fonte: http://pepsic.bvsalud.org/
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