Desde que o Governo Dilma, ainda no primeiro mandato, foi levado às cordas do ringue, começaram a emergir manifestações em favor da constituição de uma 'Frente de Esquerda'. Com exceção da franqueza de propósito de alguns partidários dessa ideia, o que sobra (considerando os moldes em que a Frente é proposta) não passará de pilheria. Entre os que estão inclusos na franqueza de propósito da ideia, está Tarso Genro, homem que vem de longe com a sua criativa capacidade de formulação e de intervenção política - do tempo em que, sob risco de morte, para dizer o que se pensava era-se obrigado a usar outros nomes. Dele, pode-se discordar, mas não se pode negar a sua sinceridade em discutir teses, e fundamentando-as. Fora isso, sobram os "zumbis político-burocráticos", amparados sob as asas do lulismo e saudosistas dos tempos do ex-Presidente. Este, por seu turno, estimula os "zumbis", e não só. Pelos escaninhos, mas também de forma pública, "chumba" a Presidente e pisca ao PMDB, sobretudo à secção do Rio de Janeiro. Mas também, de quando em quando, vai ao repasto com Renan Calheiros. Pensa no seu regresso à Presidência em 2018, prepara o caminho e quer se descolar do desgaste da Presidente (convenhamos, este não é o melhor exemplo de solidariedade política). Enquanto isso, os "zumbis" estão por aí, em todo lado, sempre disponíveis a repetir frases vazias em nome da "autonomia", da "liberdade", da "transformação", da "libertação", etc. Macunaíma em cada tempo. A propósito, é exemplificativo que Cândido Vacarezza (crítico da Presidente e voz ativa do lulismo), não tendo conseguido um novo mandato de deputado federal, tenha criado uma consultoria.... empresarial. Uma transição e tanto: de um partido denominado de trabalhadores para assessorar empresários nos meandros do capitalismo nacional, sobretudo, por suposto, nos negócios com o Estado. Assemelha-se, assim, aos atores universitários que fazem dos eventos um mercado e dos projetos empreendimentos monetários. Pois bem, dá para levar a sério a ideia de uma 'Frente de Esquerda' com protagonistas deste quilate? Haja pachorra! No máximo, será uma "Frente das Sombras". 'Não é falta de direção que acomete a ala progressista da sociedade brasileira. É falta de coragem'. Entre oportunismo, vigarice, incompetência e frouxidão, chegamos ao imponderável. O problema torna-se mais grave ainda quando se pretende reeditar pactos com quem está implicado nessa situação e com o mesmo modus operandi que a gerou. Corroborando isso, a artigo a seguir de Vladimir Safalte é paradigmático a esse respeito - o seu título original é 'Frente de Esquerda para quê?'
Por Vladimir Safatle (Professor
Titular da Faculdade de Filosofia – USP)
Se
fosse o caso de fornecer uma analogia histórica para a situação atual do
Brasil, talvez o melhor a fazer seria voltar os olhos para a Argentina dos anos
1970. De certa forma, não há nada mais parecido com o atual governo Dilma do
que a Argentina de Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón
do Cerrado.
Uma
presidenta refém de seus operadores políticos, impotente diante da dissolução
do acordo peronista entre setores da esquerda e setores conservadores em torno
da figura de seu finado marido, Juan Domingo Perón, Isabelita foi a figura mais
bem-acabada do esgotamento do ciclo de acordos, avanços e paralisias que marcou
o peronismo. Ao se deixar guiar pelos setores mais conservadores do peronismo,
Isabelita parecia uma morta-viva, a encarnação de um tempo que já acabara, mas
ninguém sabia como terminar.
Agora,
imaginem que estamos na
Argentina dos anos 1970 e Perón não morreu. Como um fantasma, ele volta para
tentar organizar a oposição contra o governo que ele mesmo elegeu, federando as
vozes dos descontentes com o governo criado por ele mesmo e para o qual indicou
vários ministros. Não, algo dessa natureza não poderia acontecer na Argentina.
Algo assim só pode ocorrer no Brasil. Pois não é isso o que estamos vendo com
um Lula reconvertido a arauto da “frente de esquerda” juntamente com o resto do
que ainda tem capacidade de formulação no PT? O mesmo PT que, em um dia, vai à
televisão para afirmar seu compromisso com a defesa dos direitos trabalhistas
para, no dia seguinte (vejam, literalmente no dia seguinte) votar em peso a
favor de um pacote de medidas que visam “ajustar” a economia não exatamente
taxando lucros bancários exorbitantes, mas diminuindo os mesmos direitos
trabalhistas que defendera 24 horas antes.
Nesse
contexto, o que pode ser uma frente de esquerda a não ser a última capitulação
da esquerda brasileira à sua própria impotência? Ou, antes, o reconhecimento
tácito de que a esquerda brasileira só pode oferecer o espetáculo deprimente de
discursos esquizofrênicos divididos entre o reino das boas intenções e a dureza
das decisões no “mundo real”? Acreditar que aqueles que nos levaram ao impasse
serão os mesmos capazes de nos tirar de tal situação é simplesmente demonstrar
como a esquerda brasileira vive de fixações em um passado que nunca se
realizou, que nunca foi efetivamente presente. É mostrar ao País que a esquerda
não tem mais nada a oferecer de realmente novo e diferente do que vimos.
Se a esquerda quiser ter alguma razão de
existência (pois é disso que se trata), ela deve começar por fazer uma rejeição
clara do modelo que foi aplicado no Brasil na última década, seja no campo
político, seja no campo econômico. O modelo lulista não chegou a seu
esgotamento por questões exteriores, pressão da mídia ou inabilidades de
negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas contradições internas e quem
o criou não é capaz de criar nada de distinto do que foi feito.
Insistiria
ainda em como é falsa a
ideia de que a esquerda brasileira está de joelhos sem saber o que fazer. Há
anos, vários setores progressistas têm alertado para o impasse que agora vivemos.
Há anos, várias pautas foram colocadas em circulação, entre elas a revolução
tributária que taxe a renda e libere a taxação sobre o consumo, a democracia
direta com poder de deliberação, veto e gestão, o combate à especulação
imobiliária através de leis que limitem a propriedade de imóveis, a reforma
agrária, a diminuição da jornada de trabalho, a autogestão de fábricas e locais
de trabalho, o salário máximo, o casamento igualitário, as leis radicais de
defesa da ecologia, o fim da política de encarceramento sistemático, a
exposição da vida financeira de todos os que ocupam cargos de primeiro e
segundo escalão, a punição exemplar da corrupção, o fim do monopólio da
representação política para partidos. Não é a falta de direção que acomete a
esquerda brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave.
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Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/851/frente-de-esquerda-para-que-4260.html
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