sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Eleições: entre encenação, violência e deterioração da democracia

Ao participar de um debate radiofônico, em Pernambuco, sobre a conjuntura nacional, foi-me pedido, ao final, um artigo com uma análise sobre as eleições municipais. Caso não se queira repetir lugares-comuns e se deseje de fato adotar uma postura analítica, tem-se diante de si um tema hard. O "beijo do populismo", tanto à direita como à esquerda, tende a repisar chavões e os ditos lugares-comuns: o oba-oba exaltando 'a festa da democracia', demonstração de que 'as instituições estão a funcionar normalmente', população 'exercendo a cidadania', etc. De outra parte, os interessados em adornar com tintas de normalidade o caos e a putrefação política que estamos a viver fazem retórica para  tentar demonstrar que o processo eleitoral corre o seu curso convencional imaculadamente. Mas, seja no caso do "beijo populista", seja nesse último, parece que a banda toca diferente. Por quê? A conferir no referido artigo, aí abaixo, que chega primeiro por aqui. 

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Por Ivonaldo Leite 

Quem acompanha a série histórica das eleições municipais brasileiras, sabe que o pleito deste ano está se caracterizando como o mais violento desde a primeira eleição municipal pós-ditadura, em 1988.
Do que se tem registro, já são contabilizados cerca de 30 assassinatos, sendo o mais impactante o do candidato a prefeito de Itumbiara/GO, José Gomes da Rocha, morto ao lado do vice-governador do estado, que também saiu ferido. Afora esses casos extremos, são inúmeros os registros de discussões acaloradas e agressões, com as ‘vias de fato’ requerendo a intervenção policial. O aumento da violência tem ocorrido em dupla perspectiva: em termos quantitativos e em intensidade, com os assassinatos, neste último caso, sendo marcados, por exemplo, pela brutalidade de diversos disparos.
Um outro fenômeno tem feito companhia à essa barbárie eleitoral: a “sofistificação” e a naturalização da compra de votos. É fato indiscutível que tal prática, na história política brasileira, é bastante corriqueira. Contudo, o plus do presente processo eleitoral decorre da adoção de peculiares mecanismos para efetivar a compra de sufrágios – em muitos casos, como estratégia para burlar a legislação e a fiscalização. Assim surgem figuras como o ‘condutor de votos’ (aquele que faz a relação de eleitores a serem comprados), bem como se efetiva a compra, quando é feita com dinheiro em espécie, através dos serviços de mototaxistas. Cimento, tijolo, telha, etc. continuam sendo moeda de uso corrente.
 Empiricamente, dois fatos que tiveram lugar no estado da Paraíba servem para ilustrar a naturalização do mercado do voto, quais sejam: um candidato a vice-prefeito que pousou para foto ao lado de uma mala cheia de notas de R$ 100,00 e um eleitor que resolveu anunciar venda de votos mediante a afixação de uma placa.
Como que atônitas autoridades se dizem impactadas com o grau de violência presente na campanha eleitoral de 2016. Assim se manifestou, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE. Data vênia, a tragédia era, de determinado modo, previsível, e pode-se até mesmo operacionalizar uma hipótese analítica estabelecendo uma relação causal entre o clima de ódio que foi reproduzido no país após o resultado da eleição presidencial de 2014 e a violência na campanha do presente ano.
Há cerca de dois anos, em escala ascendente, a divergência civilizada de ideias no Brasil cedeu lugar aos ataques da intolerância, as agressões físicas e as montagens em redes sociais para reproduzirem mentiras (a propósito, quando se tem necessidade de recorrer a montagens, é porque falta argumento). Nesse sentido, os disparates abundam. Dois deles são bem característicos, isto é: o ataque ao cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, que foi agredido durante uma missa e lançado ao chão por uma senhora que o acusava de comunista; e a deplorável atitude de uma pediatra no Rio Grande do Sul que se recusou a atender uma criança por causa da opção política da mãe da mesma. Por conveniência política, determinados segmentos se mantiveram omissos diante de tais fatos, pois, no momento em que eles ocorreram, o que importava era engrossar as fileiras do impeachment. Aliás, o próprio ministro Gilmar Mendes, sob o impulso de defender as suas posições, mais de uma vez deu expressão à truculência verbal, a ponto de dizer que o projeto da ficha limpa parecia ser ‘um projeto feito por bêbados’.
 O acúmulo da intolerância, da deterioração do ambiente de debate, das agressões, etc., está aí reverberando na violência presente no atual processo eleitoral.
Com tudo isso – violência, compra de votos, corrupção eleitoral -, ainda há quem insita em dizer que, com as eleições municipais, estamos vivendo a ‘festa da democracia’, que as instituições estão a funcionar bem, enfim, esses lugares-comuns. Trata-se de um discurso mais próprio de um mundo paralelo, o que é coisa para a psicanálise. Todavia, é de política que se trata. E o que os dispositivos da sua análise revelam é que o jogo político-eleitoral chegou a um ponto em que – com aliados de ontem sendo adversários hoje, para serem aliados novamente amanhã – a encenação é elevada ao máximo, ao mesmo tempo em que se sepulta a ação política fundada em bases programáticas. E assim se vai deteriorando a democracia brasileira.
Desde Hobbes, sabemos que a guerra de todos contra todos não leva a lugar nenhum, a não ser a catástrofes e mais catástrofes. Daí que se há algo que a teoria política moderna nos legou e que tem sido uma dimensão central nas ‘democracias avançadas’ é o conceito de contrato. A pactuação entre cidadãos, pois a força cria situações de fato, mas não estabelece o direito. O nível de deterioração da democracia brasileira tem levado cientistas sociais estrangeiros, como o sociólogo catalão Manuel Castells, a colocarem em dúvida o futuro do país.
Tirar as devidas ilações do grau de violência verificado no atual processo eleitoral, assim como da banalização do mercado do voto, é, portanto, condição sine qua non para pensar em um novo contrato político para o Brasil. Afinal, como assinala um postulado da ética, ‘seres vocacionados para a liberdade também são livres para se destruírem’.