Ou sobre Espinosa e o desejo.
Portrait of a philosopher, Lyubov Popova |
Por Rafael Trindade
A origem da palavra desejo é muito bonita. O verbo desidero vem
da palavra sidero, que significa “relativo aos astros”,
ou também “conjunto de estrelas” (ex: espaço sideral). Sendo assim, de-sidero significa
“ignorar as estrelas”, ou também, “deixar de ver as estrelas”, em
seu sentido astrológico. Se as estrelas na antiguidade eram o elo de ligação
entre os homens e os deuses, então desejar significa ficar à deriva, à mercê,
nas rodas da fortuna, deixar de guiar-se pelas mensagens divinas.
Apesar da bela origem, suas repercussões em nosso
mundo são as mais nocivas. Desejo como falta, doença, incômodo, defeito,
carência, vazio que busca preenchimento. Esta concepção atravessou os séculos:
Platão, estóicos, cristãos, Hegel, Schopenhauer, Freud, Sartre. O mal-entendido
do desejo, ou pelo menos, a má definição do conceito de desejo, pode ser
considerada uma das mais cruéis heranças que o platonismo e o cristianismo nos
legaram!
Por isso a importância de redefinir
este conceito. O desejo como falta é uma mistificação nociva. Espinosa afirma que, para nos tornarmos humanos, temos que afirmar nossa natureza desejante. Mas como? Isso com certeza não
significa ser inconsequente; os ignorantes têm uma visão errada do que
significa desejar e dar vazão ao desejo. Eles pensam que significa apenas não
ter medidas. Mas este desejo vira busca interminável: o homem da imaginação, do primeiro gênero do conhecimento,
investe no exterior: o desejo vira objeto.
Este homem da imaginação se vê incompleto porque
cria seus próprios senhores através de generalizações, a quem depois serve
em busca de glórias e riquezas. Esta forma de desejar não é nada mais que a
expressão da impotência do homem. Este desejo de ideais vira desejo de futuro,
um futuro que nunca chega. E assim, abre-se um buraco no meio do homem chamado
incompletude.
Nos acostumamos a ver o mundo a partir da
perspectiva da falta, parece mais fácil ao impotente negar ao invés de afirmar.
Para Espinosa, o desejo é mais que uma ideia, é uma força. O desejo é uma
força que cria. Então a natureza, criando-se e reinventando-se o tempo todo é a
manifestação máxima da natureza de cada um de nós. Por isso o homem deve
apropriar-se do desejo, porque, no sentido espinosano, ele é revolucionário. É
através dele que a mudança efetiva do real acontece, é mais que uma simples
conservação, é uma força de expansão que ocorre impregnando a realidade de
grandes acontecimentos. Espinosa, como bom filósofo da imanência, segue um
caminho oposto:
O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é
concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si
própria, a agir de alguma maneira” – Espinosa, Ética III, Definição dos Afetos
1
Esta é a grande
lição de Espinosa: desejo é o esforço, a inclinação, por algo que julgamos útil
para nossa conservação, ele é determinado com o fim de preservar o corpo e a
mente.
Por
se tratar de uma imanência absoluta, o conatus (ver aqui)
de um indivíduo é modificado pelos encontros que ele faz. Ao se jogar no
mundo, um ser não pode manter-se intacto, ele é necessariamente modificado. O
desejo é favorecido ou constrangido nestas relações, mas ele sempre se
atualiza.
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Fonte: https://razaoinadequada.com/
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