sábado, 17 de setembro de 2016

'Mais que uma ideia, uma força'

Ou sobre Espinosa e o desejo. 

- portrait of a philosopher, Lyubov Popova
 Portrait of a philosopher, Lyubov Popova

Por Rafael Trindade 

A origem da palavra desejo é muito bonita. O verbo desidero vem da palavra sidero, que significa “relativo aos astros”, ou também “conjunto de estrelas” (ex: espaço sideral). Sendo assim, de-sidero significa “ignorar as estrelas”, ou também, “deixar de ver as estrelas”, em seu sentido astrológico. Se as estrelas na antiguidade eram o elo de ligação entre os homens e os deuses, então desejar significa ficar à deriva, à mercê, nas rodas da fortuna, deixar de guiar-se pelas mensagens divinas.
Apesar da bela origem, suas repercussões em nosso mundo são as mais nocivas. Desejo como falta, doença, incômodo, defeito, carência, vazio que busca preenchimento. Esta concepção atravessou os séculos: Platão, estóicos, cristãos, Hegel, Schopenhauer, Freud, Sartre. O mal-entendido do desejo, ou pelo menos, a má definição do conceito de desejo, pode ser considerada uma das mais cruéis heranças que o platonismo e o cristianismo nos legaram!
Por isso a importância de redefinir este conceito. O desejo como falta é uma mistificação nociva. Espinosa afirma que, para nos tornarmos humanos, temos que afirmar nossa natureza desejante. Mas como? Isso com certeza não significa ser inconsequente; os ignorantes têm uma visão errada do que significa desejar e dar vazão ao desejo. Eles pensam que significa apenas não ter medidas. Mas este desejo vira busca interminável: o homem da imaginação, do primeiro gênero do conhecimento, investe no exterior: o desejo vira objeto.
Este homem da imaginação se vê incompleto porque cria seus próprios senhores através de generalizações, a quem depois serve em busca de glórias e riquezas. Esta forma de desejar não é nada mais que a expressão da impotência do homem. Este desejo de ideais vira desejo de futuro, um futuro que nunca chega. E assim, abre-se um buraco no meio do homem chamado incompletude.
Nos acostumamos a ver o mundo a partir da perspectiva da falta, parece mais fácil ao impotente negar ao invés de afirmar. Para Espinosa, o desejo é mais que uma ideia, é uma força. O desejo é uma força que cria. Então a natureza, criando-se e reinventando-se o tempo todo é a manifestação máxima da natureza de cada um de nós. Por isso o homem deve apropriar-se do desejo, porque, no sentido espinosano, ele é revolucionário. É através dele que a mudança efetiva do real acontece, é mais que uma simples conservação, é uma força de expansão que ocorre impregnando a realidade de grandes acontecimentos. Espinosa, como bom filósofo da imanência, segue um caminho oposto: 

O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira” – Espinosa, Ética III, Definição dos Afetos 1

Esta é a grande lição de Espinosa: desejo é o esforço, a inclinação, por algo que julgamos útil para nossa conservação, ele é determinado com o fim de preservar o corpo e a mente.
Por se tratar de uma imanência absoluta, o conatus (ver aqui) de um indivíduo é modificado pelos encontros que ele faz. Ao se jogar no mundo, um ser não pode manter-se intacto, ele é necessariamente modificado. O desejo é favorecido ou constrangido nestas relações, mas ele sempre se atualiza.

Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado e que, não raramente, são a tal ponto opostos entre si que o homem é arrastado para todos os lados” – Espinosa, Ética III, Definição dos afetos 1.

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Fonte: https://razaoinadequada.com/

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