Por Luis Nassif
Ontem [21/09] de manhã fiz uma palestra no encontro do
Instituto Ethos sob o tema “Operação Lava-Jato: como equacionar a relação entre
desenvolvimento econômico e combate à corrupção”. Era para contar com a
participação de um membro do Ministério Público Federal (MPF). Nenhum dos
convites foi aceito.
O Ethos lançou uma bela carta sobre o tema (http://migre.me/v2nWL), com um conjunto de
princípios ideais, entre os quais:
· Apoiamos o
avanço da operação no âmbito dos marcos constitucionais, sem foco partidário,
vazamentos seletivos ou qualquer tipo de influência de interesses alheios às
suas metas.
· Ela tem de
ser ampla e irrestrita, devendo prosseguir enquanto houver irregularidades a
apurar, independentemente de quem atingir, esteja essa pessoa no poder ou não.
· Hoje, somente
5% dos condenados na Operação Lava-Jato são políticos. Sabemos que há foro
privilegiado, mas é necessário obter, de fato, progressos na celeridade e na
efetivação dos processos que envolvem a classe política.
A operação que o Ethos apoia seguramente não é a
que estamos testemunhando.
Na minha apresentação, procurei demonstrar que essa
operação ideal é improvável na conjuntura política atual.
Meu xadrez é o seguinte:
1. A nova jurisprudência penal, a
ampliação do poder de investigação do Ministério Público Federal, inclusive com
o acesso a dados internacionais, conferiu poder enorme à corporação.
2. Não existe superpoder que possa
depender exclusivamente dos princípios éticos e valores morais individuais de
seus membros. Com a ausência de um sistema de freios e contrapesos, a lógica do
MPF será cada vez mais de tentar ampliar o espaço, até bater no muro de um
pacto entre os demais poderes.
3. A ocupação do espaço pelo MPF
passou pela parceria com a mídia e pelo apoio da classe média ascendente, com a
qual a corporação é mais identificada. O pacto se deu em torno do combate ao
inimigo comum, o PT. Sem a figura do inimigo e a prática do direito penal do
inimigo, a aliança não se sustenta.
4. O primeiro uso da força pelo
MPF foi na AP 470, que desequilibrou o jogo político do nosso precário
presidencialismo de coalizão, empurrando o governo Lula para os braços do PMDB,
usando a Petrobras como moeda de troca, conforme se conferiu na delação do
ex-senador Delcídio do Amaral.
5. O segundo movimento foi com a
Lava Jato explorando as vulnerabilidades criadas pelo primeiro movimento, e
levando à queda do governo.
Portanto, fez-se uma campanha moralista, fundada na
luta anticorrupção e o resultado final foi o desmantelamento do sistema
partidário e a entrega do comando do país ao grupo político mais suspeito das
últimas décadas, que mais cedo ou mais tarde utilizará o poder do qual se viu
revestido para para interromper a Lava Jato e enquadrar o MPF.
Ontem, o CNMP (Conselho Nacional do Ministério
Público) premiou a Lava Jato com destaque do ano. Prova maior de que a miopia
política não acometeu apenas os governos Lula e Dilma e o PT. É processo
generalizado.
Peça 1 – o processo judicial e a busca da verdade
Primeiro, vamos entender como analisar um
procedimento jurídico.
Meu primeiro desafio jornalístico em temas
jurídicos foi uma denúncia que fiz contra o então Consultor Geral da República
Saulo Ramos, devido a um decreto, logo após o Plano Cruzado, que recriava a
indústria de liquidação extrajudicial.
Saulo manobrava conceitos jurídicos, que eu
desconhecia.
No meio do debate, consegui uma fonte
especialíssima, um Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), que me passou
uma lição básica para me livrar do jugo do especialista:
- O processo judicial tem que levar à justiça.
Analise a realidade e veja o resultado da decisão tomada. Se levar a um
resultado injusto, ou a lei é injusta ou a interpretação dela está errada.
Lembro essa história para nos debruçarmos sobre os
resultados dessa metodologia do MPF de colheita de provas – explicada em um
livro de Deltan Dallagnol muito elogiado - sobre a construção das provas
através do levantamento de indícios. Ele leva à verdade e, através dela, à
justiça? Ou o excesso de poder desequilibrou o jogo a tal ponto que a lógica do
acusador se impõe por si, sem poder ser retificada pelos argumentos da defesa?
A prova do pudim consiste em confrontar essa metodologia
com os resultados alcançados. Levou à justiça, ou foi apenas a
instrumentalização do combate ao escândalo, para benefício de um grupo político
e de uma corporação? Levou ao aprimoramento das instituições ou, pela
desorganização da política, à criação de uma realidade pior?
O primeiro passo é entender a conjuntura que levou
à consolidação desse novo modelo de operar a lei.
Peça 2 - a punição dos chefes das organizações
criminosas
Me deparei com essa questão pela primeira vez na
cobertura do golpe aplicado no Banco do Comércio e Indústria de São Paulo, o
Comind, ainda nos anos 80. Era voz corrente que dificilmente os chefes de golpe
seriam apanhados porque não deixavam vestígios, assinaturas, documentos.
Simplesmente davam ordens verbais. Havia um nítido desequilíbrio em favor do
crime organizado.
Com a expansão internacional do crime organizado,
com a captura de muitos Estados nacionais pelo crime, houve mudanças também na
jurisprudência sobre o tema, aceitando que um conjunto robusto de indícios poderia
ser tratado como prova, mesmo que não houvesse as impressões digitais do chefe
no cometimento do crime.
Essa jurisprudência surgiu a partir,
principalmente, da luta contra o tráfico de droga e contra o terrorismo.
Entende-se, daí, seu caráter draconiano.
Os indícios vão da identificação do comando
hierárquico da organização, a provas testemunhais - em geral, de pouco valor
nos processos penais. Passaram a ser aceitos também outros instrumentos
jurídicos, como o da delação premiada, que veio se somar à quebra de sigilo
telefônico, fiscal e bancário.
Flexibilizou-se radicalmente o processo de obtenção
de provas. Aí o pêndulo se inverteu completamente e o poder acabou centralizado
nos acusadores. E, como tal, sujeito às suas idiossincrasias e preferências
políticas e ideológicas.
Para não incorrer em abusos, com enorme poder
recebido, havia a necessidade do chamado intérprete da lei ter conhecimento e
observância de princípios de direitos humanos aceitos internacionalmente –
entre os quais os valores democráticos e a relevância central do voto.
Mas não apenas isso. Não existe instituição cuja
idoneidade dependa exclusivamente dos valores individuais de cada membro. O
modelo exige os chamados freios e balanços para coibir abusos.
Não é o caso do Brasil. As corporações se
apropriaram dos órgãos de controle, que passaram a responder às demandas
corporativas.
Nos tribunais de primeira instância, as provas
indiciárias se voltam preferencialmente contra os PPPs (preto, pobre e puta).
Servem para enviar “mulas” para os presídios, mas não alcançam os chefes do
tráfico.
Na área política, em muitos países de democracia
precária – como Portugal e Brasil – o modelo agregou o quarto P, de petista ou
popular. E aí, introduziu-se no processo democrático um enorme fator de
desestabilização, no qual as armas conquistadas pelo MP, pela lógica de poder,
são colocadas a serviço de grupos políticos e ideológicos aos quais ele se
aliou estrategicamente para ampliar seu poder.
Provavelmente a maior ameaça à democracia, hoje em
dia, seja a interferência do Ministério Público e da Justiça no jogo político.
O século do Judiciário – na celebração infeliz do Ministro Ricardo Lewandowski
– de certo modo é similar às UPPs (Unidades de Policia Pacificadora) nas
favelas. A pretexto de coibir o crime, apossam-se de todo o território e criam
um poder paralelo muito mais letal.
Peça 3 – o teste da AP 470, o "mensalão"
O "mensalão" foi o primeiro grande
processo de impacto político a testar as tais provas indiciárias. A celebérrima
frase de Rosa Weber (apud Sérgio Moro) de que "não tenho provas (contra
Dirceu) mas a jurisprudência me autoriza a condenar", celebrava o “abre-te
Sésamo” do Judiciário para abrir a caverna onde se encontravam as capas de
Super Homem, os novos superpoderes que conquistaram.
O que havia – e isso era do conhecimento de
qualquer analista político - era o pagamento de despesas de campanha dos
pequenos partidos que passaram a fazer parte da base aliada. A acusação
defendeu a tese de que havia uma mesada intermitente para garantir a aprovação
de leis de interesse do governo.
Mais do que isso, procedeu a enormes malabarismos
para casar data de pagamento com aprovação de leis, , inclusive para
parlamentares petistas, forçando relações de causalidade inexistentes, da
maneira como descrevo no “Xadrez do não temos prova, mas temos convicção” (http://migre.me/v2mmk).
Quem acompanhava o jogo político sabia que era uma narrativa falsa. Mas passou.
A maneira como costuraram essa narrativa era da
modalidade de “enfiar argumentos na tese a marteladas”.
1. A história do suposto
desvio da Visanet, quando se sabia que o grande financiador de Marcos Valério
era o banqueiro Daniel Dantas. A razão era simples. Para caracterizar
corrupção, o dinheiro teria que ser proveniente de ente público. Tratava-se o
dinheiro de Dantas como privado; e o da Visanet como público (embora não
fosse), devido à participação do Banco do Brasil no capital da empresa. Sem a
Visanet, portanto, a tese da PGR não se sustentaria. Não só trataram a Visanet
como empresa pública, não sendo, como denunciaram um desvio que jamais houve,
ignorando laudos de auditorias e da própria Polícia Federal.
2. A história da ida de
políticos do PTB a Portugal com Marcos Valério negociar com a Portugal Telecom
a venda da Telemig. Atribuíam ao PT. Eu tinha informações seguríssimas -
inclusive após conversas com executivos da Portugal Telecom -, que a ida foi
bancada por Daniel Dantas, que ainda mantinha o controle da Telemig e para quem
Valério trabalhava.
3. A inclusão de José
Genoíno no inquérito. O alvo era José Dirceu, então Ministro-Chefe da Casa Civil,
já que o inquérito nasceu das denúncias de Roberto Jefferson. Mas como pegar
Dirceu sem envolver o presidente do PT, José Genoíno? Havia a necessidade desse
elo na corrente (http://migre.me/v2smK).
A primeira e a segunda questão beneficiaram
diretamente Daniel Dantas.
Como foi possível que um erro desse tamanho
passasse pelo filtro da Procuradoria Geral da República, com a AP 470 sendo
analisada por diversos procuradores, depois pelo relator, Ministro Joaquim
Barbosa e, finalmente, pelo pleno do STF?
Mas passou.
Havia indícios de corrupção na decisão de Antônio
Fernando de poupar Daniel Dantas (logo depois aposentou-se e seu escritório
ganhou enorme contrato da Brasil Telecom, controlada por Dantas). Mas seria
impossível, mesmo para alguém do alto do cargo de PGR, impor uma tese dessas a
todo uma equipe, se não houvesse outros ingredientes no jogo.
O endosso às teses de Antônio Fernando foi fruto da
grande celebração do MPF, ante a possibilidade de usar pela primeira vez os
superpoderes e balançar a República, a possibilidade de impor a narrativa que
quisesse, desde que escudada em campanhas massacrantes de mídia. Foi um porre
geral. E a mítica da narrativa exigia que se concentrasse no PT todas as
acusações de corrupção, transformado na fonte de toda a corrupção. É por ali
que se consolidaria a aliança com a mídia e a identificação com os anseios da
classe média.
A parceria do MPF com a mídia esvaziou a CPMI de
Cachoeira – que estava prestes a convocar Roberto Civita, da Abril. No mesmo
período, o processo sobre o “mensalão do PSDB” foi interrompido da maneira mais
canhestra possível. O Ministro Ayres Britto deveria relatá-lo em uma sessão do
STF. Houve o intervalo, ele saiu para o café, voltou e passou por cima da
pauta. Simples, assim, sem nenhuma cobrança da parte acusadora -- justamente o
Ministério Público Federal.
Uma das regras básicas do presidencialismo de
coalizão é que, quanto mais fraco o governo, maiores as concessões à
fisiologia. Ocorreu com o governo FHC, após a maxidesvalorização de 1999; e com
o governo Lula, devido à AP 470.
O resultado dessa primeira intervenção do MPF no
jogo político foi o seguinte:
1. O abandono da estratégia de Lula de montar uma
base com os pequenos partidos e o fechamento do acordo com o PMDB.
2. Com o risco concreto de impeachment, uma
dependência cada vez maior do PMDB.
3. Uma arquitetura política que só se sustentaria
com economia em crescimento.
O sucesso da economia nos anos seguintes inibiu por
algum tempo sua atuação. E a razia promovida pela AP 470 nas lideranças
petistas históricas, deixou o partido sem nenhuma capacidade de formulação
estratégica.
A última trégua, antes do embate final, foi
desperdiçada por Lula, embalado pelos feitos que o deixaram na posição de
internacionalmente mais celebrado presidente brasileiro da história.
Dormiu em berço esplêndido. Acordou quando a
serpente já dera o bote final.
Peça 4 – os desdobramentos da Lava Jato
É evidente que há problemas estruturais nesse
presidencialismo de coalizão e circunstâncias políticas que levaram os partidos
aliados e o próprio PT a se lambuzarem. É evidente também que se desperdiçou o
momento de enorme popularidade de Lula para se proceder a uma reforma política
radical. Não adianta: apenas os problemas que afetam o dia a dia merecem
prioridade.
No entanto, em vez de um trabalho isento contra a
corrupção, o que se viu da parte do MPF foi uma ação seletiva, com nítido
propósito partidário, de consolidação do poder corporação, e uma perseguição
implacável a Lula, ao mesmo tempo que se blindavam as principais lideranças da
oposição.
Nesse período, a publicidade opressiva alimentada
pelo MPF, ajudou a fomentar movimentos de manada instituindo um clima de
vale-tudo no país, exacerbando o que de pior existe no imaginário popular:
violência, preconceito, caça às bruxas, queda da autoestima nacional.
Os resultados estão aí:
1. Insegurança jurídica,
com a entrada em um período de exceção, na qual nenhuma pessoa que se oponha à
Lava Jato ou ao novo governo pode se considerar juridicamente segura.
2. Insegurança jurídica nos
negócios, à medida que qualquer procurador idiossincrático poderá invocar como
suspeitos até financiamentos do BNDES. Perdeu-se o referencial, a divisória
entre operações legais e as criminosas.
3. Insegurança política
para qualquer governador, já que as tais provas indiciárias podem tentar casar
qualquer ato de governo com contribuições de campanha.
4. Insegurança física, com
o país rachado em dois e a montagem de um sistema de repressão, e um liberou
geral para as Polícias Militares. Em São Paulo há notícias da P2 (o serviço
secreto da PM) monitorando jovens secundaristas que participaram da ocupação
das escolas estaduais no ano passado. A tentativa da PFDC (Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão) de monitorar a PM foi rechaçada pelo Ministério
Público de São Paulo e pelo Ministro da Justiça sem um posicionamento sequer do
PGR em defesa da sua Procuradoria.
5. Insegurança política,
com enorme leque de possibilidades, fruto dos arreglos políticos e dos
interesses dos grupos que se apoderaram do poder, nenhum dos quais contemplando
eleições diretas. E o país entregue a uma camarilha de políticos suspeitos, com
o fim da bazófia do Procurador Geral da República (PGR) de avançar sobre as
lideranças políticas que assumiram o poder, deixando-as à vontade para o
exercício do arbítrio e dos negócios.
6. Insegurança social, com
a perspectiva de retrocessos em todas as áreas, especialmente saúde e educação,
pela imposição dos tais tetos nominais de despesa, tudo feito ao largo do voto
popular.
7. Queima de ativos
nacionais, com a venda de empresas e reservas petrolíferas na bacia das almas.
8. Desmontagem de setores
inteiros da economia
9. Consolidação da ideia de
parcialidade do MPF, com as manobras sucessivas para invalidar o depoimento de
Léo Pinheiro e livrar Aécio Neves e José Serra.
O MPF importou a tese da supremacia das provas
indiciárias e está aplicando. E vai exportar um caso que será analisado por
todos os centros especializados no estudo do crime organizado: as
vulnerabilidades da tese e o risco que trouxe para a estabilidade democrática
em países de democracia não consolidada, como é o caso do Brasil.
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Fonte: http://jornalggn.com.br/. Título original: 'Xadrez do MPF como ameaça à democracia'.