Por Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
A
maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa.
Dizem que não há nada mais
difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar,
com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que
aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos.
Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade
uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da
gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o
que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir.
Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem
nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto,
e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em
coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste
num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem
saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade direta; os campos, as
cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa
complexa sensação de nós mesmos. São intransmissíveis todas as impressões salvo
se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como
sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que
uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não “Tenho
vontade de chorar”, que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão
isto: “Tenho vontade de lágrimas”. E esta frase, absolutamente literária, a
ponto de que seria afetada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere
resolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes
da amargura líquida. “Tenho vontade de lágrimas”! Aquela criança pequena
definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber
existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida
vale: o mais são homens e mulheres,
amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do
esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob
o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido.
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In 'O Livro do Desassossego', Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.
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