domingo, 2 de outubro de 2016

O confortante enigma natural: 'Cruz da Serra' ou da natureza


"Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pátio, desembocávamos da alameda de plátanos, e diante de nós se dividiam matutinamente, mais brancos entre o verde matutino, os caminhos coleantes da quinta [fazenda], toda a sua pressa findava, e penetrava na Natureza com a reverente lentidão de quem penetra num templo. E repetidamente sustentava ser ‘contrário à Estética, à Filosofia, e à Religião andar depressa através dos campos’. De resto, com aquela sutil sensibilidade que nele se desenvolvera, e incessantemente se afinava, qualquer breve beleza, do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente poderia ele entreter toda uma manhã, caminhar por entre um pinheiral, de tronco a tronco, calado, embebido no silêncio, na frescura, no resinoso aroma, empurrando com o pé as agulhas e as pinhas secas. Qualquer água corrente o retinha, enternecido naquela serviçal atividade, que se apressa, cantando, para o torrão que tem sede, e nele se some, e se perde. E recordo ainda quando me reteve meio domingo, junto a um velho curral desmantelado, sob uma grande árvore - só porque em torno havia quietação, doce aragem, um fino piar de ave na ramaria, um murmúrio de regato entre canas verdes, e por sobre a sebe, ao lado, um perfume, muito fino e muito fresco, de flores escondidas.” 

(Eça de Queirós, in  A cidade e as serras. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006)


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