terça-feira, 20 de setembro de 2016

Do método e das paixões da alma

Sobre René Descartes e o dualismo - ou uma necessária retrospectiva para uma nova perspectiva. 

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Por Antônio Rogério da Silva

Descartes era um homem de seu tempo. Como toda pessoa culta do período logo após o Renascimento, Descartes estava atento às novas descobertas científicas ocorridas em todos os ramos do conhecimento. Apesar de ter passado por uma formação escolástica, no colégio jesuíta de La Flèche (França), ele não deixou de apreciar trabalhos de seus contemporâneos: o físico italiano Galileo Galilei (1564-1642), o matemático François Viète (1540-1603) e do fisiologista inglês William Harvey (1578-1657). Também não deixou de tecer, prudentemente, suas críticas ao dogmatismo da igreja. Além disso, ele chegou a ingressar no exército holandês de Maurício de Nassau (1604-1679), a fim de conhecer de perto vários países diferentes, entre 1618-1620.
A principal contribuição de Descartes à ciência talvez tenha ocorrido na matemática, área em que foi o pioneiro no uso de letras do alfabeto para representar as constantes e variáveis, além de empregar pela primeira vez expoentes e o símbolo da radiciação: “√”. O sistema de coordenadas cartesianas permitiu a fusão da geometria com a álgebra, na chamada geometria analítica, proporcionando a localização dos valores das variáveis de uma equação em pontos situados em um plano. O sistema cartesiano foi exposto na sua obra Geometria, escrita em 1637, e ainda hoje é muito utilizado na formação de gráficos analíticos, onde se traça uma curva sobre os pontos marcados por duas coordenadas perpendiculares.
Na Física, Descartes chegou a elaborar, em 1644, uma teoria segundo a qual a Terra estava em repouso em um vórtice que girava em torno do Sol, procurando aliar o geocentrismo da igreja com as ideias de Nicolau Copérnico (1473-1543). Entretanto, em decorrência da censura de Galileu, em 1616, Descartes só autorizou a publicação de seu Tratado do Mundo, após sua morte que veio acontecer em 1650, por causa de uma pneumonia contraída na Suécia. Quanto às descobertas sobre anatomia humana, Descartes foi um grande divulgador da teoria da circulação sanguínea de Harvey, a quem cita, sem mencionar o nome, na quinta parte do Discurso do Método e na primeira parte d’As Paixões da Alma. 

As Paixões e a Natureza Humana
Portanto, o que difere Descartes de Platão e Santo Agostinho (354-430), além do raciocínio bastante refinado, é a preocupação de apresentar argumentos que defendessem a existência da alma com base em deduções racionais compatíveis com a ciência de sua época. Ao contrário do que se supõe, pela leitura isolada das Meditações Metafísicas, ele não era do tipo de pensador avesso ao estudo empírico da natureza; fosse assim, não poderia ser considerado pioneiro do pensamento moderno. De fato, Descartes estava preocupado em sustentar suas teses racionalistas de acordo com as descobertas científicas e não simplesmente propor um novo dogmatismo que ocupasse a posição da velha escolástica medieval, arbitrária e infundada.
Logo na primeira parte de As Paixões da Alma, fica evidente a intenção de explicar o dualismo corpo-mente perante o conhecimento científico do organismo humano que se tinha até então. Nesse sentido, ele procurou delimitar a diferença entre corpo e alma, vontade e paixão, além de apontar os efeitos da percepção sobre o ser humano. Toda uma descrição fisiológica do funcionamento dos nervos, músculos, cérebro e coração, é feita com o intuito de mostrar como as paixões são produzidas pelos “espíritos animais” e como a alma pode influir no controle do corpo sem confundir-se com este.
Para isso, seria preciso separar aquilo que pertence à alma e aquilo que pertence ao corpo. O pensamento, por exemplo, é algo próprio da alma, enquanto o calor é tido como algo que dá movimento aos corpos. A alma, portanto, não seria a origem dos movimentos corporais, uma vez que ela não pode mover um corpo frio. Um corpo vivo pode mover os músculos por meio de nervos que partem do cérebro e são estimulados por “espíritos animais” neles contidos. Cada parte do organismo exerce uma função, ficando o coração responsável pela circulação sanguínea que leva calor a outras partes do corpo [1].
No cérebro, são produzidos os “espíritos animais” (talvez os neurotransmissores de hoje) que através dos nervos movimentam os músculos de diversas maneiras. Os órgãos dos sentidos estimulam os nervos que, por sua vez, transmitem esse estímulo ao cérebro, fazendo com que a alma tenha diversos sentimentos. Porém, os movimentos do corpo resultantes desse estímulo sensorial podem ocorrer sem a interferência da alma, pois os “espíritos” produzidos no cérebro atingem diretamente, tanto a alma quanto os músculos. À alma cabe apenas os pensamentos relativos às ações, sua vontade, e às paixões geradas pelos espíritos[2].
As vontades são ações que podem ser realizadas apenas pela alma, quando esta deseja refletir sobre uma ideia abstrata, ou pelo corpo, quando se quer passear e se põe as pernas a caminhar. As percepções que são causadas pela alma estão ligadas às vontades, à imaginação e aos pensamentos. Os devaneios, ilusões e sonhos são imaginações produzidas na alma pela agitação dos espíritos e não pela alma, que imagina apenas coisas inexistentes e inteligíveis. Na alma, também são percebidas as coisas de fora do organismo e as internas por meio dos nervos e sentidos. As percepções exclusivas da alma são aqueles sentimentos que não se conhece nenhuma causa remota, como alegria e ira. Descartes define as paixões por percepções, sentimentos e emoções que são causadas pelo movimento dos espíritos. Assim, as paixões são distintas dos sentimentos relativos aos sentidos e objetos exteriores e internos, diferindo das vontades que lhes são próprias [3].


A alma está unida a todo o corpo que forma um conjunto único de vários órgãos, mas é na glândula pineal que ela se comunica com o resto do corpo, modificando as ações dos espíritos através de seu movimento. A glândula pineal é central no cérebro e única. Essa posição privilegiada permite a interação com o corpo por intermédio dos espíritos, dos nervos e do sangue. A visão ocorre pelo estímulo de duas imagens no nervo ótico que são transmitidos pelos espíritos que preenchem a glândula, formando a imagem única. A informação contida nessa imagem escrita na alma corresponde, se for uma imagem assustadora, a uma paixão, no caso o medo. A experiência anterior a essa imagem força a glândula de tal modo que ela movimenta os espíritos pelos nervos, orientando os músculos à fuga ou à luta [4].
Os espíritos que vão para a glândula também seguem para o coração e para os músculos, pelos nervos. Por isso, os movimentos do corpo podem acompanhar as paixões sem a interferência da alma, em alguns casos. Por outro lado, as diversas conformações do cérebro podem acarretar reações diferentes em organismos e pessoas diferentes. As paixões servem para motivar a alma a preparar os corpos para ação respectiva. Porém, as vontades são livres e o querer da alma movimenta a glândula no sentido de produzir o efeito da vontade. A lembrança de algo pode ser resgatada pela alma através da pineal que movimenta os espíritos até a posição que reconstitua os traços da memória. E assim, a alma procede no intuito de imaginar, observar e mover o corpo [5].
O hábito pode associar cada movimento da glândula a um pensamento. Portanto, a alma tem limitações de impor suas vontades às paixões. Isso é devido às emoções que acompanham as paixões e permanecem enquanto atua sobre os sentidos, ocupando o pensamento. A vontade, nesses casos, só pode reter alguns movimentos que agem sobre o corpo. Essa é a explicação para o combate entre os apetites naturais e a vontade racional. As almas mais fortes conseguem impedir os movimentos dos corpos por possuírem juízos firmes e determinados sobre o bem e o mal. Tal determinação implica numa satisfação maior quando são acompanhadas da verdade. Nesse sentido, o hábito das boas ações pode adestrar a alma fraca, desprovida da razão para encontrar essas verdades, a adquirir o controle “absoluto sobre todas as suas paixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las” [6].

Notas
1. Veja DESCARTES, R. As Paixões da Alma, part. I, art.1-9, pp. 217-220.

2. Veja DESCARTES, R. Op. Cit, idem, art. 10-16, pp. 220-224.
3. Veja DESCARTES, R. Idem, ibdem, art. 17-29, pp. 224-228.
4. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art. 30-37, pp. 228-232.
5. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art.38-43, pp.232-233.
6. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art. 44-50, pp. 233-237.


Referências Bibliográficas
ASIMOV, I. Gênios da Humanidade. – Rio de Janeiro: Bloch, 1974.
DESCARTES, R. As Paixões da Alma; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.


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Fonte: https://forumdediscursus.wordpress.com/

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