Sobre René Descartes e o dualismo - ou uma necessária retrospectiva para uma nova perspectiva.
Por Antônio Rogério da Silva
Descartes era um homem de seu tempo. Como toda
pessoa culta do período logo após o Renascimento, Descartes estava atento às
novas descobertas científicas ocorridas em todos os ramos do conhecimento.
Apesar de ter passado por uma formação escolástica, no colégio jesuíta de La
Flèche (França), ele não deixou de apreciar trabalhos de seus contemporâneos: o
físico italiano Galileo Galilei (1564-1642), o matemático François Viète
(1540-1603) e do fisiologista inglês William Harvey (1578-1657). Também não
deixou de tecer, prudentemente, suas críticas ao dogmatismo da igreja. Além
disso, ele chegou a ingressar no exército holandês de Maurício de Nassau
(1604-1679), a fim de conhecer de perto vários países diferentes, entre
1618-1620.
A principal contribuição de
Descartes à ciência talvez tenha ocorrido na matemática, área em que foi o
pioneiro no uso de letras do alfabeto para representar as constantes e
variáveis, além de empregar pela primeira vez expoentes e o símbolo da
radiciação: “√”. O
sistema de coordenadas cartesianas permitiu a fusão da geometria com a álgebra,
na chamada geometria analítica, proporcionando a localização dos
valores das variáveis de uma equação em pontos situados em um plano. O sistema
cartesiano foi exposto na sua obra Geometria, escrita em 1637, e ainda
hoje é muito utilizado na formação de gráficos analíticos, onde se traça uma
curva sobre os pontos marcados por duas coordenadas perpendiculares.
Na Física, Descartes chegou a
elaborar, em 1644, uma teoria segundo a qual a Terra estava em repouso em um
vórtice que girava em torno do Sol, procurando aliar o geocentrismo da igreja
com as ideias de Nicolau Copérnico (1473-1543). Entretanto, em decorrência da
censura de Galileu, em 1616, Descartes só autorizou a publicação de seu Tratado
do Mundo, após sua morte que veio acontecer em 1650, por causa de uma
pneumonia contraída na Suécia. Quanto às descobertas sobre anatomia humana,
Descartes foi um grande divulgador da teoria da circulação sanguínea de Harvey,
a quem cita, sem mencionar o nome, na quinta parte do Discurso do
Método e na primeira parte d’As Paixões da Alma.
As Paixões e a Natureza
Humana
Portanto, o que difere Descartes
de Platão e Santo Agostinho (354-430), além do raciocínio bastante refinado, é
a preocupação de apresentar argumentos que defendessem a existência da alma com
base em deduções racionais compatíveis com a ciência de sua época. Ao contrário
do que se supõe, pela leitura isolada das Meditações Metafísicas,
ele não era do tipo de pensador avesso ao estudo empírico da natureza; fosse
assim, não poderia ser considerado pioneiro do pensamento moderno. De fato,
Descartes estava preocupado em sustentar suas teses racionalistas de acordo com
as descobertas científicas e não simplesmente propor um novo dogmatismo que
ocupasse a posição da velha escolástica medieval, arbitrária e infundada.
Logo na primeira parte de As
Paixões da Alma, fica evidente a intenção de explicar o dualismo
corpo-mente perante o conhecimento científico do organismo humano que se tinha
até então. Nesse sentido, ele procurou delimitar a diferença entre corpo e
alma, vontade e paixão, além de apontar os efeitos da percepção sobre o ser
humano. Toda uma descrição fisiológica do funcionamento dos nervos, músculos,
cérebro e coração, é feita com o intuito de mostrar como as paixões são
produzidas pelos “espíritos animais” e como a alma pode influir no controle do
corpo sem confundir-se com este.
Para isso, seria preciso separar
aquilo que pertence à alma e aquilo que pertence ao corpo. O pensamento, por
exemplo, é algo próprio da alma, enquanto o calor é tido como algo que dá
movimento aos corpos. A alma, portanto, não seria a origem dos movimentos
corporais, uma vez que ela não pode mover um corpo frio. Um corpo vivo pode mover
os músculos por meio de nervos que partem do cérebro e são estimulados por
“espíritos animais” neles contidos. Cada parte do organismo exerce uma função,
ficando o coração responsável pela circulação sanguínea que leva calor a outras
partes do corpo [1].
No cérebro, são produzidos os
“espíritos animais” (talvez os neurotransmissores de hoje) que através dos
nervos movimentam os músculos de diversas maneiras. Os órgãos dos sentidos
estimulam os nervos que, por sua vez, transmitem esse estímulo ao cérebro,
fazendo com que a alma tenha diversos sentimentos. Porém, os movimentos do
corpo resultantes desse estímulo sensorial podem ocorrer sem a interferência da
alma, pois os “espíritos” produzidos no cérebro atingem diretamente, tanto a
alma quanto os músculos. À alma cabe apenas os pensamentos relativos às ações,
sua vontade, e às paixões geradas pelos espíritos[2].
As vontades são ações que podem
ser realizadas apenas pela alma, quando esta deseja refletir sobre uma ideia
abstrata, ou pelo corpo, quando se quer passear e se põe as pernas a caminhar.
As percepções que são causadas pela alma estão ligadas às vontades, à
imaginação e aos pensamentos. Os devaneios, ilusões e sonhos são imaginações
produzidas na alma pela agitação dos espíritos e não pela alma, que imagina
apenas coisas inexistentes e inteligíveis. Na alma, também são percebidas as
coisas de fora do organismo e as internas por meio dos nervos e sentidos. As
percepções exclusivas da alma são aqueles sentimentos que não se conhece
nenhuma causa remota, como alegria e ira. Descartes define as paixões por
percepções, sentimentos e emoções que são causadas pelo movimento dos
espíritos. Assim, as paixões são distintas dos sentimentos relativos aos
sentidos e objetos exteriores e internos, diferindo das vontades que lhes são
próprias [3].
A alma está unida a todo o corpo
que forma um conjunto único de vários órgãos, mas é na glândula pineal que ela
se comunica com o resto do corpo, modificando as ações dos espíritos através de
seu movimento. A glândula pineal é central no cérebro e única. Essa posição
privilegiada permite a interação com o corpo por intermédio dos espíritos, dos
nervos e do sangue. A visão ocorre pelo estímulo de duas imagens no nervo ótico
que são transmitidos pelos espíritos que preenchem a glândula, formando a
imagem única. A informação contida nessa imagem escrita na alma corresponde, se
for uma imagem assustadora, a uma paixão, no caso o medo. A experiência
anterior a essa imagem força a glândula de tal modo que ela movimenta os
espíritos pelos nervos, orientando os músculos à fuga ou à luta [4].
Os espíritos que vão para a
glândula também seguem para o coração e para os músculos, pelos nervos. Por
isso, os movimentos do corpo podem acompanhar as paixões sem a interferência da
alma, em alguns casos. Por outro lado, as diversas conformações do cérebro
podem acarretar reações diferentes em organismos e pessoas diferentes. As
paixões servem para motivar a alma a preparar os corpos para ação respectiva.
Porém, as vontades são livres e o querer da alma movimenta a glândula no
sentido de produzir o efeito da vontade. A lembrança de algo pode ser resgatada
pela alma através da pineal que movimenta os espíritos até a posição que
reconstitua os traços da memória. E assim, a alma procede no intuito de
imaginar, observar e mover o corpo [5].
O hábito pode associar cada
movimento da glândula a um pensamento. Portanto, a alma tem limitações de impor
suas vontades às paixões. Isso é devido às emoções que acompanham as paixões e
permanecem enquanto atua sobre os sentidos, ocupando o pensamento. A vontade,
nesses casos, só pode reter alguns movimentos que agem sobre o corpo. Essa é a
explicação para o combate entre os apetites naturais e a vontade racional. As
almas mais fortes conseguem impedir os movimentos dos corpos por possuírem
juízos firmes e determinados sobre o bem e o mal. Tal determinação implica numa
satisfação maior quando são acompanhadas da verdade. Nesse sentido, o hábito
das boas ações pode adestrar a alma fraca, desprovida da razão para encontrar
essas verdades, a adquirir o controle “absoluto sobre todas as suas paixões, se
empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las” [6].
Notas
1. Veja DESCARTES, R. As Paixões da Alma,
part. I, art.1-9, pp. 217-220.
2. Veja DESCARTES, R. Op. Cit, idem, art.
10-16, pp. 220-224.
3. Veja DESCARTES, R. Idem, ibdem, art.
17-29, pp. 224-228.
4. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art. 30-37,
pp. 228-232.
5. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art.38-43, pp.232-233.
6. Veja DESCARTES, R. Ibdem, ibdem,art. 44-50,
pp. 233-237.
Referências Bibliográficas
ASIMOV, I. Gênios da Humanidade. – Rio
de Janeiro: Bloch, 1974.
DESCARTES, R. As Paixões da Alma; trad.
J. Guinsburg e Bento Prado Jr. – São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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Fonte: https://forumdediscursus.wordpress.com/
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