'O equilíbrio é uma arte; a bilis uma danação'. Repiso o que já tenho dito aqui, na esteira do cientista político Carlos Melo. Indo à ciência social clássica, poderia ainda complementar: 'se aparência e essência fossem a mesma coisa, a ciência seria desnecessária'. Pois bem, o Ministério Público apresentou denúncia contra o ex-Presidente Lula, fazendo surgir comemorações entre adversários do petista e, por outro lado, indignação entre os seus apoiantes. No caso do comportamento estrita e tipicamente militante (a favor ou contra), beirando às vezes um certo infantilismo, isso pode ser, até determinado ponto, compreendido. Contudo, no que toca à análise social objetiva, o caso é outro. Essa busca juízos factuais, aspira a verdade. Sejamos claros e racionais. Uma boa parte das pessoas não entende (ou mesmo desconhece totalmente) a dinâmica de funcionamento do sistema judiciário. E se estão inflamadas politicamente, aí a irracionalidade não tem limites. O Ministério Público não emite sentença, não julga - o seu papel é apresentar denúncias, devendo, para isso, lastreá-las com provas. A denúncia contra o ex-Presidente envolve diversas variáveis, algumas das quais requerem o tempo devido para serem avaliadas, sem a pressa da danação. De toda forma, um dado básico: é fato de difícil denegação a relação promíscua dos governos da coalização (composta por uma diversidade de partidos) encabeçada pelo PT com as empreiteiras. É de se indagar, no entanto, por outro lado, sobre as razões do timing para a apresentação da denúncia contra o ex-Presidente e o modo como isso foi feito. O logo após a cassação do ex-deputado Eduardo Cunha, parece surgir como que limpando o caminho, procurando vendar a ideia à população de que o país entra numa Era de Justiça Total - o que é falso. Acontece também num momento em que o novo Presidente da República anuncia um pacote de privatizações, sob a justificativa de que o governo não tem dinheiro, mas para viabilizar esse pacote oferecerá recursos à iniciativa privada, via BNDES e Caixa Econômica, na ordem de R$ 30 bilhões. Ou seja, o governo vai privatizar porque diz não ter dinheiro; porém, vai ofertar dinheiro público aos empresários para que eles comprem o que vai ser privatizado. Foge à lógica. Não é uma situação fácil de explicar/justificar, mas agora, com a notícia da denúncia do ex-Presidente, esse fato não ganha foco na opinião pública e será concretizado. De resto, o conjunto da denúncia, nos pratos da balança, pende mais para a dimensão política do que para o lastreamento técnico, conforme análise aí abaixo do isento e veterano jornalista Kennedy Alencar. Fragilidades técnicas na denúncia, alívio para Lula? Não. Exatamente por isso, por a variável política se encontrar dimensionada, a probabilidade da sua prisão aumentou.
Por Kennedy Alencar
A análise
da denúncia do Ministério Público Federal contra o ex-presidente Lula exige uma
separação entre o que foi um discurso político e as acusações técnicas.
Nesse contexto, há uma parte da denúncia
que tem uma linha política muito clara, um discurso político muito claro feito
pelo procurador da República Deltan Dallagnol. Ele falou em “propinocracia” no
Brasil e em “perpetuação criminosa no poder”.
Noutra parte da denúncia, houve uma
exposição de detalhes das investigações sobre um apartamento no Guarujá, sobre
uma reforma do sítio e sobre o armazenamento do acervo do ex-presidente Lula.
Num primeiro momento, Dallagnol fez um
discurso político. A corrupção sempre existiu no Brasil, mas a explanação do
procurador dá a entender que ela teria começado com o PT. O procurador fala da
descoberta do maior escândalo de corrupção no Brasil.
No início de seu discurso, o próprio
Dallagnol agiu de uma maneira defensiva. Quase pediu desculpas para poder fazer
a denúncia. Disse que não estava julgando o partido A ou B, que não estava
julgando o governo A ou B, que não estava julgando o que o Lula havia feito no
governo nem a pessoa do ex-presidente. Dallagnol disse que estava ali para
falar de uma conduta que o presidente havia adotado e que seria criminosa no
entender dele. Em resumo, ele fez um preâmbulo político para falar que Lula era
o “comandante máximo” do esquema de corrupção na Lava Jato.
A respeito disso, a denúncia não traz
evidências. Fica na teoria do domínio do fato ao usar expressões na seguinte
linha: “não existe outra conclusão possível”, “a corrupção no Brasil foi a
maior que já se teve” e “não dá para o Lula dizer de novo que não sabia”. Essa
é uma linha muito política.
Depois disso, os investigadores falaram
de detalhes que necessitam de explicações do ex-presidente e que demonstram que
eles obtiveram evidências e provas de que teria havido uma ocultação de
patrimônio tanto em relação ao apartamento quanto em relação ao sítio.
Lula sempre negou isso. A defesa do
ex-presidente divulgou nota dele e da mulher, Marisa Letícia.
Na parte em que trouxe detalhes
técnicos, os investigadores apresentaram fotografias de caixas da mudança em
que está escrito “praia” e “sítio”. O armazenamento de uma parte do acervo
presidencial de Lula foi paga pela OAS para ficar sob a guarda da Granero. Essa
parcela do acervo foi levada posteriormente para o Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo. Em relação a isso, a denúncia traz detalhes, muitos
dos quais já sabidos.
Numa outra parte, Dallagnol tem um
discurso que evoca o mensalão. Foi apresentada uma peça de PowerPoint com Lula
no centro de um sistema solar da corrupção. Claramente, há uma linha mais
política nesse momento. A Lava Jato avança por esse caminho.
Já existe um duelo muito claro entre o
Lula e os advogados dele e o juiz Sérgio Moro e os investigadores. É muito alta
a chance de o petista ser condenado. É o ataque mais forte já feito a Lula em
toda a carreira política dele.
Lula nunca sofreu uma acusação tão
contundente. Na época do mensalão, por exemplo, não foi imputado a ele o
comando do esquema criminoso que foi julgado pelo Supremo tribunal Federal.
Agora, Dallagnol imputa a ele o comando máximo de um esquema de corrupção na
Petrobras. E faz isso de uma maneira mais política. Ele não trouxe as
evidências.
O procurador disse que o ex-deputado
Pedro Correia afirmou, que os delatores disseram. Na parte em que se fala do
apartamento, do sítio e do armazenamento do acervo, os investigadores
mencionaram detalhes.
É preciso ver como serão os
desdobramentos. Propinocracia é quase um conceito de filosofia política. É uma
avaliação política. Quando um procurador da República faz isso, ele parece
estar discursando da tribuna da Câmara ou do Senado. Ele entra numa linha
política que o fragiliza.
É importante apurar uma conduta,
apresentar a prova e imputar um crime. Isso seria mais inteligente para a Lava
Jato, porque o que ocorreu hoje renderá um debate político no Brasil.
Certamente inflamará o país.
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Fonte: http://www.blogdokennedy.com.br/