sábado, 3 de setembro de 2016

Lições das crônicas da insubmissão: 'quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável'

Houve uma época no Brasil, infelizmente cada vez mais lembrada atualmente, em que para se dizer o que se pensava e se fazer o que se pretendia, tinha-se que usar outro nome. Dizer e fazer usando o nome real era coisa perigosa, com o risco do portador do nome "desaparecer" para sempre. Muitos jovens assim viveram - nos dois mundos dos dois nomes. Muitos artistas, censurados e perseguidos, tiveram de deixar o país, para continuarem sendo artistas. O jornalista Cid Benjamin é desses tempos. Exilado na Argélia e na Suécia, regressou ao Brasil apenas quando a Ditadura fruto do Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964, encurralada, dava sinais de esgotamento, tendo-se a Lei da Anistia. Pois bem, Cid acaba de fazer vir a lume o livro 'Reflexões Rebeldes', um livro de crônicas, crônicas da insubmissão. A chancela é da Editora José Olympio. Segue aí abaixo uma recessão da obra, da lavra de Daniel Arão Reis, outro também da estirpe Cid e dos tempos aqui referidos. A propósito, sobre Arão Reis, é de se registrar a sua pertinente posição sobre os males do corporativismo, assim como a sua crítica recente ao modo atabalhoado e prejudicial das greves nas universidades públicas. Como sublinha a recensão, 'Reflexões Rebeldes' é um livro afiliado a um estilo realçado pelos clássicos antigos: fortiter in re, suaviter in modo - firme na ação, suave na maneira. 

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Por Daniel Arão Reis 
(Historiador - Universidade Federal Fluminense) 

Quem se rebela, diz o dicionário, não acata ordem ou disciplina, não se submete. Os textos rebeldes de Cid Benjamin podem ser resumidos numa palavra: insubmissão.
Insubmissão à Ordem vigente, com a denúncia sem concessões às lacunas de nossa democracia "realmente existente": os privilégios e as injustiças, a sociedade de classes, a violência policial, o descontrole das instituições, inclusive do poder judiciário, a corrupção em larga escala, as formas elitistas de enfrentar a crise econômica.
Oposição também às políticas formuladas pelos governos petistas, às suas opções e critérios, ao seu "reformismo fraco" (André Singer), que, apesar de aspectos positivos, inegáveis, derivou na conciliação, na despolitização.
Insubordinação ainda a certas tradições de esquerda, corporativistas, como as greves nos serviços públicos, que penalizam mais as classes populares do que incomodam os homens do poder. Ou a determinadas formulações aparentemente radicais mas que só contribuem para isolar as esquerdas da sociedade.
A rebeldia destes escritos, porém, não tem nada que se assemelhe a uma "metralhadora giratória", atirando para todos os lados e a esmo, mesmo porque, como adverte o autor, citando Sêneca: "Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável".
Mas como definir uma rota e um porto nestes tempos sombrios?
Em quase 60 crônicas, a grande maioria publicadas a partir de 2014 em jornais e mídias sociais, Cid Benjamin tateia caminhos e esboça objetivos, ora em textos diretamente vinculados a conjunturas políticas precisas – e curtas; ora contemplando questões mais gerais – e permanentes, embora sempre ligadas à necessidade de travar o "bom combate" imposto pelos desafios da hora.
Trata-se de aprender com as experiências brasileiras (os erros do PT e de nossas esquerdas) e internacionais (Pepe Mujica e Podemos).
A este respeito, não há receitas prontas e acabadas, mas o autor não hesita em se expor e a defender pontos de vista claros, assumindo posições e tomando partidos, diante das questões candentes de cada momento político. Entretanto, em marcante contraste com os atuais tempos de intolerância, o faz, ponto forte do livro, evitando desqualificar, sempre argumentando, com linguagem propositiva, persuasiva, à maneira dos antigos: fortiter in re, suaviter in modo (firme na ação, suave na maneira).
E ainda tenta abrandar o choque, recorrendo, aqui e ali, a uma leve ironia ou à invocação de poetas e músicos para encorajar os ânimos a desejar utopias, pois como recomendava Mario Quintana, citado pelo autor, "tristes os caminhos se não fora/a presença distante das estrelas".

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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 03/09/2016.