Colonized Mind - Prince |
Por Rodrigo Burgarelli
O
professor Pablo Ortellado, que coordena o grupo de pesquisa em Políticas
Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP),
arregalou os olhos quando viu os resultados finais da pesquisa de opinião
organizada pela sua equipe durante um dos protestos a favor do impeachment
da [ex] presidente Dilma Rousseff, em 2015. Os dados mostraram um fenômeno
curioso: apesar da alta escolaridade dos manifestantes entrevistados (dois em
cada três tinham curso superior completo), a maioria afirmou acreditar em
boatos tão inverossímeis quanto “o PCC é o braço armado do PT” ou que
“50 mil haitianos vieram ao Brasil para votar em Dilma” nas eleições do ano
anterior.
O
resultado dessas pesquisas é revelador, mas cada vez menos surpreendente. Uma
série de estudos recentes num campo que congrega ciência política,
cognição e psicologia social está derrubando a ideia de que o acesso a mais
informação significa, de fato, que as pessoas ficarão mais bem informadas. Na
verdade, quando o assunto é política, parece acontecer o oposto: o ser humano
tende a reforçar ainda mais suas convicções (mesmo que estejam erradas) quando
são expostas a evidências que provem o contrário.
Essa
conclusão é nova, mas está se tornando consenso na academia. Um estudo que
se tornou referência foi conduzido em 2013 pelo cientista social Dan Kahan,do Centro
de Cognição Cultural, da Escola de Direito da Universidade de Yale. Mil adultos
daquele país foram recrutados para analisar dados fictícios de uma pesquisa
cujo objetivo era identificar se um novo creme para pele causava ou não
irritação. A conclusão foi a esperada: quem antes havia se saído melhor em
um teste de matemática conseguiu interpretar os números de maneira mais correta
e identificar os possíveis efeitos do creme.
Tudo
mudou, no entanto, quando o problema deixou de ser sobre um produto
dermatológico e passou a envolver um assunto bem mais polarizador nos Estados
Unidos: o porte de armas. Dados fictícios similares foram apresentados às
mesmas pessoas, mas desta vez relativos a supostos crimes em cidades que
proibiam ou permitiam o porte de arma pelos cidadãos. Dois grupos de dados
foram apresentados a grupos distintos: um deles levava à conclusão de que o
porte de armas estaria relacionado a aumento nos crimes, enquanto o outro
apontava o oposto. Dessa vez, o que separou a performance dos indivíduos não
foi mais a habilidade matemática, mas sim a ideologia: os liberais foram
melhores para interpretar os dados quando eles relacionavam o porte de armas
com um aumento de criminalidade, mas os conservadores ganharam quando a versão
apresentada do exercício apontava à direção contrária.
O
mais notável, no entanto, é que a taxa de erro no cenário político acabou sendo
quase duas vezes maior entre os indivíduos bons de matemática do que
entre os outros – justamente o contrário do que ocorrera quando o
assunto era um simples creme para pele. Em outras palavras, os pesquisadores
concluíram que a política “emburrece” mais justamente os mais aptos para
analisar as evidências de maneira técnica – o que torna a correlação entre alta
escolaridade e crença em boatos nas manifestações brasileiras algo bem mais
compreensível.
“Esse
processo existe, e isso está cada vez mais claro. Quando se discute algo
relacionado com um valor importante para uma pessoa, a reação natural é que ela
só saia mais convencida da sua certeza anterior”, diz Pablo Ortellado, que
coordenou as pesquisas dos protestos no Brasil. A reação natural dos indivíduos em proteger
seus valores foi batizada por Kahan como “cognição de proteção da identidade”.
Esse conceito, segundo ele, vem da importância dada pelas pessoas às crenças
compartilhadas pelos grupos com os quais se identificam. “Baseados em
mecanismos psicológicos, os indivíduos aceitam ou rejeitam evidências
empíricas, a partir de sua visão desejada de sociedade”, escreveu o
pesquisador.
Como
o que importa para a identidade de cada grupo muda de sociedade para sociedade,
é natural que consensos indiscutíveis em um determinado país sejam impossíveis
de serem alcançados em outro. Um exemplo disso é o aquecimento global. Nos
Estados Unidos, esse é um assunto polarizador, que divide o país em linhas
similares aos dos dois grandes partidos (democratas e republicanos). Lá, apenas
64% da população acredita que essa seja uma ameaça séria, segundo pesquisa
publicada na Nature em 2015. Já no Brasil, onde todos os grandes
partidos parecem compartilhar preocupação similar em relação ao tema, como
mostra artigo publicado pela Revista Opinião
Pública também em 2015, esse porcentual salta para 99%.
Para
Ortellado, dois fenômenos recentes são catalisadores desse processo cognitivo.
O primeiro é o efeito bolha nas redes sociais. “Vimos nas pesquisas que ambos
os lados nas manifestações dizem se informar sobre política principalmente no
Facebook. E estudos recentes mostram que o algoritmo usado para
escolher o que aparece na página de um usuário prioriza o que confirma as
opiniões dele.” O segundo seriam as chamadas “guerras culturais”. O professor
da USP explica: “O debate político está deixando de ser sobre questões
econômicas e está indo para temas relacionados a valores, como drogas e
homossexualidade. E os grupos e partidos estão se realinhando em torno dessas
novas disputas.”
Para
ele, essa tendência fortalece os vieses dos grupos que se articulam ao redor de
uma posição sobre esses temas. Isso teria ao menos um efeito macabro: o debate
público ficaria menos produtivo, já que um extremo não consegue conversar com o
outro, e quem está no meio se sente excluído da discussão. Novos estudos feitos
no Brasil corroboram essa tese. Um trabalho recente de dois pesquisadores da
Universidade de Brasília, Carlos Oliveira e Mathieu Turgeon, com base em bancos
de dados de pesquisas de opinião, concluiu que a grande maioria dos eleitores
não se alinha em torno dos polos de direita e esquerda.
A
disputa dos extremos no debate público, portanto, seria dirigida justamente a
essa grande maioria silenciosa. “Os extremos polarizam o debate, e isso dá a
falsa impressão de que é impossível conversar. Mas não é assim. Estimamos que
esses extremos totalizam cerca de 10 milhões de pessoas no Brasil. Todo o
resto, portanto, pode ir pra lá ou pra cá. São pessoas que nem se interessam
tanto por política, e por isso não têm tanta dificuldade em mudar de opinião ou
serem convencidas”, afirma Ortellado.
Para
alguns pesquisadores desse campo, mais importante do que entender
como funcionam os vieses cognitivos é descobrir como furá-los. A importância
disso está no uso prático – uma ONG ambientalista, por exemplo, precisa
convencer pessoas de que o aquecimento global ameaça a humanidade. Por isso
mesmo, partidos políticos e think tanks norte-americanos gastam
milhões de dólares financiando pesquisas para descobrir a resposta a duas
perguntas: É possível resolver impasses entre os extremos? E, se sim, como?
Ainda
não há respostas definitivas, mas aparecem hipóteses promissoras. Uma delas é
quase uma consequência óbvia da cognição de proteção de identidade: se a
tendência das pessoas é reagir à evidência sobre um assunto de maneira a não
contradizer as crenças do grupo social com o qual ela se identifica,
talvez ela fique mais aberta a mudar de ideia caso essas evidências sejam apresentadas
de maneira que reforcem sua visão de mundo, em vez de contestá-la.
Essa
saída foi testada por pesquisadores das universidades de Yale, Texas e de
Stanford, que tentaram mudar a opinião de estudantes que se declararam
contrários ou favoráveis à pena de morte. Eles concluíram que era mais simples
convencer alguém do contrário quando os argumentos eram apresentados
de maneira condizente com valores considerados importantes por essa mesma
pessoa em um momento anterior da pesquisa – se alguém havia dito que se
identificava como ligado à família, por exemplo, comentários que enfatizavam
esse traço pessoal eram feitos antes da leitura do texto, o que,
segundo os pesquisadores, aumentava as chances de o estudante mudar de ideia.
Mas
um artigo que saiu na revista Science, em
abril deste ano, causou furor especial nesse meio. Uma dupla de pesquisadores
da Universidade da Califórnia e de Stanford comprovou que existe outra maneira
eficaz de causar mudanças em opiniões fortes sobre um assunto polarizador: a
homossexualidade. O estudo, financiado por uma ONG de combate à homofobia,
consistia em enviar 56 entrevistadores – alguns transgêneros, outros não – em
mais de 500 residências na Flórida para conversar sobre preconceito contra
homossexuais e saber a opinião dos indivíduos em duas ocasiões diferentes,
separadas por três meses. O resultado provou que, quando um transgênero
realizava a entrevista, a chance de a pessoa reduzir sua pontuação em uma
escala de homofobia tinha aumento significativo. O contato pessoal com os
dramas pessoais, portanto, ajudaria a derrubar barreiras cognitivas que antes
pareciam intransponíveis.
O
que todos os estudos mostram é que, se nem evidências científicas são
suficientes para mudar a opinião de um convencido, partir para o enfrentamento
direto é a pior das estratégias. O melhor caminho para estimular o debate entre
grupos opostos – ou transformar uma opinião cristalizada sobre um assunto
politicamente sensível – pode estar em entender os valores considerados
importantes para os grupos e usá-los na hora de apresentar novos argumentos.
Parece simples, mas uma olhada rápida em qualquer feed de Facebook prova que
encontrar esse meio-termo pode ser tarefa árdua.
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Fonte: Estado de São Paulo, edição do dia 27/08/2016.
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