quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O tempo e a história se encarregam de colocar as coisas nos seus devidos lugares

Mesmo os mais afoitos historiadores do tempo presente são cautelosos na apreciação dos fatos de uma "conjuntura em configuração". Ao fim e ao cabo, é o recomendável. Exceto entre os açodados, nenhuma análise desprovida de um certo distanciamento e sem objetividade poderá ser levada a sério. Como já fez notar o cientista político Aldo Fornazieri, ainda persistirá uma forte polêmica sobre o afastamento da ex-Presidente Dilma Rousseff, com a discussão sobre se foi um processo legal e legítimo ou se foi um golpe de Estado. Ter-se-á assim uma disputa de narrativas, com aqueles que não querem carregar a pecha de golpistas lançando mão dos mais diversos artifícios retóricos para dela se livrarem. A discussão pública continuará, então, durante algum tempo, polarizada nestes termos, até o tempo ir acomodando as coisas. Do ponto de vista da ciência social, todavia, não é assim que a banda toca. Nem ao ritmo das paixões contaminadas por gostos políticos. Limpemos o terreno e vamos ao ponto. A negação do golpe no impeachment da ex-Presidente Dilma invoca dois postulados que, comparados com os fatos, se estiolam por si próprios. O primeiro é o que identifica golpe de Estado com uma intervenção militar que afasta um governo legítimo por um ato de força. Para quem desse modo pensa, basta que se leia o verbete Golpe de Estado do Dicionário de Política de Norberto Bobbio, para que se veja o equívoco desse raciocínio. Faz notar Bobbio que o conceito de golpe de Estado é diverso, e vai mudando de significado ao longo da história. Surgiu no século XVII, e só no século XX o coup d'Etat teve como atores principais chefes militares, detentores da burocracia estatal. Aponta Bobbio que uma constante nos golpes de Estado é a ação de órgãos do próprio Estado, podendo então serem desfechados por lideranças políticas do governo ou da oposição, por funcionários da burocracia civil, por militares ou por uma articulação desses vários setores. O segundo postulado estiolado: a ideia segundo a qual o impeachment seguiu um rito previsto na Constituição. Ora, está sobejamente demonstrado que nem tudo que é praticado sob a invocação da lei e da Constituição é legal. Quando do golpe civil-militar de 1964, que instaurou uma ditadura de vinte anos no país, a justiça conferiu constitucionalidade a atos flagrantemente anticonstitucionais. Mais particularidades do caso: nos momentos pré-impeachment, gravações de políticos (como a do senador Romero Jucá) vieram a público e por elas se ficou a saber que o afastamento da ex-Presidente era parte de um plano para barrar a Operação Lava Jato, num amplo acordo que beneficiaria até o ex-Presidente Lula. Afinal, cobrada a "controlar" a Polícia Federal, Dilma Rousseff se recusava a fazer ingerências na mesma. Em resumo, o fato é que ela foi deposta. Há detalhes, contudo, a notar. Por exemplo: a solidão política para a qual a ex-Presidente foi atirada pela Direção Nacional do PT, sendo abandonada pelo partido. Mas também o fato de ter sofrido o impedimento e, ao mesmo tempo, os seus algozes não terem aprovado a sua inabilitação: por 36 votos, foram mantidos os seus direitos políticos. Uma situação, essa,  que, sugerem as evidências, resultou de um acordo envolvendo o ex-Presidente Lula e o Presidente do Senado Renan Calheiros. Houve uma "crise de consciência"? Por que esses 36 votos não foram dados para não aprovar o impeachment? O objetivo era só mesmo derrubar a ex-Presidente? São perguntas a serem respondidas ao longo do tempo. Mas é, digamos, intrigante que se tenha, por um lado, reconhecido inocência a Dilma Rousseff, rejeitando-se a pena de cassação dos seus direitos políticos, e, por outro lado, os votos dessa sua absolvição, no que se refere ao impedimento, tenham sido dados para afastá-la da Presidência.  O ex-Presidente do STF Joaquim Barbosa, responsável pelo julgamento do mensalão e que levou petistas à cadeia, chamou o impeachment de 'espetáculo patético', questionando a legitimidade de Michel Temer para assumir a Presidência.  Por sua parte, avaliando o processo, o veterano jornalista Jânio de Freitas, de forma lapidar, intitulou o seu texto como 'Nenhum golpista já admitiu ser golpista' - texto aí abaixo. Seja como for, o tempo e a história se encarregam de colocar as coisas nos seus devidos lugares. 


Plenário do Senado lotado antes de votação que aprova o processo de impeachment da presidente afastada, Dilma Rousseff, nesta quarta


Por Jânio de Freitas 

Em inúmeras vezes, nas sessões do impeachment que presidiu, o ministro Ricardo Lewandowski disse ao plenário, com pequenas variações de forma: "Neste julgamento, os senadores e senadoras são juízes, estão julgando". Entre os 81 juízes, mais de 70 declaravam o seu voto há semanas, e o confirmaram na prática. Um princípio clássico do direito, porém, dá como vicioso e sujeito à invalidação o julgamento de juiz que assuma posição antecipada sobre a acusação a ser julgada. O que houve no hospício –assim o Senado foi identificado por seu presidente, Renan Calheiros– não foi um julgamento.
Os que negam o golpe o fazem como todos os seus antecessores em todos os tempos: nenhum golpista admitiu ser participante ou apoiador de um golpe. Desde o seu primeiro momento e ainda pelos seus remanescentes, o golpe de 1964, por exemplo, foi chamado por seus adeptos de "Revolução Democrática de 64". Alguns, com certo pudor, às vezes disseram ser uma revolução preventiva. É o que faz agora, esquerdista extremado naquele tempo, o deputado José Aníbal, do PSDB, sobre a derrubada de Dilma: "É a democracia se protegendo". Dentre os possíveis exemplos pessoais, talvez nenhum iguale Carlos Lacerda, que dedicou a maior parte da vida ao golpismo, mas não deixou de reagir com fúria se chamado de golpista.
As perícias e as evidências negaram fundamento nas duas acusações utilizadas para o processo do impeachment de Dilma. As negações foram ignoradas no Senado, em escancarada distorção do processo. Para disfarçar essa violência, foi propagada a ideia de que a maioria dos senadores apoiaria o impeachment levada pelo "conjunto da obra" de Dilma: a crise econômica, as dificuldades da indústria, o aumento do desemprego, o deficit fiscal, a suspensão de obras públicas, as dificuldades financeiras dos Estados e outros itens citados no Congresso e na imprensa.
Se os deputados e senadores se preocupassem mesmo com esses temas do "conjunto da obra", teríamos o Congresso que desejamos. E os jornais, a TV e os seus jornalistas estariam sempre mentindo com suas críticas, como normal geral e diária, sobre a realidade da política e dos políticos.
Nem as tais pedaladas e os créditos suplementares, desmoralizados por perícias e evidências, nem o "conjunto da obra", cujos temas não figuram nos interesses da maioria absoluta dos parlamentares, deram base para acusações respeitáveis em um processo e um julgamento. Se, no entanto, envoltos por sofismas e manipulações, serviram para derrubar uma presidente, houve um processo, um julgamento e uma acusação ilegítimos –um golpe parlamentar. Os que o efetivaram ou apoiaram podem chamá-lo como quiserem, mas foi apenas isto e seu nome verdadeiro é só este: golpe.
Esse desastre institucional contém, apesar de tudo, um ponto positivo. A conduta dos militares das três Forças, durante toda a crise até aqui, foi invejavelmente perfeita. Do ponto de vista formal e como participação no esforço democratizante que civis da política e do empresariado estão interrompendo.
O pronunciamento de ex-presidente feito por Dilma corresponde à aspiração de grande parte do país. Mas a tarefa implícita no seu "até daqui a pouco" exigiria, em princípio, mais do que as condições atuais da nova oposição podem oferecer-lhe, no seu esfacelamento. À vista do que são Michel Temer e os seus principais coadjuvantes, não cabem dúvidas de que os oposicionistas podem esperar muita contribuição do governo. Mas o dispositivo de apoio à situação conquistada será, a partir da Lava Jato, de meios de comunicação e do capital proveniente de empresários, uma barreira sem cuidado com limites.
Desde ontem, o Brasil é outro.

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 Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 01/09/2016.