Ao participar de um debate radiofônico, em Pernambuco, sobre a conjuntura nacional, foi-me pedido, ao final, um artigo com uma análise sobre as eleições municipais. Caso não se queira repetir lugares-comuns e se deseje de fato adotar uma postura analítica, tem-se diante de si um tema hard. O "beijo do populismo", tanto à direita como à esquerda, tende a repisar chavões e os ditos lugares-comuns: o oba-oba exaltando 'a festa da democracia', demonstração de que 'as instituições estão a funcionar normalmente', população 'exercendo a cidadania', etc. De outra parte, os interessados em adornar com tintas de normalidade o caos e a putrefação política que estamos a viver fazem retórica para tentar demonstrar que o processo eleitoral corre o seu curso convencional imaculadamente. Mas, seja no caso do "beijo populista", seja nesse último, parece que a banda toca diferente. Por quê? A conferir no referido artigo, aí abaixo, que chega primeiro por aqui.
Por Ivonaldo Leite
Quem
acompanha a série histórica das eleições municipais brasileiras, sabe que o
pleito deste ano está se caracterizando como o mais violento desde a primeira
eleição municipal pós-ditadura, em 1988.
Do
que se tem registro, já são contabilizados cerca de 30 assassinatos, sendo o
mais impactante o do candidato a prefeito de Itumbiara/GO, José Gomes da Rocha,
morto ao lado do vice-governador do estado, que também saiu ferido. Afora esses
casos extremos, são inúmeros os registros de discussões acaloradas e agressões,
com as ‘vias de fato’ requerendo a intervenção policial. O aumento da violência
tem ocorrido em dupla perspectiva: em termos quantitativos e em intensidade, com
os assassinatos, neste último caso, sendo marcados, por exemplo, pela
brutalidade de diversos disparos.
Um
outro fenômeno tem feito companhia à essa barbárie eleitoral: a “sofistificação”
e a naturalização da compra de votos. É fato
indiscutível que tal prática, na história política brasileira, é bastante
corriqueira. Contudo, o plus
do presente processo eleitoral
decorre da adoção de peculiares mecanismos para efetivar a compra de sufrágios
– em muitos casos, como estratégia para burlar a legislação e a fiscalização.
Assim surgem figuras como o ‘condutor de votos’ (aquele que faz a relação de
eleitores a serem comprados), bem como se efetiva a compra, quando é feita com
dinheiro em espécie, através dos serviços de mototaxistas. Cimento, tijolo,
telha, etc. continuam sendo moeda de uso corrente.
Empiricamente, dois fatos que tiveram lugar no
estado da Paraíba servem para ilustrar a naturalização do mercado do voto,
quais sejam: um candidato a vice-prefeito que pousou para foto ao lado de uma
mala cheia de notas de R$ 100,00 e um eleitor que resolveu anunciar venda de
votos mediante a afixação de uma placa.
Como que atônitas
autoridades se dizem impactadas com o grau de violência presente na campanha
eleitoral de 2016. Assim se manifestou, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes,
presidente do TSE. Data vênia, a tragédia era, de determinado modo, previsível,
e pode-se até mesmo operacionalizar uma hipótese analítica estabelecendo uma
relação causal entre o clima de ódio que foi reproduzido no país após o
resultado da eleição presidencial de 2014 e a violência na campanha do presente
ano.
Há cerca de dois
anos, em escala ascendente, a divergência civilizada de ideias no Brasil cedeu
lugar aos ataques da intolerância, as agressões físicas e as montagens em redes
sociais para reproduzirem mentiras (a propósito, quando se tem necessidade de
recorrer a montagens, é porque falta argumento). Nesse sentido, os disparates
abundam. Dois deles são bem característicos, isto é: o ataque ao cardeal de São
Paulo, Dom Odilo Scherer, que foi agredido durante uma missa e lançado ao chão
por uma senhora que o acusava de comunista; e a deplorável atitude de uma
pediatra no Rio Grande do Sul que se recusou a atender uma criança por causa da
opção política da mãe da mesma. Por conveniência política, determinados
segmentos se mantiveram omissos diante de tais fatos, pois, no momento em que
eles ocorreram, o que importava era engrossar as fileiras do impeachment.
Aliás, o próprio ministro Gilmar Mendes, sob o impulso de defender as suas
posições, mais de uma vez deu expressão à truculência verbal, a ponto de dizer
que o projeto da ficha limpa parecia ser ‘um projeto feito por bêbados’.
O acúmulo da intolerância, da deterioração do
ambiente de debate, das agressões, etc., está aí reverberando na violência
presente no atual processo eleitoral.
Com tudo isso –
violência, compra de votos, corrupção eleitoral -, ainda há quem insita em
dizer que, com as eleições municipais, estamos vivendo a ‘festa da democracia’,
que as instituições estão a funcionar bem, enfim, esses lugares-comuns.
Trata-se de um discurso mais próprio de um mundo paralelo, o que é coisa para a
psicanálise. Todavia, é de política que se trata. E o que os dispositivos da
sua análise revelam é que o jogo político-eleitoral chegou a um ponto em que –
com aliados de ontem sendo adversários hoje, para serem aliados novamente
amanhã – a encenação é elevada ao máximo, ao mesmo tempo em que se sepulta a
ação política fundada em bases programáticas. E assim se vai deteriorando a
democracia brasileira.
Desde Hobbes,
sabemos que a guerra de todos contra todos não leva a lugar nenhum, a não ser a
catástrofes e mais catástrofes. Daí que se há algo que a teoria política
moderna nos legou e que tem sido uma dimensão central nas ‘democracias
avançadas’ é o conceito de contrato. A pactuação entre cidadãos, pois a força
cria situações de fato, mas não estabelece o direito. O nível de deterioração
da democracia brasileira tem levado cientistas sociais estrangeiros, como o
sociólogo catalão Manuel Castells, a colocarem em dúvida o futuro do país.
Tirar as devidas
ilações do grau de violência verificado no atual processo eleitoral, assim como
da banalização do mercado do voto, é, portanto, condição sine qua
non para pensar em um novo contrato político para o Brasil. Afinal, como
assinala um postulado da ética, ‘seres vocacionados para a liberdade também são
livres para se destruírem’.