Por César Benjamin
1.
Muitos motivos se somaram, ao longo da nossa história, para dificultar a tarefa de decifrar, mesmo imperfeitamente, o enigma brasileiro. Já independentes, continuamos a ser um animal muito estranho no zoológico das
nações: sociedade recente, produto da expansão européia, concebida desde o início
para servir ao mercado mundial,
organizada em
torno de um escravismo prolongado e tardio, única monarquia em um continente republicano, assentada em uma extensa base territorial situada
nos trópicos, com um povo em processo de formação, sem um
passado profundo onde pudesse ancorar sua identidade. Que
futuro estaria reservado para uma nação assim?
Durante muito tempo, as tentativas feitas para compreender esse enigma e constituir uma teoria
do Brasil foram, em larga medida,
infrutíferas. Não sabíamos
fazer outra coisa senão copiar saberes da Europa, onde predominavam
os determinismos geográfico (“a civilização é uma conquista
dos países frios, pois é a vitória
das sociedades contra as dificuldades impostas pelo ambiente”) e racial (“a civilização expressa
o potencial de alguns
subgrupos humanos mais aptos”) que irremediavelmente nos condenavam. Enquanto o Brasil se olhou no espelho europeu
só pôde construir uma imagem negativa e pessimista de si mesmo, ao constatar sua óbvia condição não-européia.
2. Houve muitos esforços meritórios para superar
esse impasse. Porém,
só na década de 1930, depois de mais
de cem anos de vida independente, começamos a
puxar consistentemente o fio da nossa própria
meada. Devemos ao conservador Gilberto
Freyre, em 1934, com Casa-grande & senzala, uma revolucionária
releitura do Brasil, visto a partir do complexo
do açúcar e à luz da moderna
antropologia cultural, disciplina que então apenas
engatinhava. Abandonando os enfoques da geografia
e da raça, Freyre revirou
tudo de ponta-cabeça, realizando um tremendo resgate do papel civilizatório de negros e índios dentro da formação
social brasileira. Dos portugueses, elogiou a miscibilidade, a plasticidade e a mobilidade, características que os distinguiam dos colonizadores de origem anglo -saxã.
A colonização do Brasil, ele diz, não foi obra do Estado ou das demais instituições formais, todas aqui muito fracas.
Foi obra da família patriarcal, em torno da qual constituiu- se um modo de vida completo
e específico. O latifúndio monocultor e o regime escravista de produzir
afastavam, separavam, machucavam, mas a família
extensa, cheia de agregados, a poligamia num contexto de escassez de mulheres brancas
e a presença de considerável
escravaria doméstica constituíam espaços de intercâmbio, nos quais negros e negras, índios e índias – especialmente, negras e índias –, muito mais adaptados aos trópicos, colonizaram o colonizador, ensinando-o a
viver aqui. Mulatos, cafusos e mamelucos
se multiplicaram, criando
fissuras na dualidade radical que opunha
senhores e escravos.
Nada escapa ao
abrangente olhar investigativo do antropólogo: comidas, lendas, roupas, cores,
odores, festas, canções, arquitetura, sexualidade, superstições, costumes, ferramentas e técnicas, palavras
e expressões de linguagem. Cartas
de bisavós saem de velhos
baús. Escabrosos relatórios da Inquisição são expostos com fina ironia
por esse bisbilhoteiro que
estava interessado, antes de tudo, em desvelar a singularidade da experiência brasileira. Ela não se encontrava na política nem na economia, muito menos nos feitos dos grandes
homens. Encontrava-se na cultura, obra coletiva de gerações anônimas. Uma cultura de síntese, que afrouxou e diluiu a tensão entre os códigos morais e o
mundo-da-vida, tensão constitutiva das sociedades de tradição judaico-cristã. Nossa alegria, diz Freyre,
a devemos a índios e negros nunca
completamente moralizados pelo cristianismo do colonizador. Um
cristianismo, aliás, que também precisou misturar-se.
3. Devemos a
Sérgio Buarque , em 1936, com Raízes
do Brasil, um instigante ensaio – “clássico
de nascença”, nas palavras de Antônio Candido – que tentava compreender como uma sociedade rural, de raízes ibéricas,
experimentaria o inevitável trânsito para a modernidade urbana e “americana” do século
XX. Ao contrário do pernambucano Gilberto Freyre, o paulista Sérgio
Buarque não sentia
nostalgia pelo Brasil
agrário que estava
se desfazendo, mas tampouco acreditava na eficácia das vias autoritárias, em voga na década de 1930, que prometiam
acelerar a modernização pelo alto. Observa
o tempo secular da história. Considera a modernização um processo. Também busca a singularidade do processo brasileiro, mas com olhar
sociológico: somos uma sociedade transplantada, mas nacional, com características próprias.
A dimensão privada
e afetiva da vida sempre se sobrepôs – para o bem e para o mal – à impessoalidade burocrática, não raro descambando para o passionalismo e a impulsividade típicos do homem
cordial, num quadro
geral de ausência
de direitos formais.
Nossa história,
diz Sérgio Buarque,
girou em torno do “complexo
ibérico”. Mas o êxito
da colonização portuguesa não decorreu de um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade
construtora e enérgica; buscou a riqueza que custa ousadia,
não a riqueza que custa trabalho. A ética da aventura prevaleceu sobre a
ética do trabalho. É uma herança atrasada,
em via de superação, mas foi a base da nacionalidade, constituiu as “raízes do Brasil”. Não se pode nem se deve, simplesmente, recusá-la
e negá- la, mas sim transformá - la.
“Precisamos
ousar inaugurar, de forma
inédita, o que nunca se
fez nessas latitudes”,
–
eis uma frase cheia de significados: devíamos encontrar o caminho para superar o nosso atraso e, ao mesmo tempo, afirmar
a nossa identidade, potencializando as nossas
virtudes. Teria de ser, necessariamente, um caminho cheio de especificidades, como são cheios de especificidades, quando autênticos, os caminhos de todos os povos. Tremendo
desafio, numa sociedade, ele diz, em que a inteligência sempre foi um ornamento, um beletrismo ávido por importar as últimas modas, incapaz de produzir conhecimento e impulsionar qualquer mudança real.
Mesmo assim,
Sérgio Buarque é otimista. Anuncia que “a nossa revolução” está em marcha, com a dissolução do complexo ibérico
de base rural
e a emergência de um novo ator decisivo, as massas urbanas. Crescentemente
numerosas, libertadas da tutela dos senhores locais, elas
não mais seriam demandantes de favores, mas de direitos. No lugar da comunidade doméstica, patriarcal e privada, seríamos
enfim levados a fundar a comunidade política, de modo a transformar, ao
nosso modo, o homem cordial em cidadão.
4. Apenas seis
anos depois, em seqüência
vertiginosa, Caio Prado Jr. publica Formação do Brasil contemporâneo, a primeira grande
síntese historiográfica brasileira em quase cem anos, se contarmos
desde Varnhagen. Realiza
nesse texto o definitivo desvendamento das nossas origens
como uma empresa colonial, acompanhado da hipótese forte de que a história do Brasil tem um sentido profundo, o da transformação dessa empresa, que fomos, em
uma nação, que seremos.
Caio Prado
percebe que a colonização do Brasil representou um problema novo, pois os padrões
mais conhecidos de dominação ao longo da História
humana – a pilhagem
de riquezas acumuladas, a cobrança de tributos e o estabelecimento de comércio desigual
– não se aplicavam nestas terras sem metais preciosos
(no século XVI) e habitadas
por tribos dispersas, que viviam no Neolítico. A solução do problema demandou mais de trinta anos. Organizou-se finalmente uma empresa territorial de grande dimensão,
com administração portuguesa, capitais
holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira
– a cana. Esses elementos
foram articulados em uma holding multinacional movida por força
de trabalho escrava, mas regida pelo cálculo econômico e pela busca do lucro. Tudo o que existia aqui –
a paisagem, a fauna, a flora e as gentes – teve de ser decomposto e
desfeito, depois recomposto e
refeito, de outras maneiras, para que o
empreendimento mercantil prosperasse.
Na origem,
diz Caio Prado,
não fomos uma nação, nem propriamente uma sociedade; fomos uma empresa
territorial voltada para fora e controlada
de fora. A empresa-Brasil sempre deu certo: propiciou bons negócios e gerou altíssimo
lucro. Nos séculos XVI e XVII foi excelente
o negócio do açúcar, a primeira mercadoria
de consumo de massas em escala planetária, em torno da qual se formou o moderno mercado
mundial. Foi depois magnífico o negócio do ouro; graças a ele, a Inglaterra – que nunca teve minas de ouro – constituiu
as enormes reservas
que lhe permitiram
criar, no século
XIX, o primeiro padrão monetário
mundial (o padrão libra-ouro), símbolo e suporte de sua hegemonia. A partir de 1840, até bem entrado o século XX, foi maravilhoso o negócio do café, estimulante de baixo custo e fácil
distribuição, ofertado à classe trabalhadora
da Europa e dos Estados
Unidos que precisava ser disciplinada para o trabalho
fabril. Além disso, permeando
toda a nossa história, foi sempre estupendo
o negócio do endividamento perpétuo dessa
empresa-Brasil, induzido pelos seus controladores de fora.
Porém, a
existência multi-secular da gigantesca e diversificada empresa territorial criou paulatinamente os elementos
constitutivos de uma nova nação: “Povoou-se
um território semideserto; organizou-se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia aqui, dos indígenas e suas
nações, como também da dos portugueses que empreenderam a
ocupação. Criou-se no plano das
realizações humanas algo novo (...): uma população bem
diferenciada e caracterizada, até etnicamente, habitando determinado território; uma estrutura
material particular, constituída na base de elementos próprios;
uma organização social
definida por relações
específicas; finalmente, uma consciência, mais precisamente uma certa ‘atitude’ mental coletiva particular. (...) Esse novo processo histórico se dilatou e se arrasta. Ainda
não chegou ao seu termo.”
Eis aí uma
importante chave de leitura para compreendermos as tensões que experimentamos até hoje: elas
refletem o choque entre o Brasil empresa-para-os-outros, que ainda somos, e o Brasil nação-para-si, que desejamos ser.
Completar esse processo, “fazê-lo chegar
ao seu termo” – ou, ainda na linguagem de Caio Prado, realizar a Revolução Brasileira – é fazer desabrochar a última grande nacionalidade do Ocidente moderno,
uma nacionalidade
tardia, cujos potenciais permanecem em grande medida incubados.
5.
Devemos em seguida a Celso Furtado uma
brilhante síntese da Formação econômica do Brasil, um texto
que também falava
de História para mostrar os desafios fundamentais da modernização brasileira no século XX.
Como os demais, Furtado escreve um ensaio de interpretação, uma “história pensada”, a partir do ponto de vista de um economista com sólida formação
humanista. Descarta a idéia de que o Brasil teria
reproduzido tardiamente uma sociedade de tipo feudal.
Descreve as características dos ciclos econômicos baseados na produção
de bens primários e impulsionados pela demanda externa,
e aponta as insuficiências e os desequilíbrios que deles decorrem.
Olha as regiões, estuda os casos de decadência sem transformação. Mostra que em nossa história,
recorrentemente, a fonte de demanda
autônoma foram as exportações de alimentos, matérias-primas e minérios; que o mercado
interno se atrofiou, induzindo a um baixo efeito
multiplicador da renda
gerada; que
houve permanente vazamento de riqueza, em
grande escala, para o exterior. Permanecemos na
periferia do sistema-mundo que nos deu à luz. Como poderíamos sair dessa posição?
Ao longo de toda sua obra, Furtado diz que o subdesenvolvimento é um processo específico, que tende
a reproduzir-se no tempo, e não uma etapa transitória, que conteria em si, mais ou menos naturalmente, as condições de sua superação. O fortalecimento do mercado interno, o desenvolvimento da indústria e a formação de um núcleo endógeno de criação e difusão de
progresso técnico – necessários para a superação da nossa condição – não
poderiam resultar de forças espontâneas. Exigiam uma intervenção consciente, voltada para produzir mutações. Tornou-se clássica
a sua análise sobre a adoção pelo Brasil, de maneira inovadora
e pragmática, de eficazes políticas
anticíclicas em plena crise de 1929- 1933, antes mesmo
que essas políticas tivessem sido claramente modeladas pela moderna teoria econômica. Elas criaram uma situação nova, que lançou as bases do nosso processo de industrialização. Levá- lo às últimas conseqüências era o desafio a vencer.
Furtado nunca
dissociou conhecimento e valores, economia e sociedade: “O processo
de reprodução das desigualdades sociais
exerce uma influência decisiva sobre as formas de utilização do excedente.
Portanto, a composição
do excedente é em grande parte um reflexo
do sistema de dominação social,
o que significa que sem um conhecimento das estruturas de poder é impossível avançar no estudo do
desenvolvimento das forças produtivas.”
Poucos são os economistas atuais capazes de conduzir análises desse tipo.
6. Tributárias
de diferentes influências – notadamente Franz Boas, Max Weber, Karl Marx e John M. Keynes, nessa ordem –, essas quatro
obras seminais lançaram as bases da moderna ciência
social brasileira e permitiram o início de uma fecunda reinterpretação do Brasil. Como pano de fundo estava em marcha o ciclo desenvolvimentista, com a força de processos estruturais
(e estruturantes) que nos conduziam, acreditava-se, do passado (população rural,
economia agrícola, território fragmentado) ao futuro (população urbana, economia industrial, território integrado). Sabendo falar sobre nós mesmos, com a nossa própria linguagem, tínhamos finalmente uma identidade
em construção. Sabendo diferenciar passado e
futuro, vivíamos agora em um tempo orientado, condição primeira para se constituir um
projeto. Os impasses do Império escravista e a pasmaceira da República Velha
haviam ficado para trás.
Tivemos muitos outros intelectuais visionários e homens de ação. Entre eles, Darcy Ribeiro talvez tenha
sido o maior profeta da civilização brasileira. Inverteu radicalmente os velhos argumentos europeus
contra nós, afirmando as vantagens da mestiçagem tropical diante de uma pretensa pureza
temperada e fria.
Mostrou como, aos trancos
e barrancos, conseguimos fazer um povo-novo
a partir dos grupos humanos
que o capitalismo mercantil encontrou neste território ou
transplantou para cá – na origem, índios destribalizados, brancos deseuropeizados e negros
desafricanizados, depois gente do mundo inteiro. Estudou as características fundamentais
desse contingente humano filho da modernidade,
o maior povo-novo do mundo
moderno. Viu que ele é também um povo-nação, reconhecendo-se como tal, falando uma mesma
língua, habitando um território bem- definido
e tendo criado o seu próprio Estado.
Debruçado em ampla visão da aventura humana,
falou de um povo que ainda está no começo de sua própria história, e cuja identidade – por sua gênese e sua trajetória – não pode basear-se em raça, religião,
vocação imperial, xenofobias ou vontade de
isolar-se. Um povo que tem na cultura a sua única razão de existir.
A composição ficava quase completa: éramos um país miscigenado, sentimental e alegre, moderno,
culturalmente antropofágico, aberto ao outro e ao novo, desejoso de desenvolver-se,
cheio de oportunidades diante de si. O passado
nos condenava, mas o futuro
nos redimiria. A figura mítica de Macunaíma
e a figura real de Garrincha – figuras fora dos padrões, que faziam tudo errado, para no fim dar tudo certo – nos divertiam e nos encorajavam.
7. Produzimos assim, entre as décadas de 1930 e 1960, contornos nítidos de uma certa idéia de Brasil. Não
importa discutir se essa idéia
estava cem por cento correta
ou errada, do ponto
de vista de uma pretensa
ciência positiva, se era precisa
em minúcias, se tudo podia
explicar, pois a representação ideológica de uma sociedade
sobre si mesma cumpre a função de sinalizar valores,
despertar esperanças e mobilizar energias, e não de retratar fielmente “o que existe”. Em certo
momento de sua história, depois
de quatro séculos
em um labirinto, o Brasil reconheceu-se assim e percebeu-se portador
de potencialidades insuspeitadas. É impossível exagerar
a importância desse passo. Justo por isso, é também impossível exagerar o devastador impacto de sua desconstrução, realizada em troca de nada.
Ao contrário
do que se pensa, nossa crise atual não é, simplesmente, uma crise econômica. Resulta,
em primeiro lugar e antes de tudo, da progressiva perda da idéia de Brasil, substituída pelos chavões daquela
mesma inteligência ornamental, inútil, farsesca, adepta da moda, a que Sérgio
Buarque se referia.
A moda hoje é globalização, e a única diferença é que os saberes
– hélas! – não são mais importados da Europa, mas dos Estados Unidos. O efeito é o mesmo: como pano de fundo, negatividade e desqualificação do que somos e podemos vir a ser, compensadas
agora com doses cavalares de marketing.
O sofisticado
debate sobre a nossa especificidade e os nossos caminhos foi deslegitimado. A mediocridade voltou a mover-se
em cena com altivez espantosa,
cada vez mais arrogante e orgulhosa de si. Ela não gosta de imaginação, qualidades, invenção de caminhos;
gosta de rótulos, pede mesmice. Na década de 1990, pela boca
das nossas maiores
autoridades e de alguns
dos nossos mais influentes intelectuais – sobretudo os economistas –, jogamos
fora todo o esforço intelectual anterior e passamos
a nos reconhecer como...
um mercado emergente. Profunda mudança de ponto
de vista. Até então, mesmo que fôssemos uma nação incompleta e muito
imperfeita, ainda vivíamos num universo
ideológico em que completá- la e aperfeiçoá-la, de uma forma ou de outra, eram as nossas referências comuns. Quando passamos a nos
reconhecer apenas como mercado, tudo mudou. Mercado não é
lugar de cidadania, solidariedade, soberania, identidade. É espaço de
fluxos, dominado pela concorrência, onde sobrevivem os mais fortes, e ponto final.
8. O fato mais
notável dos últimos 25 anos, na
História do Brasil, é a radical alteração das categorias que organizam e delimitam o nosso imaginário. Recuemos um pouco. No início do século XX, sob influência do
positivismo, o Brasil dizia buscar, antes
de tudo, civilização e progresso,
conceitos que hoje podem soar equivocados ou ingênuos, mas que estavam explicitamente ligados a um futuro humano:
a idéia de que progressos materiais
pudessem sustentar-se em um vasto retrocesso social ou moral era então
inimaginável, pois os avanços nessas várias esferas eram concebidos
como paralelos e complementares. Depois,
como vimos, o Brasil passou a falar em modernização, formulada como uma resposta ao atraso e à pobreza;
o esforço modernizador só era necessário e legítimo porque eliminaria essas mazelas. As pessoas, os grupos sociais
e a comunidade nacional, com sua diversidade e complexidade, permaneciam sendo a referência fundamental de um debate que nunca se dissociava de fins e destinos.
Estamos agora
esmagados pelo discurso da competitividade. Nem mesmo no plano das
intenções ele expressa alguma grandeza. O pensamento das elites dominantes comporta-se como se elas não mais devessem explicações a ninguém. A competitividade segue a mesma lógica
da guerra – conquistar supremacia sobre o outro – e exige apenas um tipo de progresso,
de natureza tecnológica. Um progresso
dos meios, de alguns meios manejados
por poucos, que nada diz sobre fins. Esse conceito
vazio de conteúdos
humanos e
avesso a juízos sociais abrangentes foi alçado à posição de articulador do
nosso discurso e legitimador do modelo de sociedade que se deseja implantar. Com o agravante
de que, agora, predomina a acumulação financeira – volátil, esperta,
sempre de olho no curto prazo, em grande medida
fictícia, de natureza intrinsecamente especulativa, com enorme potencial destrutivo.
O grande
capital – pois ele é que é “competitivo” – apresenta-se como portador de uma racionalidade que seria generalizável, sem
mediações, para a sociedade como um todo. Inversamente, todas
as outras lógicas – a dos pobres, a dos agentes econômicos não capitalistas
ou simplesmente não competitivos, a da cidadania, a da soberania, a da cultura, a dos interesses nacionais
de longo prazo – são consideradas irracionais ou desimportantes. Devem ser denunciadas, humilhadas e,
progressivamente, silenciadas. Não articulam linguagens, mas ruídos; não expressam
direitos, mas custos; não apontam para outras maneiras de organizar a sociedade, mas para a desordem e o caos na economia, acenados pelos
poderosos como permanente ameaça.
9. Além de
vasta cultura e honradez
intelectual, Gilberto, Sérgio, Caio,
Celso, Darcy e tantos outros, mesmo alinhando-se a
correntes teóricas e políticas muito diferentes, mesmo propondo
interpretações diversas, tinham uma coisa fundamental em comum: gostavam do Brasil. Desejavam do fundo da alma que o país desse certo e a isso dedicaram
suas vidas e seus melhores esforços. Tal sentimento transparece em
cada linha que escreveram, em cada gesto que fizeram,
em cada palavra
que disseram. Havia
generosidade neles. Eis aí outra mudança importante: evidentemente, manifestamente, cinicamente, quase explicitamente, os formuladores e
divulgadores do novo discurso hegemônico não gostam
do
Brasil. Gostam
de business. O que estamos ouvindo
deles, todo o tempo, é que o Brasil, como sociedade, nação
e projeto, não tem sentido
nenhum. Atrapalha. A esperança-Brasil deu lugar ao risco-Brasil.
Conferindo aos mais ricos riqueza cada vez maior, associada a padrões culturais
e de consumo cada vez mais distantes da realidade local,
e condenando a maioria a um padrão de vida em declínio, essa opção alimenta
forças centrífugas que apontam para o rompimento dos vínculos históricos e socioculturais que até aqui mantiveram, em algum nível, juntos os cidadãos.
Os grupos mais bem-posicionados para participar do mercado mundial
ficam cada vez mais tentados a desfazer quaisquer
laços de solidariedade nacional, desligando completamente seu padrão de
vida, seus valores, a forma de denominar
e investir sua riqueza – e, portanto, o seu
próprio destino – dos padrões, valores e destino do país
como um todo.
Os fatos do cotidiano
mostram como se debilitam rapidamente, entre nós, as bases de uma sociabilidade civilizada: um regime comum de valores, caminhos
de mobilidade social ascendente, a idéia de um futuro
em construção. As conseqüências disso,
no longo prazo,
são imprevisíveis. Os segmentos que têm pressa de ser modernos
a todo preço pedem a criação de instituições blindadas e de áreas
de circulação restringida, onde a competitividade, a lucratividade, a
velocidade e o pragmatismo, bem como o estilo de vida a eles associado, possam ostentar-se sem empecilhos. Mas essas instituições e áreas permanecem imersas em um território físico
e social muito
maior, que contém
população diferenciada, necessidades várias, comportamentos múltiplos,
problemas outros.
É uma ilusão achar que
elas possam desatar os laços que as ligam ao contexto em que estão.
10. Darcy
Ribeiro mostrou como o primeiro passo no processo de submissão e destruição dos indivíduos indígenas era a transformação do
índio específico – o gavião, o urubu- kaapor, o xavante, o bororo, portador
de uma história, integrante de uma comunidade, habitante de um espaço cheio de significados – naquilo que chamou de “índio genérico”, um sem- lugar, cuja indianidade, inscrita no seu corpo mas não mais na sua cultura, passava
a ser um signo negativo
no mundo dos brancos, no qual ele se inseria
sempre por baixo.
Acredito que muito da angústia de Darcy,
no fim da vida, tenha vindo da percepção de que o povo brasileiro, como um todo,
corria o risco
de transformar-se em um povo genérico e inespecífico, ao qual também
restaria eternizar uma inserção por baixo e tendencialmente declinante no sistema internacional.
É este o nosso maior desafio,
que pode ser visto de vários ângulos.
Para retomar a terminologia
de Caio Prado, estamos assistindo à vitória – temporária, porque a-histórica – da
perspectiva do Brasil empresa-para-os-outros sobre o Brasil nação-para-si. Impõe-se, pois, uma dura luta política e cultural. As alternativas são radicais para ambos os lados. Há uma bifurcação no caminho. O país terá de decidir:
ou aceita tornar-se apenas um espaço de fluxos do capital internacional, o que significa ser expulso da História, ou retoma seu processo
de construção em novas bases.
Se quisermos a
segunda opção, temos de reencontrar uma
idéia de Brasil. Por trás do poderio
dos Estados Unidos há uma idéia de Estados Unidos.
Por trás da reconstrução do Japão há uma idéia de Japão. Por trás da União Européia
há uma idéia de Europa.
Por
trás da ascensão da China há uma
idéia de China. Se não
reconstruirmos uma idéia de Brasil, nenhum passo consistente poderemos
dar. (O título deste artigo,
aliás, é retirado
das Memórias do general De
Gaulle. Oficial do estado- maior do Exército francês, recusou-se a render-se aos alemães, que naquela fase da
guerra pareciam invencíveis, e protagonizou
uma fuga espetacular para a Inglaterra, de onde liderou
a Resistência. Segundo
escreveu, fez isso,
afrontando naquele momento
todas as probabilidades de êxito, porque
tinha na cabeça “uma certa idéia de França”, e a vida sob ocupação
não cabia nela.)
11. O esforço
dos pensadores que nos
antecederam deixou pontos de partida muito valiosos.
Mas devemos reconhecer que eles nos falaram de um país que, pelo menos em parte, deixou de existir. O Brasil de Gilberto
Freyre girava em torno da família extensa da casa-grande, um espaço
integrador dentro da monumental desigualdade; o de Sérgio Buarque apenas
iniciava a aventura de uma urbanização que prometia associar-se a modernidade e cidadania; o de Caio Prado mantinha
a perspectiva da libertação nacional
e do socialismo; o de Celso Furtado
era uma economia
dinâmica, que experimentava uma acelerada modernização industrial; o de Darcy Ribeiro – cujos ídolos,
como sempre dizia, eram
Anísio Teixeira e Cândido Rondon – ampliava a escola pública de boa qualidade e recusava
o genocídio de suas populações mais fragilizadas.
Os elementos centrais
com que todos
eles trabalharam foram
profundamente
alterados nas últimas décadas. A economia mais
dinâmica do mundo, que dobrou seu produto cinco vezes seguidas em cinqüenta anos, caminha para experimentar a terceira década rastejante. Todos os mecanismos que garantiram mobilidade social na maior parte do século XX foram
impiedosamente desmontados, a começar da escola pública. A urbanização acelerada concentrou multidões desenraizadas, enquanto a desorganização do mercado de trabalho multiplicava excluídos. Tornado refém do sistema
financeiro, o Estado
nacional deixou de cumprir funções estruturantes essenciais. A
fronteira agrícola foi fechada, estabelecendo-se nas áreas de ocupação recente uma estrutura
fundiária ainda mais concentrada que a das áreas de ocupação secular.
Nesta sociedade urbanizada e estagnada, os meios eletrônicos
de comunicação de massas tornaram-se, de longe, a principal instituição difusora de desejos, comportamentos e valores,
inoculando diariamente, maciçamente,
irresponsavelmente uma necessidade de consumo desagregadora, pois inacessível. “Nunca foi tão grande a distância
entre o que somos e o que poderíamos
ser”, disse recentemente
Celso Furtado, antes de nos deixar.
Todos esses
processos estão aí, a nos desafiar, exigindo de nós um esforço de análise talvez mais árduo do que aquele realizado
pelas gerações dos nossos mestres.
Ainda não sabemos bem até que ponto tais processos
alteraram definitivamente as condições sociológicas da nossa
existência, e em que direção. Não temos uma teoria do Brasil contemporâneo. Estamos
em vôo cego, imersos em uma crise de destino,
a maior da nossa existência. A História
está nos olhando
nos olhos, perguntando: “Afinal, o que vocês são? O que querem ser? Tem sentido existir Brasil? Qual Brasil?”
Temos hesitado
em enfrentar questões tão difíceis, tão radicais. Preferimos brincar de macroeconomia. Mas a disjunção está posta: ou o povo brasileiro, movido por uma idéia de si
mesmo, assume pela primeira vez o comando de sua nação, para resgatá- la, reinventá- la e desenvolvê- la, ou assistiremos neste século ao desfazimento do Brasil. Se ocorrer, este último
desfecho representará um duríssimo golpe
nas melhores promessas da modernidade ocidental e será um retrocesso
no processo civilizatório de toda a humanidade. A invenção do futuro se tornará
muito mais penosa, para todos.
“Os discursos de quem viu”, dizia
Vieira, “são profecias”.
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Fonte: http://www.contrapontoeditora.com.br/arquivos/artigos/200711011651590.Certa%20ideiade%20Brasil.pdf
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