Sabem aqueles que têm treino na análise social que a expressão 'a fantasia desfeita' remete a uma obra de Celso Furtado, que trata de um período da vida do Brasil que vai do governo JK até o golpe militar de 1964. Desmoronaram aspirações. Pois bem, sempre ouvimos falar de uma 'simpatia brasileira', que às vezes, por ignorância, procurava-se ancorá-la na obra de Sérgio Buraque de Holanda. Fraude maior, não pode haver, por certo. Mas, bem que a empresa prosperou, sob as asas do patrimonialismo - o 'jeitinho', a 'carnavalização', o estiolamento da esfera das convenções pelo modo doméstico, a confusão entre o público e o privado (que tanto faz os políticos nacionais agirem nos governos como se estivessem gerindo as suas casas), etc. Isso é tão forte que, muitas vezes, nem a universidade (como 'lugar esclarecido', que deve refletir sobre as mazelas da sociedade) escapa do imbróglio - o populismo tem-lhe feito estragos. Coisa da 'simpatia brasileira', dizia-se. Lorota. É, no mínimo, 'estranho' uma sociedade violenta e com demonstrações de intolerância ter como sua marca distintiva a simpatia. Por essa linha de abordagem vai o conhecido cientista social Manuel Castells, ao assinalar, em entrevista recente, que a simpatia brasileira é um mito. A conferir aí abaixo.
Entrevista realizada por Sylvia Colombo (Folha de São Paulo)
Folha
- Em 2013, o sr. disse que nosso grande problema era político, não econômico. E
agora, que nossa economia tampouco anda bem?
Manuel
Castells - Quando aponto a questão política me refiro a uma
crise mundial dos sistemas tradicionais de democracia representativa, por conta
da corrupção, agora mais exposta porque as pessoas têm mais acesso à informação
e mais capacidade de organização por conta da internet.
O sistema político
brasileiro está mal como estão mal todos os sistemas do mundo. Há protestos e
desgaste dos partidos tradicionais, além da aparição de correntes populistas de
extrema-direita e de extrema-esquerda.
Na Espanha, em Portugal e na Grécia, a reação é de esquerda. Na França, na
Inglaterra e na Alemanha, é de direita.
O
que causa essa crise de representatividade?
Os cidadãos deixaram
de aceitar que sua capacidade política seja um voto a cada quatro anos. Há uma
insatisfação com toda a classe política. E isso não significa que se acredite
que todos os políticos sejam corruptos, mas sim que há uma classe política que
está separada da cidadania, que é formada por profissionais que têm um
interesse comum: o monopólio da política da corrupção.
Essa é a raiz do
problema no Brasil, mas não só. Nos últimos anos vimos que afundou o sistema
político italiano, espanhol, grego, está afundando o da Argentina, o do México.
É algo mais profundo.
Qual
a especificidade do Brasil, então?
Está ocorrendo a tempestade
perfeita. Junto a essa crise de representatividade, uma piora da economia.
Houve um período de bom crescimento com redistribuição. Mas a desaceleração da
China fez com que ficasse difícil manter o mesmo alto nível de gasto público. E
então ressurgiu a inflação, que já sabemos que foi um câncer para a economia e
a sociedade brasileira em outras épocas.
No momento em que o
governo atual percebeu que poderia haver um aumento da inflação, deveria ter
restringido o gasto público, e não o fez.
O
sr. tem estudado comparativamente protestos recentes –além do Brasil, os casos
do Occupy (EUA), da primavera árabe, do Chile, do México e outros–. O que têm
em comum?
O fato de não se
tratarem de movimentos programáticos, mas emocionais, e de surgirem
espontaneamente. Essa indignação inicial permite que se amplie a temática do
movimento. A palavra "dignidade" se repete em todos eles. E por quê?
Porque as demandas
não são concretas. Ainda que existam problemas concretos. O que as pessoas
pedem é reconhecimento.
A primavera árabe
começou com a autoimolação de um vendedor ambulante que não suportava mais o
tratamento das autoridades municipais.
Um protesto pela
dignidade inclui a luta contra a pobreza, mas é algo mais. É a tradução dos
direitos humanos na consciência individual.
Seja na favela, seja
como um profissional ou empresário, os indivíduos não sentem mais que as
instituições os representam.
Em
sua opinião, quais as principais diferenças dos protestos no Brasil em 2013 e
2015?
Em comum têm a
denúncia da corrupção e o sentimento de que há demandas dos cidadãos que não
podem se expressar nos atuais sistemas políticos.
O movimento de 2013
era popular, jovem, e partiu de demandas concretas, mas imediatamente levantou
o tema da dignidade. E teve êxito, pois anulou-se o aumento das tarifas. O
movimento no Brasil causou a reação política mais positiva de um governo no
mundo.
A presidente Dilma
Rousseff se conectou com ele. Mas o aparato do PT bloqueou a possibilidade de
reforma.
Marina Silva deve seu
fugaz êxito na campanha eleitoral justamente por ter se identificado com a
crítica que se fazia nas ruas. Porém, não pôde resistir à ofensiva publicitária
do PT e ao fato de que seu fundamentalismo evangélico não caiu bem entre a classe
média intelectual.
Considero
significativo que duas pessoas que disputaram a Presidência do Brasil –Marina e
Dilma– haviam respondido positivamente ao movimento.
Já em 2015, é a
classe média e média alta quem vai às ruas. E chegou-se a pedir a impugnação da
presidente.
O grupo que pede um
golpe de Estado é pequeno e considero impossível que isso ocorra. Mas o
significativo é que existam cidadãos e políticos que o queiram.
2013 e 2015 se
conectam com as recentes manifestações em outras partes do mundo porque mostram
que a sociedade que quer expressar-se, hoje em dia, se expressa em movimentos
espontâneos, coordenados pela internet, e presentes na rua.
Essa é uma
transformação completa, não digo se é boa ou má, apenas digo que é uma
transformação. As instituições clássicas não são capazes de representar a
diversidade da sociedade. Às vezes é pela esquerda, às vezes pela direita, às
vezes são jovens, às vezes são de idade madura, mas o comum a todos é que não
creem na possibilidade de representação institucional, têm de conectar-se pela
internet e sair às ruas.
E
por que o brasileiro tem a sensação de que, na internet, há demasiada violência
e intolerância no debate?
A internet é um
instrumento de comunicação livre. Portanto, causa curto-circuito às
instituições e ao poder do dinheiro.
A comunicação social
estava monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico.
Agora, a internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por
esses controles, e sem passar por qualquer censura. Ainda que se queira
controlar a internet, não se pode.
Eu não creio que no
Brasil, com a internet, exista mais agressividade no debate. O Brasil sempre
foi agressivo. Nos tempos da ditadura, no final dos anos 60, anos 70, o debate
não só era agressivo como se torturavam pessoas diariamente com impunidade.
A imagem mítica do
brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre
foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se
mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa agressividade sempre
existiu.
A única coisa que a
internet faz é expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se
de um espelho.
Como hoje não
precisam passar pelos meios tradicionais de comunicação, as pessoas aparecem
como realmente são.
A pergunta
fundamental é: a liberdade é um bem em si? Se dizemos que sim, então a internet
é uma tecnologia de liberdade, e portanto realiza uma mudança histórica. Mas é
preciso aceitar que liberdade é também para coisas de que não gostamos. É para
todos. Portanto, se ali se articulam formas de violência, racismo, sexismo, é
porque isso existe na sociedade.
Na internet, um racista
ou um sexista pode facilmente encontrar outros racistas e sexistas que, em seu
entorno social, não podem se declarar abertamente assim. Na rede, não há
constrangimento e se abre a possibilidade de expressão espontânea da sociedade.
E o que ocorre? Nos
damos conta de que a sociedade não é tão boa e angelical como gostaríamos que
fosse.
Vemos que, na
verdade, a sociedade é bastante má. No Brasil e em todos os outros países.
E
de quem depende a mudança social nesse novo contexto?
Certamente, não será
da internet, mas sim dos sujeitos da mudança. Se estes querem um golpe militar,
a internet facilita a organização desses sujeitos.
A internet é
agnóstica, expressa o que somos. E o que somos depende da cultura. Repito, não
creio que o Brasil seja pior agora, ou que a rivalidade política esteja mais
intensa nesse momento do que foi antes.
No Brasil, a
desigualdade diminuiu, mas ainda é muito grande. O ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso dizia que o Brasil não era pobre, mas sim injusto. Concordo.
Há uma imensa riqueza, controlada por 1% da população. Como é que a sociedade
não vai estar com com raiva? E há, também, um grupo de classe média que está
descontente porque se tira deles alguns recursos para redistribuir.
Trata-se de uma
classe média profissional, que teme perder seus privilégios e que vive melhor
que seus pares nos EUA e na Europa. Quem pode ter dois ou três empregados
domésticos permanentes, vivendo em casa, ou constantemente indo e vindo?
Nenhuma classe média do mundo! Pode-se ver famílias com empregados domésticos
em outros países, mas em número pequeno. Empregados domésticos como massa
importante, só no Brasil.
A
descrença no Estado tende a gerar para-Estados ou Estados paralelos, que se
expressam na formação de milícias e de uma justiça civil, como no México, ou
terrorista, no caso do Estado Islâmico?
O México se
transformou de fato num narcoestado. Há uma guerra civil ali, e ressurgem leis
que são ancestrais, portanto reproduzem as formas de opressão que estão na raiz
da violência.
O Estado Islâmico não
é um grupo totalmente desvairado. Representa uma resistência profunda ao
colonialismo cultural nos países muçulmanos e nas comunidades muçulmanas da
Europa. Por que jovens dos EUA e da Europa vão morrer ali? Por que mulheres vão
se casar e ter filhos com militantes do Estado Islâmico?
Essa diversidade
cultural e política é a que existe no planeta. Não podemos criar um standard do
politicamente correto e do humanamente correto, porque isso não existe. Cada
vez que vamos afirmar um direito num sentido, vamos encontrar outras formas de
opressão.
Vivemos atualmente
numa contradição, e a internet exacerba isso. Se respeitamos realmente os
direitos democráticos, devemos aceitar que são os povos os que elegem as formas
democráticas em que querem viver.
Você não pode, com o
pretexto do civilizado ou do não civilizado, impor formas de vida. Isso é
colonialismo cultural e político, cuja reação violenta estamos vendo agora.
Sim, é preciso
defender os direitos da mulher em todo o mundo, mas as mulheres de cada cultura
é que têm de interpretar isso e mostrar como querem ter esse direito
respeitado.
Valores universais
há, mas a interpretação deve ser feita em cada sociedade. A forma de
defendê-los depende de cada cultura.
Está
em risco o Estado de Direito no Brasil?
Do ponto de vista
concreto, ele não existe na maioria dos países. No Brasil, não há Estado de
Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para
seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos
às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação
do Estado de Direito para manter um Estado patrimonial.
Mas ocorre o mesmo
nos EUA. Ali se governa para a classe política e seus interesses. Sem Wall
Street não se pode fazer política. E se Wall Street se afunda, toma-se o
dinheiro dos contribuintes, e se entrega a Wall Street.
O movimento Occupy
não mudou isso, mas fez com que mudasse a consciência dos EUA sobre a
desigualdade social, que o americano médio não sabia que era tão importante.
O Occupy é
responsável por conscientizar os norte-americanos sobre a desigualdade social e
desconstruir a ideia do "sonho americano", de que você pode chegar
aonde quiser se for empreendedor e trabalhar.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1630173-internet-so-evidencia-violencia-social-brasileira-afirma-sociologo-espanhol.shtml
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