A propósito da liberdade universitária, dos equívocos
na relação entre religião e ciência ou a censura a Michel de Foucault na
Pontifícia Universidade de São Paulo, determinada pelo Cardeal Dom Odilo
Scherer. Uma entrevista imaginária com o pensador de A Microfísica do Poder a respeito do caso.
Foucault: a pesquisa como uma viagem, romper o fio do tempo |
Por Ana Westphal
Salvo adaptações mínimas próprias à transposição ficcional, todas
as respostas atribuídas ao filósofo Michel Foucault nessa entrevista foram extraídas de seus ditos e escritos já publicados.
Como o sr. se sente por ter sido barrado pelo cardeal d. Odilo
Scherer, justamente quando a PUC-SP estava a ponto de oficializar uma cátedra
em seu nome?
Fico perplexo. Lembro que estive no Brasil em 1975, quando o
jornalista Vladimir Herzog foi assassinado. O Exército alegou que ele havia se
enforcado em sua cela. Foi o arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns,
que promoveu, na catedral da Sé, uma cerimônia ecumênica em sua memória.
O cardeal presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os
saudou exclamando "shalom, shalom". Em torno da praça havia policiais
armados. A polícia teve que recuar: não pôde fazer nada contra a multidão. A
igreja era o refúgio dos dissidentes e opositores da ditadura. É estranho que
hoje, em plena democracia, as posições tenham se invertido.
Como o senhor interpreta essa virada? Quais são suas relações com
o catolicismo?
Passei meus últimos anos vasculhando documentos na Biblioteca
Saulchoir, dos Dominicanos, em Paris. Para escrever meus últimos livros, me
encantei com Tertuliano, Cassiano, são João Crisóstemo, com o cristianismo
primitivo, as técnicas da confissão, os exercícios espirituais do Concílio de
Trento.
Não por acaso, quando morri, os dominicanos foram os únicos que se
ofereceram a acolher meu arquivo. Graças a eles meus manuscritos ficaram na
França. Tenho dificuldade em entender o que seria uma universidade católica da
qual fosse banida a liberdade de pensamento.
É isso tão essencial?
É preciso libertar-se da sacralização do social como única
instância do real, e deixar de considerar vento essa coisa essencial na vida e
nas relações humanas --o pensamento.
O sr. sabia que seus livros são incompatíveis com os princípios do
catolicismo, como reza decisão do Conselho Superior da Fundação São Paulo,
composto por d. Odilo, bispos e reitora?
Meus livros nunca foram dirigidos contra a Igreja. Apenas põem a
nu mecanismos de poder que atravessam todas as instituições.
É verdade que a Igreja inventou um novo tipo de poder, que chamei
de pastoral: cuidar do rebanho, cuidar de cada alma. Mas sempre insisti que em
qualquer relação de poder nada está decidido de antemão --há contrapoderes, há
revides, há resistência, há reversibilidades.
A própria espiritualidade pode ter sido uma resistência, num
momento determinado, a formas hierárquicas de poder.
Se meus livros foram dirigidos contra alguém, foi contra mim
mesmo. De que valeria pesquisar, se fosse apenas para confirmar o que já
sabíamos? O que me move é a única curiosidade que vale --saber se podemos
pensar diferentemente do que pensávamos antes.
Como numa viagem, a pesquisa nos rejuvenesce, mas também envelhece
a relação que temos conosco mesmo. É aí onde é preciso deixar-se para trás,
reinventar-se.
Que tipo de homens o senhor admira, afinal? Homens engajados ou os
que desaparecem? Em qual categoria o senhor se inclui?
Não são essas as categorias que definem os homens. Admiro os que
introduziram no mundo em que vivemos a única tensão da qual não cabe rir nem
envergonhar-se: aquela que rompe o fio do tempo.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/221361-entrevista-ficcional-com-foucault.shtml
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