Daqui a pouco meses, serão contadas as duas décadas da transvivenciação do professor (UFPE), escritor, jornalista e poeta pernambucano Potiguar Matos. Homem do Agreste do estado, com raízes na sua Pesqueira, da sua pena vieram a lume escritos quase a dizer que essa região era outro país: o clima ameno, o frio do inverno recomendando agasalhos, os modos alimentares, a tradicional sociabildiade das suas gentes, etc. Daí que a sua Pesqueira tenha ficado conhecida como a 'Atenas de Pernambuco', com nomes de escritores e filósofos estampados em placas pelas ruas da cidade - assim como Garanhuns recebeu a denominação de Suíça (com o mesmo podendo ser dito sobre Gravatá). Pois bem, por esta altura do ano, com as festividades juninas em curso na região, o frio despontando e os festivais de inverno chegando, lembra-se de Potiguar com uma das mais emblemáticas de suas crônicas, misto incomum entre, penso eu, agnosticismo e panteísmo. Para falar de uma vida que se foi; e, para os que ficam, para lembrar a importância de não desperdiçá-la com a pequenez - lembrar de bem vivê-la. Talvez Potiguar tenha se inspirado na enigmática Serra do Ororubá. Aí abaixo, a crônica - 'De repente, noturno'.
Inverno sobre a Serra do Ororubá |
Por Potiguar Matos
Afinal, que resta
entre nossas mãos? A terra úmida ou seca, morna ou fria, resta a terra,
escorrendo por entre nossos dedos, pingando no chão, terra que se mistura à
terra, numa espécie de sinfonia eterna, que vem da origem dos tempos e se perde
na noite da consumação das galáxias.
Terra que é você
agora, meu irmão. Leio em Eça palavras inesquecíveis: “Bem-aventurados os que
vão para debaixo do chão, porque vão para uma transformação sagrada”.
O grande mistério se
processa nas sutilezas de uma química imemorial.
A matéria se liberta
de uma geometria limitada para novos voos e configurações, a folha de uma
árvore, o sumo de um fruto, a asa de uma espalmada no céu. Sei muito pouco de
você, meu irmão, nossos caminhos forma diversos, resta-me obsessivamente, na
memória, não o homem feito, as o menino que levei um dia para o fascínio do
mar, o pequeno bicho do agreste solto na amplidão da beleza atlântica, dançando
sua alegria na espuma das ondas.
Um quase nada,
infelizmente, são esses nossos pobres espólios, que a vida vem e vai, rasga
nosso corpo com suas esporas de aço, bate em nossas faces e ri com a agonia dos
nossos sonhos e absolutos. Ergo a mão
para lhe dizer adeus o gesto murcha e se esvanece.
Lembro que você ria
de mim. Sua geografia era só sua, seus caminhos você inventou, suas regras
tirou, quem sabe, de selvagem liberdade dos ventos que sopravam na serra da
terra natal onde você cresceu com algo de vegetal na alma, um pouco de cinzento
que a caatinga sugere, nos seus estremecimentos ásperos, mergulhada na luz
fervente.
Isso tudo era uma
gaiola, você partiu as taliscas e viveu sua aventura, pouco lhe importando
nossos deuses, nossos códigos, a imensa comédia em sua volta. Nesse instante
renasce em seiva, dissolve-se na noite do chão, as partículas de átomos se
recompõem em sínteses diferentes e germinarão um dia numa vida nova, faminta
pelo sol, arrastada pelos ritmos serenos, tempestuosos, transfigurantes,
inéditos, de uma Natureza perpétua na sua inquietação criadora, modelando nas
suas mãos sábias estrelas e pântanos, reis e artistas, santos e pecadores, num
espetáculo que consome os milênios e estremece o infinito e tanto pode ser a
beleza de uma carola como a explosão de uma de um cosmos, na fantasmagoria sem
fim do universo.
A dor selvagem marcou
o teu rosto, apagou tua mente, te deu
morte antes da morte e te levou sorrateira deixando-nos cruel teu corpo
ferido. Como se o braço do semeador te revoltasse as entranhas e te fizesse
canteiro, leira, sulco de enxada, caminho arado, para a sementeira sagrada. O
retorno à terra nutriz, generosa e mineral, boa e insensível, essa terra que me
escorre entre as mãos como teu cabelo, teu sangue, as nossas vidas.
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Fonte: MATOS, Potiguar. Os ventos de agosto. Recife: FASA, 1996, p. 59-60.
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Fonte: MATOS, Potiguar. Os ventos de agosto. Recife: FASA, 1996, p. 59-60.
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