sexta-feira, 19 de junho de 2015

'De repente, noturno'

Daqui a pouco meses, serão contadas as duas décadas da transvivenciação do professor (UFPE), escritor, jornalista e poeta pernambucano Potiguar Matos. Homem do Agreste do estado, com raízes na sua Pesqueira, da sua pena vieram a lume escritos quase a dizer que essa região era outro país: o clima ameno, o frio do inverno recomendando agasalhos, os modos alimentares, a tradicional sociabildiade das suas gentes, etc. Daí que a sua Pesqueira tenha ficado conhecida como a 'Atenas de Pernambuco', com nomes de escritores e filósofos estampados em placas pelas ruas da cidade - assim como Garanhuns recebeu a denominação de Suíça (com o mesmo podendo ser dito sobre Gravatá). Pois bem, por esta altura do ano, com as festividades juninas em curso na região, o frio despontando e os festivais de inverno chegando, lembra-se de Potiguar com uma das mais emblemáticas de suas crônicas, misto incomum entre, penso eu, agnosticismo e panteísmo. Para falar de uma vida que se foi; e, para os que ficam, para lembrar a importância de não desperdiçá-la com a pequenez - lembrar de bem vivê-la. Talvez Potiguar tenha se inspirado na enigmática Serra do Ororubá. Aí abaixo, a crônica - 'De repente, noturno'. 

Inverno sobre a Serra do Ororubá 

Por Potiguar Matos

Afinal, que resta entre nossas mãos? A terra úmida ou seca, morna ou fria, resta a terra, escorrendo por entre nossos dedos, pingando no chão, terra que se mistura à terra, numa espécie de sinfonia eterna, que vem da origem dos tempos e se perde na noite da consumação das galáxias.
Terra que é você agora, meu irmão. Leio em Eça palavras inesquecíveis: “Bem-aventurados os que vão para debaixo do chão, porque vão para uma transformação sagrada”.
O grande mistério se processa nas sutilezas de uma química imemorial.
A matéria se liberta de uma geometria limitada para novos voos e configurações, a folha de uma árvore, o sumo de um fruto, a asa de uma espalmada no céu. Sei muito pouco de você, meu irmão, nossos caminhos forma diversos, resta-me obsessivamente, na memória, não o homem feito, as o menino que levei um dia para o fascínio do mar, o pequeno bicho do agreste solto na amplidão da beleza atlântica, dançando sua alegria na espuma das ondas.
Um quase nada, infelizmente, são esses nossos pobres espólios, que a vida vem e vai, rasga nosso corpo com suas esporas de aço, bate em nossas faces e ri com a agonia dos nossos sonhos  e absolutos. Ergo a mão para lhe dizer adeus o gesto murcha e se esvanece.
Lembro que você ria de mim. Sua geografia era só sua, seus caminhos você inventou, suas regras tirou, quem sabe, de selvagem liberdade dos ventos que sopravam na serra da terra natal onde você cresceu com algo de vegetal na alma, um pouco de cinzento que a caatinga sugere, nos seus estremecimentos ásperos, mergulhada na luz fervente.
Isso tudo era uma gaiola, você partiu as taliscas e viveu sua aventura, pouco lhe importando nossos deuses, nossos códigos, a imensa comédia em sua volta. Nesse instante renasce em seiva, dissolve-se na noite do chão, as partículas de átomos se recompõem em sínteses diferentes e germinarão um dia numa vida nova, faminta pelo sol, arrastada pelos ritmos serenos, tempestuosos, transfigurantes, inéditos, de uma Natureza perpétua na sua inquietação criadora, modelando nas suas mãos sábias estrelas e pântanos, reis e artistas, santos e pecadores, num espetáculo que consome os milênios e estremece o infinito e tanto pode ser a beleza de uma carola como a explosão de uma de um cosmos, na fantasmagoria sem fim do universo.
A dor selvagem marcou o teu rosto, apagou tua mente, te deu  morte antes da morte e te levou sorrateira deixando-nos cruel teu corpo ferido. Como se o braço do semeador te revoltasse as entranhas e te fizesse canteiro, leira, sulco de enxada, caminho arado, para a sementeira sagrada. O retorno à terra nutriz, generosa e mineral, boa e insensível, essa terra que me escorre entre as mãos como teu cabelo, teu sangue, as nossas vidas. 
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Fonte: MATOS, Potiguar. Os ventos de agosto. Recife: FASA, 1996, p. 59-60. 



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