No Campus da Universidade de Iowa, Estados Unidos, o neurologista
português António Damásio gasta boa parte do tempo tentando compreender uma das
áreas mais nebulosas do conhecimento: a consciência humana. É difícil encontrar
um desafio mais instigante para um cientista, diz Damásio. Afinal, o que
poderia ser mais fascinante do que conhecer o modo como conhecemos? Em seus dois livros, O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência
(editados no Brasil pela Companhia das Letras), Damásio descreve como a
consciência abriu caminho para uma verdadeira revolução na natureza, tornando
possível o surgimento da religião, da moral, da organização social e política,
das artes, da ciência e da tecnologia. Ele tenta encontrar as respostas para as
questões mais antigas da filosofia pesquisando o que há de mais novo no
conhecimento do cérebro. Depois da polêmica em torno da clonagem humana, ele
prevê que os debates mais fervorosos da ciência estarão ligados à possibilidade
de manipularmos nossas emoções por meio de uma melhor compreensão da mente.
Qual a origem da consciência humana?
A consciência é fruto da necessidade básica de nos mantermos vivos. É
claro que, na natureza, existe uma série de organismos simples que vivem de uma
forma basicamente automática. Desde que mantenham cuidados básicos, como evitar
perigos e adquirir a energia por meio dos alimentos, a vida desses organismos
pode ser preservada. Os seres humanos são mais complexos: além de precisarem
manter a vida de uma forma simples, eles têm que se adaptar a um ambiente cheio
de dificuldades para obter energia e se expõem a inúmeros perigos e
oportunidades. Nesse ambiente que não é apenas físico, mas também cultural,
precisamos de um sistema complexo de imaginação, criatividade e planejamento. A
consciência surge dessa necessidade.
Existe uma primeira forma de consciência?
Uma forma de consciência inicial aparece quando o homem sente que ele é
um ser em si mesmo. É difícil encontrar uma palavra, em português, para definir
o processo. Chamo essa consciência de self.
É ela que faz que não sejamos um robô, uma máquina manipulável. Podemos guiar a
imaginação e conduzir a criatividade por meio dessa consciência. Para
compreendermos o que é a dor, o sofrimento, e também o prazer das outras
pessoas, precisamos antes ter uma idéia de quem somos. E a consciência self é fundamental para que possamos
respeitar os outros.
Como o estudo da consciência pode melhorar a vida das pessoas?
Grande parte do sofrimento humano é causado por conflitos das pessoas
consigo mesmas. Quando conhecemos mais a natureza biológica do homem, encaramos
esses problemas com outro olhar. Se conhecemos os mecanismos que acionam a
ansiedade, a tristeza e a alegria, podemos entender melhor como cada pessoa é e
evitar certos problemas. Pense nos conflitos religiosos, políticos e de grupos
sociais. É claro que há bases econômicas para eles, mas acredito que a
compreensão das emoções pode ajudar a mudar a maneira pela qual as pessoas
tentam resolver essas disputas. Entender a tendência para a violência, para a
competição ou o funcionamento do medo é fundamental para o autocontrole. Posso
soar otimista, mas acredito que, quando admitirmos que nossa razão é
influenciada por essas emoções, o mundo poderá tornar-se melhor.
A compreensão detalhada da consciência não pode nos tornar mais céticos
ao descobrirmos, por exemplo, que há, no cérebro, uma região responsável pelo
amor ou outra pela fé?
Mesmo que venhamos a compreender a mente com mais profundidade, será
muito difícil desvendar mistérios como a origem do universo ou o que faz com
que nos apaixonemos por outra pessoa. É possível que nunca cheguemos a
desvendar essas questões, talvez nosso cérebro não tenha capacidade para
compreender certos enigmas...
Você acredita que, no futuro, teremos uma droga que possa acabar com as
emoções ruins?
Acho que sim. É uma questão importante, que precisaremos discutir cada
vez mais. Imagine uma superpopulação tomando Prozac diariamente. Esse grupo de
pessoas alteraria um sistema natural e poderia causar diversos problemas; as consequências da
proliferação dessa medicação poderiam levar à ruína de uma sociedade. Tem que
haver mais investigação sobre como essas drogas serão usadas. É claro que as
pessoas deprimidas devem ser tratadas, mas pode ser um erro tomar o medicamento
apenas para inibir a timidez e impulsionar a vida social. A ciência precisa
trazer mais informações para que esses temas não sejam discutidos pela simples
opinião ou intuição de algumas pessoas.
Chegaremos, um dia, a manipular tão bem as áreas do cérebro que
poderemos reproduzir com uma pílula a sensação de voar ou de passear numa
montanha russa?
É bem provável que isso seja possível. E, sem dúvida, para a sociedade
esse será um assunto tão polêmico quanto o da clonagem genética. Vamos ter que
decidir o que deve e não deve ser permitido exatamente como na regulamentação
da indústria do cinema e da televisão. Há um ponto em que tanto a criação
artística quanto a científica precisam ser filtradas pela sociedade. Mas não
podemos deixar que um burocrata decida isso. Quanto mais informações forem
divulgadas no futuro, mais condições a sociedade terá para tomar suas decisões.
Que outro tipo de realidade virtual poderá ser criada, no futuro,
manipulando o cérebro?
Prefiro não especular, tudo ainda não passa de teoria.
O estudo da consciência humana é um campo da ciência à espera de um novo
Newton?
O problema da consciência é um tema complexo, que tem sido mal abordado.
É evidente que é necessário avançar muito mais. Acho que meu livro O Mistério da Consciência traz alguns
avanços importantes sobre o assunto, mas não devemos ter a ingenuidade de
acreditar que tudo está resolvido. Há imensos problemas à espera de mais
investigação e trabalho. Nos próximos dez ou 20 anos, talvez seja possível
resolver boa parte deles.
Como escrever sobre assuntos tão complexos para o público leigo?
Os temas sobre os quais escrevo são importantes demais para ficarem
restritos aos cientistas. Escrever sobre o pâncreas ou o fígado pode ser
atraente apenas para os médicos, mas o público tem interesse quando falamos da
mente, do pensamento, da emoção e do sentimento. É fantástico o retorno que
tenho recebido dos leitores dos meus livros em todo o mundo. Interessados em
arte, literatura e cinema dizem que essa pesquisa os ajuda a compreender melhor
o que fazem nas suas próprias áreas.
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Fonte: http://super.abril.com.br/
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