Sempre causou-me "estranheza" alguns discursos que, por dizerem "respeitar" os saberes populares, terminam por fazer a louvação da ignorância. E pararem pelo senso comum. Uma coisa não tem a ver com a outra. Em geral, desprezam o estudo, a reflexão teórica, em nome de uma prática que não sabemos o que significa. É a 'prática pela prática', isto é, o praticismo, torto, geralmente levando a situações desastrosas. Mas não se admire com a reação que esses apologistas da ignorância podem ter, se forem contestados: lançam mão de alguma frase de efeito de Paulo Freire, como 'santo remédio'. E então reina o oba oba e o populismo. Torpedeiam a universidade como instituição comprometida com a episteme, e se calhar seriam até capazes de atear fogo nas bibliotecas - o que, de resto, dar-lhes-ia jeito para disfarçar a preguiça em relação à leitura. É de não se entender por qual razão, com tanta aversão à instituição universitária, continuem dentro dela. Ora bem, pois tome-se nota do seguinte: a corrosão do partido que governa o Brasil e do seu ideário é resultado também dessa visão míope. O popular que piscou ao populismo, desprezou o debate e a formação política, tornando-se prisioneiro do senso comum que instaurou no país uma agenda retrograda comandada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, onde até a diversidade da convivência amorosa - com novas formas de coabitação - é posta em questão, em função de um modelo único de família tradicional. Com a argúcia que lhe é peculiar, Chico Alencar, ator político, mas, antes de tudo, historiador, produziu um texto paradigmático a respeito dessa conjuntura que hoje o Brasil vive, sugestivamente intitulado o 'império do senso comum', a seguir reproduzido. Os apologistas da ignorância fariam bem se tirassem as devidas lições de um texto dessa natureza.
Por Chico Alencar
O senso comum, nesta encruzilhada de nossa
história, foi erigido como medida inquestionável de uma série de decisões que
afetam a vida nacional. Na Câmara dos Deputados, a onda conservadora afoga
todos na superficialidade da percepção dos fenômenos sociais.
Assim, a violência estrutural e a sensação de
insegurança passam a ter como solução o encarceramento de jovens em regime
prisional para adultos --de onde advêm 70% de reincidência criminal-- e a
flexibilização do Estatuto do Desarmamento, na perigosa linha do "cada
cidadão uma arma".
A perspectiva do desemprego é
"enfrentada" com a precarização geral do trabalho e quase irrestrita
das terceirizações. A necessidade da produção de alimentos e commodities pelo
agronegócio ameaça ainda mais os direitos dos povos nativos, desconhecendo-se
que cada km² de terra indígena emite 25% menos CO2 que outras terras
agricultáveis na própria Amazônia.
À saudável diversidade da convivência amorosa --com
novas formas de coabitação solidária-- é oposto o modelo único da família
tradicional, como se fora dela não existisse salvação.
Aos escândalos que se sucedem, a serem enfrentados
com investigação rigorosa e transparência, é preceituado o remédio do moralismo
individualista, como se tudo fosse uma questão de transferir virtudes privadas
--véu de hipocrisia?-- para o âmbito da instância pública.
Também no plano da política institucional o método
arcaico impera: no lugar de uma reforma política, implementam-se medidas
tópicas contra a política. O povo a repudia? Pois reduzamos suas oportunidades
de debate e escolha, com pleitos apenas quinquenais, para todos os cargos da
República.
A corrupção atinge a todas as grandes siglas,
revelando a perda total de fronteiras entre o público e o privado?
Constitucionalize-se a doação de empresas para os partidos, e só a partir deles
para as campanhas, como se isso as tornasse mais limpas e austeras.
A ideia de partido está degradada? Então que se
garanta na lei o triunfo do indivíduo, da personalidade ungida pelo voto, como
defendida pelos proponentes do distritão, sistema que elege para a função
pública só os mais votados.
Há pequenos partidos, alguns "de
aluguel", que se vendem? Que se imponham cláusulas para impedir seu
direito de crescer, preservando os grandes que tantas vezes os compram e, não
raro, são acometidos de nanismo moral.
As pseudossoluções galopantes da pequena política,
os arreganhos triunfantes de uma maioria reacionária são expressões típicas da
crise do nosso modelo de modernização conservadora, do nosso aparato político reativo
à democratização de base, direta e participativa, do esgotamento do arsenal de
conciliações entre contrários que estão, cada vez mais, assemelhados.
Antonio Gramsci (1891-1937), em seus "Cadernos
do Cárcere", denominou "interregno" esse tempo de incertezas que
anuncia, entre sombras, um fim de ciclo. Trata-se do intervalo histórico em que
o velho ainda não desapareceu totalmente e o novo ainda não se firmou.
A sofreguidão regressista, com mais espaço nesses
tempos sem hegemonia clara, tenta cristalizar suas posições. Esses períodos
trevosos, diz Gramsci, são propícios ao aparecimento de "sintomas
mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas".
Nossa cena política contemporânea oferece vários
personagens com essas características nefastas.
A história é um contínuo de transformações. O
desafio da hora presente, frente ao império do senso comum e seus monarcas do
atraso, é dar um novo significado ao bom senso republicano da igualdade, da
democracia e da ética social.
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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/221161-o-imperio-do-senso-comum.shtml
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