Por Patrícia Smaniotto
Ele entrou pela porta da frente ao mesmo tempo em
que corri para a janela e me lancei contra a vidraça. Enquanto flutuava
lentamente no ar, junto com estilhaços de vidro e as gotas de sangue, eu podia
ver o sol alaranjando o horizonte em mais um fim de dia enviado pelo Universo.
Finalmente, meu corpo se chocou contra o topo do plátano avermelhado, uma perna
esticando-se toda diante do meu ventre, o joelho colado na testa, a outra perna
solta como boneca de pano nos galhos que me flechavam as carnes. Meu olhar
paralisado perfurava o chumbo do céu que me cobria e riscava fogos de artifício
no breu que se aproximava.
Balancei o lado esquerdo do quadril duas, três,
quatro vezes, até que meu corpo se desprendeu e caiu no fundo da água abaixo de
mim. Flutuava agora em elemento aquoso, morta como Ofélia. Fui sendo levada até
a beirada e ali o que restava das minhas roupas rasgadas se dissolveram.
Ergui-me, então, nua e deslizei para a terra firme. Caminhei assim em meio aos
vaga-lumes e os trancei nos cabelos e embebi com sua luz minhas feridas. Foi
minha primeira morte. A próxima, a definitiva, não seria tão lúcida quanto a
primeira.
***
Ninguém soube da minha segunda morte. Ficou perdida
entre as pedras e os fósseis. Os cata-ventos sussurravam brincadeiras em meus
ouvidos e retalhos de estrelas mergulhavam no fundo dos meus olhos que nada
viam. Minhas pernas tinham se tornado feixes de trigo e os tornados acima de
mim nasciam das minhas mãos de gelo. Os soldados marchavam sobre minha ausência
e toda espera era eterna. Era sempre tempo de guerra e a morte ria um riso
pesado como o peso de mil solidões.
Neste leito de chumbo, eu não tinha mais as
tranças, mas elas insistiam em derramar-se em torno de mim como se eu ainda
fosse uma menina ou uma princesa. Na minha janela subterrânea, não havia
vidraças, tampouco paisagens, menos ainda a promessa de um príncipe encantado a
me esperar no altar. Dobrei-me em duas, como se já fosse o passado enterrado de
mim mesma, suspirei e esqueci totalmente quem eu era. Para todo o sempre.
***
Porém, em meio às minhas duas mortes, a memória do
tempo se apresentou:
“Há cinco dias, Plutão ganhou sua quinta lua.
Há doze, encontraram o Bóson de Higgs.
Há exatos 67 anos, a primeira bomba nuclear,
Trinity, foi lançada no México. Logo depois foi a vez de Little Boy em
Hiroshima e de Fat Man em Nagasaki.”
Fiquei à espera do brilho magnífico de 60 luas
cheias que emite a Nebulosa da Tarântula, mas ele não veio. O que veio foi o
sopro.
***
Eu gosto do sopro. Somos um sopro. A vida é um
sopro. A morte é um sopro. E no sopro há sempre movimento, nenhum tédio ou
terror debaixo do pó. Apenas movimento. Volutas. Redemoinhos. Mares a varrer.
Frio e calor se revezando em canais aéreos. Incenso. O trago de um xamã. Até
chegar ao espaço, onde tudo é silêncio e vislumbro transformados em milhões de
partículas, as luzes boreais e os buracos negros. Descubro que não vamos ao pó,
mas ao fim do tempo, essa unidade ilusória que nos priva de todos os mistérios.
***
No fim, as vozes das estrelas cantaram para
espantar toda solidão.
Ali, no Infinito, onde a morte não pode mais rir
seu riso de chumbo.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/kaleidoscope/2014/01/o-peso-de-mil-solidoes.html
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