Texto de António Lobo Antunes, no seu peculiar estilo de retratar literariamente o que a vida abriga.
Por António Lobo Antunes
O marido não falava: lia o jornal. Quando não lia o jornal olhava a
parede em frente. Aos domingos, a seguir ao almoço, ia ao quarto pôr a gravata
e ficava à espera, junto à porta, sem uma palavra, que ela mudasse de roupa,
desse um jeito ao cabelo, e viesse ter com ele. Então desciam do segundo andar
a pé, porque o elevador não era de confiança, e saíam para o cinema. O marido
mostrava dois dedos à empregada que vendia os bilhetes, explicando-lhe que duas
pessoas, e apontava o cartaz do filme mais perto. No intervalo permaneciam
sentados, diante do écran vazio, sem conversarem, da mesma forma que não
conversavam no regresso a casa. Em casa a mulher mudava de novo de roupa para
fazer o jantar. Ao acabar estava escuro na sala, nenhum candeeiro aceso e, no meio
do escuro, o marido sentado no sofá em silêncio, com a mesa já posta, o que
surpreendia a mulher dado que não se ouvia nenhum ruído de loiça. A mulher
ligava as três lâmpadas do tecto e trazia a sopa. Depois da sopa o borrego.
Depois do borrego o arroz doce. Depois do arroz doce o digestivo. Depois do
digestivo arrumava tudo na máquina e instalava-se no sofá também, com o
crochet. Se uma ambulância aos gritos na rua o prédio estremecia. Se nenhuma
ambulância na rua as vozes do andar de cima e de vez em quando uma criança a
chorar, de vez em quando uma discussão até que uma voz de homem
- Acabou-se a conversa
e com o
- Acabou-se a conversa
paz de novo. Em certas alturas a mulher quase
desejava que o marido
- Acabou-se a conversa
também, mas era difícil acabar uma conversa que não tinha começado.
Passada meia hora ou assim o marido ia deitar-se, e a mulher ficava a ouvir a
escova de dentes eléctrica, conforme ouvia o estalo das tábuas da cama
protestando contra o peso do marido. Era uma cama antiga, de bilros, a mesma da
época em que casaram, trinta e seis anos antes. Toda a mobília, aliás, existia
desde há trinta e seis anos antes, oferecida pelos pais dele, que não seriam
ricos mas tinham algumas posses. Mais recente, que a mulher se lembrasse, só o
tapete da sala que de resto principiava a gastar-se, sobretudo nos sítios onde
os pés da mesa de apoio se afundavam nele, e nos quais já se percebia a trama.
Por vontade sua a mulher mudaria o tapete, chegou a sugerir
- Era capaz de ser melhor mudarmos o tapete
porém, como não houve resposta, não teimou. Pensou em mudar o tapete sem
o informar, visitou várias lojas estudando preços, perguntou-se
- Para quê?
e desistiu. Para quê, de facto? E demais a mais a gente vai-se
habituando aos objectos e acaba por ter saudades deles quando desaparecem.
Teria saudades do marido se ele desaparecesse? Julgou que sim, julgou que não,
julgou que sim, cessou de julgar. Em trinta e seis anos o marido não
desaparecera nunca e, portanto, seria pouco natural que desaparecesse agora,
perto dos setenta. Para mais afigurava-se-lhe que de há semanas para cá ele
começara a arrastar um pouco umas das pernas e de perna arrastada ninguém vai
muito longe. Para onde iria ele, de resto? Não possuía amigos, não frequentava
cafés, não recebiam nem visitavam fosse quem fosse, nunca reparara num soslaio
interessado para senhora nenhuma: lia o jornal, olhava a parede e acabou-se. Há
quantos lustros não lhe tocava? Ao calcular há quantos lustros não lhe tocava
chegou-lhe do andar de cima um
- Acabou-se a conversa
que a sobressaltou o bastante para deixar os cálculos de lado. Há
assuntos em que é melhor deixar as questões como estão, e a mulher era uma
criatura prudente. Aos sessenta e cinco anos vai-se ganhando bom senso, para quê
arranjar maçadas agora? De modo que acabou por ir para a cama também,
guiando-se pela claridade dos intervalos dos estores. Ao deitar-se nenhuma
tábua estalou, o marido dormia numa respiração lenta, quando se preparava para
se voltar para um dos lados percebeu-lhe um murmúrio
- Sissi
e ficou a repetir para dentro
- Sissi, Sissi
por acaso o nome da empregada que vinha uma tarde por semana ajudar nas
limpezas, uma criatura baixa e gorda, viúva, com o filho preso por uma questão
de drogas ou um problema no género. A criatura baixa e gorda não era de grandes
expansões e o marido, estava certa disso, nem atentava nela. Nem atentava nela?
Se nem atentava nela porque carga de água o
- Sissi
num soprozinho que classificou de enternecido? Decidiu sacudir-lhe o ombro
- Que história é essa da Sissi?
meditou com mais calma, não se atreveu, porém o facto é que não
conseguia livrar-se daquele nome. Foi à cozinha beber água para acalmar os
nervos, descalça, sujeitando-se a uma constipação ou uma gripe, o azulejos
gelados, ela sensível do nariz, o médico, na última consulta
- Atenção aos pulmões que já não vai para nova
e a hipótese de uma pneumonia aterrou-a. Na bancada estavam algumas
facturas por pagar e no meio das facturas uma página solta do bloco onde
assentava as coisas a comprar no centro comercial, em que encontrou escrito
- Até para a semana meu ursinho rechonchudo, Sissi
e ficou séculos a reler aquilo, aparvalhada, Meu ursinho rechonchudo,
Sissi, meu ursinho rechonchudo, Sissi, até que principiou a sentir-se cansada,
estrangulou um bocejo e decidiu voltar para a cama. Ao fim de trinta e seis
anos não era fácil substituir o marido mas podia muito bem substituir o tapete
da sala. E, com um tapete novo na ideia, adormeceu quase contente.
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Fonte: http://visao.sapo.pt/
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