Vai aí mais uma instigante entrevista do consagrado neurocientista António Damásio, da University of Southern Califórnia, em Los Angeles/EUA. Faz um balanço da sua investigação, com correções em parte de suas perspectivas, e foca na discussão sobre a especificidade das relações entre cérebro, emoções e sentimentos, sem deixar de ter em conta os condicionamentos sociais. Qual o modo adequado de decidirmos algo? Como pensamos melhor? Seguindo o embalo da permanente movimentação? Calma, recomenda Damásio, pois a euforia e, depreende-se, o afobamento embaralham o pensamento. Segue a entrevista.
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António Damásio: busca de equilíbrio para o raciocínio |
Na
introdução de seu último livro, O
Cérebro criou o Homem,
o senhor diz que acabou se desapontando com algumas de suas abordagens ao longo
do tempo e decidiu começar seu trabalho de novo. Quais foram as descobertas que
o levaram a repensar sua pesquisa? Ao longo desses anos todos, o estudo
sobre a estrutura do cérebro avançou muito e ajudou a entender melhor certas
operações, como a memória e a consciência. Além disso, por meio das minhas
pesquisas pude perceber a importância das emoções e dos sentimentos na
construção do nosso raciocínio. Para ter o que chamamos de consciência básica é
preciso ter sentimentos. Isto é, é preciso que o cérebro seja capaz de
representar aquilo que se passa no corpo e fora dele de uma forma muito
detalhada. É daí que nasce a rocha sobre a qual a mente forma sua base e se
edifica.
O
que é a mente? Ela é uma sucessão de representações
criadas através de sistemas visuais, auditivos, táteis e, muito frequentemente,
das informações fornecidas pelo próprio corpo sobre o que está acontecendo com
ele - quais músculos estão se contraindo, em que ritmo o coração está batendo e
assim por diante. Em resumo: a mente é um filme sobre o que se passa no corpo e
no mundo a sua volta.
Qual
a diferença entre emoção e sentimento? A emoção é um conjunto de todas as
respostas motoras que o cérebro faz aparecer no corpo em resposta a algum
evento. É um programa de movimentos como a aceleração ou desaceleração do
batimento do coração, tensão ou relaxamento dos músculos e assim por diante.
Existe um programa para o medo, um para a raiva, outro para a compaixão etc. Já
o sentimento é a forma como a mente vai interpretar todo esse conjunto de
movimentos. Ele é a experiência mental daquilo tudo. Alguns sentimentos não têm
a ver com a emoção, mas sempre têm a ver os movimentos do corpo. Por exemplo,
quando você sente fome, isso é uma interpretação da mente de que o nível de
glicose no sangue está baixando e você precisa se alimentar.
O
senhor diz que as emoções desempenham um papel muito importante no
desenvolvimento do raciocínio e na tomada de decisões. Que papel é esse? Há certas decisões que são
evidentemente feitas pela própria emoção. Quando há uma situação de medo, ele
aconselha um entre dois tipos de decisão: correr para longe do perigo ou
permanecer quieto para não ser notado. Há também decisões muito mais complexas,
como, por exemplo, aceitar ou não um convite para jantar. Nesse caso, a emoção
tem um papel de primeiro conselheiro, um primeiro indicador do que se deve
fazer. Você pode querer ir, mas ao mesmo tempo há qualquer coisa no
comportamento da pessoa que o faz desconfiar de que ela pode não ser sincera. E
o que é isto? É uma reação emotiva, a emoção participando da sua decisão.
Então
é a emoção que nos fornece o que chamamos popularmente de instinto ou sexto
sentido?Instinto
é uma palavra que deve ser reservada para certas coisas muito fundamentais,
como o instinto sexual ou de alimentação. Eu diria que a emoção fornece
incentivos. As emoções, quer as positivas quer as negativas, podem ter uma
enorme influência naquilo que nós pensamos. Mesmo as pessoas que se dizem muito
racionais não podem separar as duas coisas. Por exemplo: imaginemos que um
chefe esteja entrevistando uma pessoa para uma vaga. O currículo da pessoa é
ótimo e as referências também, mas algo diz que ela não vai dar certo na
empresa. Esse 'algo me diz' é a emoção falando. Algo no comportamento dessa
pessoa evoca uma emoção negativa que leva o chefe a ficar com um pé atrás.
O
que pode causar essa desconfiança? O ser humano avalia uma outra pessoa
principalmente pela voz e pela expressão facial dela. Assim, a forma como a
pessoa olha para você pode parecer insolente; ou um jeito de mexer a boca faz
parecer que ela não é sincera.
Se
toda a nossa percepção do mundo é afetada pela emoção, como podemos confiar nos
nossos julgamentos? As emoções foram extremamente bem
sucedidas, ao longo da evolução, em nos manter vivos. O medo fez com que nos
expuséssemos menos ao perigo e tivéssemos mais chance de sobreviver. A alegria
nos deu incentivo para fazer o que precisamos para prosperar: exercitar a
mente, inventar soluções para problemas, comer, nos reproduzir. Emoções como a
compaixão, a culpa e a vergonha são importantes porque orientam nosso
comportamento moral. Se você fizer qualquer coisa que não está correta em
relação a outra pessoa, vai se sentir envergonhado e terá um sentimento de
culpa. Isso é muito importante porque vai ajudar a manter a sua conduta de
acordo com a convivência em sociedade. Uma coisa que falta aos psicopatas é
exatamente esse sentimento de culpa, de vergonha. Os sentimentos são, portanto,
fundamentais para organizar a sociedade e foram fundamentais para a formação
dos sistemas moral e judicial. Mas as emoções por si só têm limites. Para
vivermos em sociedade no século XXI, precisamos muitas vezes ser capazes de
criticar as nossas próprias emoções e dizer não a elas. E a única maneira de
ultrapassar as emoções é o conhecimento: saber analisar as situações com grande
pormenor, ser capaz de raciocinar sobre elas e decidir quando uma emoção não é
vantajosa. Há um nível básico em que as emoções ajudam, e se você não tem esse
nível você é um psicopata. Mas há um nível mais elevado em que as emoções têm
de ser não as conselheiras, mas as aconselhadas.
As
emoções são condicionadas pela vivência em sociedade? As emoções são em grande parte inatas,
mas nos primeiros anos de vida são condicionadas e sintonizadas com a
sociedade. Alguns mamíferos têm emoções mais elevadas, como a compaixão,
especialmente na relação entre mães e filhos. As mães de cães e lobos tratam
seus filhotes com um carinho que é emocional e é totalmente inato, ninguém as
ensinou. Há elefantes que quando perdem um companheiro ficam não só tristes
como deixam de brincar e são capazes até de fazer uma espécie de luto. Claro
que nada disso foi ensinado, é tudo inato. O que acontece com os seres humanos
é que esses programas inatos têm sido, através de milhares de anos, refinados e
melhorados por aspectos sócio-culturais. Hoje em dia, evidentemente, nossa
estrutura moral não é inata. Ela tem sido condicionada pela história da nossa
sociedade com elementos que têm a ver com a religião, a justiça e a economia,
estruturas que são resultado da vida humana em sociedades complexas.
Se
as emoções podem moldar o raciocínio, o oposto pode acontecer? Isto é, o
raciocínio pode alterar nossas emoções? Claro, e é aí que está a grande beleza
e a grande complicação dos seres humanos. É aí que você vai encontrar todos os
grandes dramas da história, aquilo que Sófocles ou Shakespeare captaram em suas
peças. Os grandes dramas de reis e rainhas, príncipes e plebeus, é o constante
conflito entre aquilo que são os conselhos da emoção e do instinto, por um
lado, e a influência que vem do raciocínio, do conhecimento e da reflexão. Essa
é a grande base da tragédia grega ou shakespeariana. Nós, na medida em que as sociedades
evoluem, estamos caminhando para uma maior harmonia entre o lado emocional e
instintivo e o lado racional e de reflexão. Essa harmonia ainda não se
estabeleceu e não vai acontecer nem na minha geração nem na sua. É um trabalho
por se concluir. Mas um dia, a convivência em sociedade, que exige que se ponha
razão e emoção na balança o tempo inteiro, vai conseguir equilibrar os dois
lados.
E
como ocorre esse condicionamento das emoções? É nos primeiros anos de vida que
podemos inculcar valores e formas de raciocínio através da repetição de
exemplos. Eles são o alicerce da construção da nossa moral. Do ponto de vista
do cérebro isso é muito curioso porque é quase uma negociação entre suas
partes. Há partes muito antigas em termos de evolução, como o tronco cerebral,
e muito mais recentes, como o córtex cerebral. No córtex cerebral estão as
grandes representações que constroem a mente: visão, audição, tato. Todas essas
representações se constroem ali, e da ligação entre elas se dá o raciocínio.
Mas o córtex cerebral precisa negociar com regiões do cérebro que estão no
tronco cerebral e são as responsáveis pelos impulsos e as reações rápidas. É
dessa negociação que surge o conceito de que algo é permitido ou não. Você
repete, repete, repete até que as duas partes entrem em consenso.
É
possível recondicionar os sentimentos já na vida adulta? É possível, porém é muito mais difícil
e nem sempre é um trabalho bem sucedido. Se você tem uma pessoa que começou a
vida como um sociopata, é extraordinariamente difícil tornar essa pessoa um ser
normal em relação a comportamento social. Isto porque seria necessário fazer
todo o processo que se faz numa criança, mas o paciente já tem autonomia para
não aceitá-lo.
Como
raciocinamos melhor? Felizes ou tristes? A felicidade está ligada a certas
moléculas químicas e a tristeza a outras. Quando estamos felizes as imagens se
sucedem com mais rapidez e se associam mais facilmente. Na tristeza as imagens
passam muito mais devagar e ficam como que impressas ali por um tempo. O ponto
ideal para a efetividade do raciocínio é a felicidade com uma ponta de tristeza
- porque na euforia, o pensamento se embaralha.
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Fonte: http://www.fronteiras.com/