A educação é uma das áreas onde mais a palavra crítica é utilizada. Ao mesmo tempo, também é a área onde mais existe mistificação em torno da mesma. Compreensão enviesada, e mesmo empulhamento. Uma prova disso é a apologia em volta de determinados autores. Tratados como semideuses. Em mais um texto instigante, aí abaixo, Vladimir Safatle desenvolve uma espécie de dialética da crítica.
Por Vladimir Safatle
(Departamento de Filosofia - USP)
Há uma conhecida história
que teria envolvido Angela Davis e Theodor Adorno nos anos 1960. Em um dos
seminários do frankfurtiano, a ativista e filósofa norte-americana teria
iniciado uma discussão ao insistir na necessidade dos intelectuais
"assumirem a perspectiva dos oprimidos", agindo principalmente a fim
de garantir espaço para que oprimidos pudessem falar, reconhecendo a
especificidade de seu lugar de fala.
Angela
Davis insistia, com razão, na necessidade urgente de quebrar práticas de
exclusão de grupos, até então, sem visibilidade. Assumir a perspectiva dos
oprimidos não era falar em seus nomes, mas principalmente lutar para que suas
vozes portadoras de sofrimento fossem ouvidas. No que Adorno teria dito, de
maneira inesperada, que a verdadeira crítica devia mirar ainda mais fundo e se
engajar, na verdade, em dissolver a pretensa evidência da noção mesma de
perspectiva, assim como a estabilidade da ideia de "lugar".
Ou
seja, tratava-se de afirmar que a própria noção de perspectiva e de lugar já
era uma forma, talvez a mais violenta, de opressão.
Esta
resposta tinha um alvo muito claro. Ela procurava insistir que não haverá
transformação real enquanto aceitarmos os pressupostos e as formas de
pensamento decididas de antemão como evidências incontestáveis.
Neste
sentido, era o caso de lembrar como parecia cada vez mais natural aceitar que
"só há perspectivas", que "cada um tem seu lugar", que
"não se pode saltar sobre si mesmo e escapar da relatividade de sua
própria posição".
Pretensas
evidências desta natureza são, na verdade, o esteio de nossas sociedades
neoliberais. Sociedades que procuram nos acomodar à ideia de que só há
indivíduos envoltos em suas perspectivas, lugares, posições e nada mais.
Afirmar que o problema é a falta de uma perspectiva silenciada pela opressão é
fazer desta gramática dos indivíduos a condição para toda política. É reiterar
a mesma gramática que já organiza nossos conflitos sociais, evitando assim se
perguntar se o maior de todos os problemas não estaria exatamente na imposição
de uma gramática da enunciação que nunca muda, que só se aprofunda.
Neste
sentido, de nada adiantaria passar da noção de indivíduo à noção de grupo ou
mesmo de classe. Quem diz grupo ou classe diz, neste contexto, organização
coletiva a partir de princípios substancialmente partilhados de identidade.
Assim é quando nacionalidades, religião, etnia, gênero, entre tantos outros,
funcionam como elemento substancial de identificação. No entanto, há de se
insistir que não é a atomização social em indivíduos o verdadeiro problema de
nossa vida social, mas a compreensão de toda coletividade como uma
"identidade coletiva" dotada, entre outros, de uma perspectiva à qual
suas unidades devem se adequar.
Afirmar
que a função maior do pensamento crítico é dissolver a noção mesma de
perspectiva, como um dia disse Adorno, significa assumir que a verdadeira
crítica é uma fala sem lugar e sem posição, ou ainda, uma fala que destrói seu
próprio lugar e sua própria posição.
Aqueles
que ainda não tiveram voz continuarão sem voz se acreditarem que precisam
defender o "seu" lugar, este lugar que é sua propriedade, esta
perspectiva que lhe é "própria". Acreditar que falamos algo novo, que
abrimos um espaço crítico quando organizamos nossa fala a partir de ideias de
propriedade, de próprio, de identidade é simplesmente reiterar o que já está
dado, é criar nada. Abolir a propriedade é algo mais complicado do que
inicialmente parece.
Isto
pode soar aberrante para alguns ou, ainda, pode parecer apenas uma maneira mais
poética de assumir "ideias arcaicas" como a noção
"totalitária" de consciência universal e totalizante.
Eu
diria que uma das mais astutas criações do neoliberalismo é nos fazer crer que
sair do espaço dos indivíduos e suas perspectivas proprietárias, é deixar-se
seduzir por cantos de sereias filosóficas totalitárias. Pois trata-se de nos
impedir de perguntar se a crítica não opera através de algo como "uma voz
de ninguém", como disse uma vez Lacan.
Voz
que todos podem assumir mesmo que ninguém possa se apropriar, pois voz que me
despossui de meus predicados e atributos quando falo. Voz que produz uma
implicação genérica e que abre a possibilidade de uma noção de comum que não é
a partilha de uma substância, mas a crença na força de criação de uma
despossessão generalizada.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 01/01/2016. Título original: 'Sem Perspectivas'.
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