Dizia Nietzsche que, em geral, "quem vê mal, vê menos do que aquilo que há para ver; e quem ouve mal, ouve algo mais do que aquilo que há para ouvir". Daí poder-se-ia inferir muita coisa, como, no primeiro caso, enxergar o que não há e deixar de ver o que há. A hermenêutica poderia ser multiplicada. O fato é que, por essas vias, a convivência vai tropeçando. E disso que, com cariz literário, trata o texto a seguir.
Golconda, de René Magritte |
Por André J. Gomes
Seis da tarde. Na Hora do Ângelus, o trânsito no bairro nobre é um inferno. Pais e mães
entopem as ruas, estacionados em filas duplas, à espera de seus filhos nas
portas de escola. Executivos aceleram carrões rumo ao bar vaidoso para a happy
hour onde encontrarão outros executivos que ali também chegaram sozinhos,
pilotando cada um a sua máquina. Manadas de ônibus coletivos levando e trazendo
trabalhadores cansados, vendedores de doces, desempregados famintos, estudantes
otimistas e almas entregues avançam nervosos sobre os motoqueiros que costuram
o espaço entre os carros. O sol se foi mas o asfalto queima, os nervos fervem.
À certa altura, um motorista apressado “rouba” a frente
do carro que anda na faixa ao lado e o cidadão ultrapassado aperta a buzina,
dirigindo a seu oponente um gesto súbito.
“O que foi isso?”, pergunta a si mesmo o sujeito do carro
que tomou a frente. “Reclamando do quê, tartaruga? Quem mandou ir tão devagar?
Avanço mesmo!”
Pelo espelho retrovisor, ele observa seu colega de trás
que agita os braços, aponta-lhe o dedo, xinga-lhe do que ele não pode ouvir.
“Que se dane! Que berre à vontade!”, diz consigo antes de ignorar o condutor
ofendido e retomar o caminho no “anda e para” do tráfego intenso.
Mas o retardatário não desiste. Colado à sua traseira,
tenta sem sucesso trocar de faixa e emparelhar seu veiculo ao dele. Acende-lhe
o farol alto, buzina, mexe os braços como quem precisa desabafar o inadiável
àquele que lhe tomou a frente.
“Esse cara quer briga. Não é possível! Que absurdo! Foi
só uma fechada à toa!”
O trânsito de súbito alivia, os carros ganham velocidade
e o homem com pressa prepara sua fuga. “Quero ver me pegar, ó roda presa! Tem
pra ninguém aqui, não. Motor dois ponto zero, quatro cilindros! Vai comer
poeira, companheiro!”
Disparando na frente, ele ensaia uma gargalhada e engasga
de susto ao notar o extraordinário: o veículo em seu retrovisor o acompanha sem
medo. Continua ali, em sua cola, gesticulando incansável. Ele se sente acossado
e nervoso. Nunca funcionou bem sob pressão. Odeia se sentir oprimido. Desde
pequeno, espanava feito parafuso à menor imposição.
“Tá olhando o quê, cretino? O quê? Como é? Não faz gesto
feio pra mim, não! Vai pro inferno, seu trouxa!”
Ele afunda o pé no acelerador enquanto fala alto consigo
mesmo, esbravejando contra seu antagonista desconhecido do carro de trás. “Não
vou pedir desculpas, não! Mas não vou mesmo! Esse cara precisa é de uma terapia
urgente! Bicho burro!”
Em poucos segundos, ele realiza a cena inteira. “Esse
animal vai descer do carro e avançar contra mim. Que venha! Dou-lhe um murro na
cara e esfrego a cabeça dele no asfalto. Pode vir!”
Um motoqueiro passa a meio milímetro de seu para-choque,
uma ambulância costura entre os carros e a perseguição continua. O farol, a
buzina, os gestos. Tudo! “Esse cara quer briga! É briga? ENTÃO É ISSO QUE ELE
VAI TER!”
De repente, uma chance. O farol se fecha num grande
cruzamento e o motorista de trás consegue emparelhar seu carro com o dele.
Acossado, ele solta o cinto de segurança, pronto para voar na garganta de seu
rival. O perseguidor misterioso não sai do carro. Só desce o vidro e grita o
impensável:
— A sua porta. A sua porta está aberta.
Silêncio. O homem perseguido, pronto para matar ou morrer
respira fundo, mirando seu interlocutor do carro ao lado. Sua raiva, seu ímpeto
de morte, suas mãos suando e seu medo foram à toa. Não haveria briga, embate,
cara no asfalto. O motorista ao lado só queria lhe fazer uma gentileza. A porta
de seu carrão estava aberta e alguém tentava avisá-lo. Que decepção. Tudo isso
para nada! O lesma-humana o perseguiu, provocou-lhe a imaginação, despertou seu
instinto de fuga ou luta só para isso? Para avisar que a porta estava aberta e
depois ficar ali, com cara de pedinte, esperando um “obrigado” e um toque na
buzina? Muito bem. É preciso retribuir o gesto. A porta está aberta e alguém
acaba de avisá-lo. Então ele respira fundo e dispara:
— FOI A SUA MÃE QUEM DEIXOU ASSIM!
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Fonte: http://www.revistabula.com/
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