Como já disse aqui, repetidas vezes, Jessé de Souza é uma espécie de boa novidade na ciência social brasileira nos últimos tempos, com uma densa pesquisa empírica tratada com um instrumental analítico imponente e sofisticado. Desconstrói, com capacidade argumentativa, alguns mitos do pensamento social clássico do país, como o suposto atraso em decorrência da herança ibérica, assim como põe abaixo as teses colonizadas que pensam o Brasil a partir de países como França e Estados Unidos. Está aí a 'tolice da inteligência brasileira', título do seu último livro, que vem alcançando ampla repercussão. Segue aí abaixo matéria/entrevista da Folha de São Paulo com ele, onde se expõe um amplo panorama da sua obra. A 'Tolice da Inteligência Brasileira' é um livro a não faltar na biblioteca das gerações de ontem e de hoje, sobretudo para quem não se limita a "endeusar" autores.
Jessé de Souza |
Por Marcelo Coelho
Confusão entre o público e o privado,
compadrio, herança católica portuguesa, predomínio das relações pessoais e
familiares sobre o sistema de mérito, corrupção. Ao contrário do que em geral
se pensa, nada disso é característica exclusiva do Brasil.
Para Jessé Souza,
presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, e doutor em sociologia pela
Universidade de Heidelberg (Alemanha), criou-se no Brasil, à esquerda e à
direita, um legado de equívocos a partir do pensamento de Sérgio Buarque de
Holanda (1902-82), que merece ser classificado como um verdadeiro
"complexo de vira-lata".
Para o professor de
ciência política na UFMG, que acaba de lançar
"A Tolice da Inteligência Brasileira" [Leya, 272 págs., R$ 39,90,
e-book, R$ 26,99], a intelectualidade do país tende a idealizar as sociedades
capitalistas avançadas, imaginando que em países como Estados Unidos ou França
predomine a plena igualdade de oportunidades e a completa separação entre o
Estado e os interesses privados. Mas o peso das origens familiares, do capital
cultural acumulado ao longo de gerações, das pressões empresariais sobre o
poder público está presente, diz ele, em qualquer país capitalista.
Autor de estudos sobre Max
Weber (1864-1920) e Jürgen Habermas, Jessé Souza desenvolve, em "A Tolice
da Inteligência Brasileira", um sofisticado argumento teórico para mostrar
de que modo o conceito weberiano de "patrimonialismo" –fundamento das
críticas de Raymundo Faoro (1925-2003) à imobilidade do sistema social
brasileiro e ao fracasso do capitalismo e da democracia entre nós– não foi
originalmente pensado para ter aplicação nas sociedades modernas.
Ao interesse teórico que
marcou o início de sua carreira, Jessé Souza tem acrescentado, nos últimos
anos, um intenso trabalho de investigação empírica, do qual resultaram livros
como "Os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe
Trabalhadora?" (editora UFMG, 2010), e "A Ralé Brasileira: Quem É e
Como Vive" (ed. UFMG, 2009).
O problema da economia e
da democracia brasileiras, argumenta Souza, não nasce de supostas deficiências
culturais que tenhamos frente aos países desenvolvidos, mas da incapacidade do
sistema para integrar um vasto contingente de excluídos, a quem faltam não
apenas recursos materiais, mas equipamentos básicos de educação, autoestima e
cidadania.
A lição de Florestan
Fernandes, em especial de seu livro de 1964, "A Integração do Negro na
Sociedade de Classes" (ed. Globo), é das poucas que saem preservadas do
implacável julgamento crítico de "A Tolice da Inteligência
Brasileira", repleto de palavras duras contra Roberto DaMatta, Fernando
Henrique Cardoso e outros mestres do pensamento social entre nós.
Folha - As ciências sociais
brasileiras –com influência no discurso da imprensa e das classes médias– têm
insistido no conceito de "patrimonialismo": a prática de tratar bens
públicos como se fossem propriedade de uns poucos personagens com acesso
permanente ao poder político. Você critica esse conceito, chamando-o de
"conto de fadas para adultos". Poderia explicar?
Jessé Souza - O conceito de patrimonialismo foi contrabandeado de Max Weber sem
a menor preocupação com a contextualização histórica que é fundamental em
Weber. Acho que isso está bem fundamentado no livro, mas a "incorreção
científica" não é a questão principal aqui.
O patrimonialismo só
sobrevive como um conceito que quer dizer alguma coisa em um contexto que
pressupõe o complexo de vira-lata do brasileiro. Essa é a questão principal. É
só porque se imagina, candidamente, que existam países onde não há a
apropriação privada do Estado para fins particulares –os EUA para os liberais
brasileiros seriam esse paraíso– que se pode falar de patrimonialismo como
particularidade brasileira.
Imagine a meia dúzia de
petroleiras americanas, que mandavam no governo Bush filho, atacando o Iraque,
com base em mentiras comprovadas, pela posse do petróleo. E com isso matando
milhões de pessoas e desestabilizando a região até hoje com consequências
funestas que todos vemos.
Quer melhor exemplo de
apropriação privada do Estado para fins de lucro de meia dúzia sem qualquer
preocupação com as consequências? A verdadeira questão é sempre em nome de que
e de quem se apropria do Estado: para o lucro de meia dúzia –como foi a regra
no Brasil e que é a real motivação do impeachment de hoje– ou para a maioria da
sociedade.
Minha tese é a de que, no
Brasil, o patrimonialismo serve para duas coisas bem práticas:
1) A primeira é demonizar
o Estado como ineficiente e corrupto e permitir a privatização e a virtual
mercantilização de todas as áreas da sociedade, mesmo o acesso à educação e à
saúde, que não deveria depender da sorte de nascer em berço privilegiado;
2) Serve como uma espécie
de "senha" de ocasião para que o 1% que controla o dinheiro, a
política (via financiamento privado de eleições) e a mídia em geral possa
mandar no Estado mesmo sem voto. Não é coincidência que tenha havido grossa
corrupção em todos os governos, mas apenas com Getúlio, Jango, Lula e Dilma,
governos com alguma preocupação com a maioria da população, é que a
"senha" do patrimonialismo tenha sido acionada com sucesso. Somos ou
não feitos de tolos?
A corrupção no Brasil,
segundo muitos analistas, teria causas culturais, originadas na tradição
ibérica e católica. Qual a sua discordância com relação a essa tese?
Essa versão é falsa. Ela é
"pré-científica", já que examina o fenômeno da transmissão cultural
nos termos do senso comum que pensa mais ou menos assim: "Se meu avô é
italiano, então também sou". Depende. A língua comum facilita certas
interações, mas o decisivo e o que efetivamente constrói os seres humanos são
as influências das instituições, como a família, a escola, a economia e a
política.
No Brasil, desde sempre,
temos a escravidão como uma espécie de "instituição total" que
determinou um tipo muito peculiar de família, de religião, de poder político,
de exercício da justiça, de produção econômica, tudo isso muito distinto de
Portugal, que desconhecia a escravidão, a não ser de modo muito tópico e
localizado.
A Igreja Católica, por
exemplo, tinha muito poder e continha o mandonismo dos grandes senhores. Aqui o
"senhor de terras e gente" mandava em tudo sem peias. O Brasil desde
o ano zero foi, portanto, uma sociedade singular, apesar de colonizada por
Portugal. Mas foi a partir desse engano que se criou uma ciência culturalista
frágil e superficial, baseada no senso comum que hoje ganha a mente e os
corações dos brasileiros de tão repetida por todos.
O mais importante é que
essa falsa ciência que constrói o brasileiro como inferior –posto que ligado ao
"corpo" como emotividade e sexo, se opondo ao europeu e americano que
seriam o "espírito", intelecto e moralidade distanciada– serve a
interesses políticos. Esse racismo pela cultura só substitui o "racismo
racial" clássico, mantendo todas as suas funções de legitimar privilégios.
Na dimensão internacional,
a intelectualidade brasileira dominante, colonizada até o osso, engole o
racismo cultural e torna ontológica a suposta inferioridade brasileira; na
dimensão interna e nacional, serve para separar "classes do
espírito", como a classe média "coxinha", que seria
"ética", posto que escandalizada com o "patrimonialismo
seletivo" criado pela mídia, e as classes populares, tidas como
"amorais", posto que guiadas pelo interesse imediato.
Essa espécie de
"racismo de classe", falso de fio a pavio, é o fio condutor do
empobrecido debate público brasileiro.
Você é muito crítico com
relação a um dos formuladores desse "culturalismo", Sérgio Buarque de
Holanda. As teses de "Raízes do Brasil" foram expostas em 1936. Será
que ao menos naquela época a crítica a um Estado sem meritocracia, baseado no
favoritismo e nas relações familiares, não era correta?
Eu gostaria antes de tudo
de saber onde fica esse país maravilhoso, formado apenas pelo mérito, que não
favorece ninguém e onde relações familiares não decidem carreiras. Quem
conhecer, por favor, me avise. Eu passei boa parte de minha vida adulta em
países ditos "avançados" e nunca conheci um assim. A própria crença
de que exista algo assim prova como o racismo e a "vira-latice" tomou
conta de nossa alma.
Sérgio Buarque de Holanda
é o pai desse liberalismo amesquinhado e colonizado brasileiro. É necessário
sempre separar a "pessoa" da "obra" e de seus efeitos
sociais, que são o que importa. O liberalismo é fundamento importante da
democracia, mas existem várias maneiras de ser liberal, e a nossa maneira é a
pior possível.
Buarque criou a semântica
do falso conflito que permite encobrir todos os conflitos sociais verdadeiros
entre nós e que nos faz de tolos até hoje. A absurda separação entre um Estado
demonizado como corrupto e ineficiente e o mercado como reino de todas as
virtudes, quando os dois no fundo são indissociáveis, só serve como mote para a
meia dúzia que manda no Brasil e controla o dinheiro, a política e a informação
via mídia virar o país de ponta-cabeça só para ter mais dinheiro no bolso.
Como não se pode dizer que
o que se quer é uma gorda taxa Selic e o acesso "privado" às riquezas
brasileiras, como petróleo e ferro, para essa meia dúzia, então diz-se que é
para acabar com o "mar de lama", sempre só no Estado, se ocupado por
partidos populares, e sempre seletivamente construído via mídia conservadora em
associação com as instituições que querem aumentar seu poder relativo
vendendo-se como "guardiãs da moralidade pública".
É esse discurso que
transforma milhões de pessoas inteligentes em tolas. Essa parcela da classe
média conservadora é explorada por esse 1% que lhe vende os milagres da
privatização brasileira: a pior e mais cara telefonia do globo, por exemplo,
campeã de reclamações. De resto, todos os bens e serviços produzidos aqui são
piores e mais caros. Mas dessa espoliação da classe média por um mercado
superfaturado que vai para o bolso do 1% mais rico ninguém fala.
O filho do
"coxinha" quer ter acesso a uma boa universidade pública, e o avô
dele, quando está doente e o plano não paga, tem que ir ao SUS para doenças
graves e tratamentos caros. Um Estado fraco só serve ao 1% mais rico que pode
ficar ainda mais rico embolsando a Petrobras a preço de ocasião. O "coxinha"
só é feito de tolo.
A classe média
"coxinha" que sai às ruas tirando onda de campeã da moralidade, por
sua vez, explora e rouba o tempo das classes excluídas a baixo preço para
poupar o tempo do trabalho doméstico e investir em mais estudo e mais trabalho
valorizado e rentável.
Luta de classes não é só
cassetete na cabeça de trabalhador. É uma luta silenciosa e invisível (para a
maioria) que implica monopólio de recursos para as classes privilegiadas e
condenações à miséria eterna para a maioria dos 70% que não são da classe média
ou do 1% mais rico. A fanfarra do patrimonialismo e da corrupção só do Estado
serve, antes de tudo, para tornar essas lutas invisíveis.
Como você vê a obra de
Roberto DaMatta nesse contexto?
A obra dele, que reflete
fielmente as discussões de botequim de todo o Brasil, foi uma tentativa de
"modernizar" Buarque. O mais irritante é que esse pessoal "tira
onda" de crítico ao repetir as platitudes do Estado patrimonial e do
"jeitinho" como prova da queda ancestral do brasileiro médio para
auferir vantagens por relações de conhecimento com poderosos.
A tese central de DaMatta,
que se tornou uma espécie de "segunda pele" do brasileiro médio, é a
de que a hierarquia social brasileira é fundada no capital social de relações
pessoais. Essa seria a peculiaridade brasileira que viria de épocas ancestrais.
Desde que a gente reflita duas vezes, essas teses caem como castelo de cartas.
Se não, vejamos.
O leitor que nos lê
conhece alguém com acesso a relações pessoais com pessoas poderosas sem, antes,
ter capital econômico ou capital cultural? Se o leitor conhecer, então DaMatta
tem razão na sua tese do jeitinho.
Como desconfio de que o
leitor não conhece ninguém assim, então o que DaMatta faz é tornar invisível a
distribuição injusta de capital econômico e cultural e, com isso, sepultar
qualquer reflexão sobre a origem social de toda desigualdade.
Para completar supõe –no
fundo a cândida e infantil crença nos Estados Unidos como paraíso na terra– que
existam países onde o capital em relacionamentos não decida previamente a vida
da maior parte das pessoas. Teoria mais frágil e colonizada impossível. Mas é
ela que faz a cabeça do brasileiro médio hoje.
Ao lado do
"culturalismo conservador", você critica o economicismo de raiz
marxista. Quais as suas restrições a esse modelo explicativo?
É que o capitalismo não é
só troca de mercadorias e fluxo de capital. É preciso, por isso, superar o
economicismo, seja liberal, seja marxista. O capitalismo é também um sistema
social e moral que avalia todo mundo e que humilha e despreza uns e enobrece e
legitima a felicidade de outros.
É essa hierarquia social
"invisível" (mas cuja realidade o estudo empírico pode mostrar) que
diz o que é certo e errado, verdadeiro ou falso. O capitalismo é, portanto, um
sistema de classificação e desclassificação que predetermina quem ganha e quem
perde e legitima esses lugares.
No livro, que resume meus
35 anos de trabalho teórico e empírico sobre esses temas, procurei mostrar que
esses sistemas de classificação são os mesmos para Brasil e Argentina, do mesmo
modo como atuam na França ou na Inglaterra.
A peculiaridade do Brasil
é a tolerância com o abandono da classe dos excluídos que chamo
provocativamente de "ralé". Todos nossos problemas –insegurança,
baixa produtividade, serviços públicos de má qualidade– advêm do esquecimento
dessa classe.
A corrupção existe em
todos os países, você diz. Mas certamente há diferenças de grau entre a
Dinamarca, digamos, e o Brasil.
A corrupção é endêmica ao
capitalismo. Se corrupção for enganar o outro, então o capitalismo é certamente
mais engenhoso que qualquer outro sistema social.
O que outros países como a
Dinamarca ou Alemanha não têm é a corrupção "pequena" –a única que o
cidadão feito de tolo enxerga no cotidiano– do agente público mal remunerado,
como os policiais entre nós. Existem também arranjos institucionais mais ou
menos bem-sucedidos.
O Brasil ganharia com o
financiamento público de eleições e com uma reforma política que tornasse mais
transparente a relação com a economia. É nisso que falta avançar. Mas é preciso
mesmo ser muito ingênuo para não perceber que a "grossa corrupção", a
que drena capitais e privilégios para uma pequena minoria, é universal. Dilma
tentou comprar essa briga no Brasil, enfrentando o grande capital especulativo.
Hoje fica claro que esse pessoal não a perdoou pela ousadia.
Suponha-se que Sérgio
Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta estejam errados ao
atribuir a uma particularidade brasileira, a um vício cultural católico
português a inexistência de um sistema de mérito real, de uma real
impessoalidade do Estado e de uma legítima situação de igualdade de
oportunidades no Brasil. Mesmo que essa situação não corresponda à realidade de
um país como os Estados Unidos, que esses autores idealizam, será que essa
crítica não expressa um desejo de transformação importante? Em vez de anular o
valor dessa crítica, poderíamos alargar sua dimensão estendendo-a a outros
países.
O único caminho seguro, na
vida pessoal ou na coletiva, é a verdade. Não se pode pensar uma sociedade e
suas contradições alargando uma concepção falsa desde os pressupostos. Nem há
razão para isso.
O livro mostra, creio eu,
que é possível um novo caminho para a percepção do Brasil e de suas
singularidades. Um caminho que não vise apenas preservar os privilégios
absurdos de uma pequena elite socialmente irresponsável, legitimados por uma
pseudociência, mas que possa, inclusive, recuperar a inteligência viva dessa
mesma classe média que é hoje manipulada a agir contra seus interesses.
Você diz que as classes
médias, predominantes nas manifestações de junho de 2013, são feitas de tolas
quando compram automóveis com o triplo da taxa de lucro dos países europeus,
pagam taxas de juros estratosféricas e usam serviços de celular entre os mais
caros e ineficientes do mundo. Mas não teriam razão, do ponto de vista de seus
interesses, ao reclamar de impostos que são uma parcela enorme do preço de bens
como veículos automotores e geladeiras?
A estrutura de impostos no
Brasil tem de ser efetivamente revista no sentido de evitar impostos indiretos
em produtos e serviços e atingir mais a renda diferencial, e, muito
especialmente, o patrimônio. Desse ponto de vista, ela pode ter um pouco de
razão.
Mas o ponto mais
importante para a tolice da classe média é que o Estado funciona como
arrecadador de impostos, antes de tudo, para bancar e garantir a drenagem de
recursos arrecadados da sociedade como um todo para a meia dúzia de plutocratas
que manda na economia, na política via financiamento de eleições e na mídia. O
pagamento de juros para essa meia dúzia e seus colegas estrangeiros –o único
aspecto que ninguém nem sequer pensa em cortar em ocasiões de crise–
compromete, por exemplo, o investimento em educação e saúde de qualidade para
todos.
O plutocrata vai aos EUA
se operar se for preciso e manda o filho estudar em Miami ou na Suíça, como
acontece realmente hoje em dia. A classe média que sai às ruas para apoiá-lo
precisa do SUS quando a chapa esquenta e só conta com a universidade pública
aqui mesmo para o filho. Ao mesmo tempo, paga os serviços e produtos mais caros
e de menor qualidade relativa do globo no nosso mercado superfaturado. Esse
"extra" também é um imposto que sai da classe média direto para o
bolso da elite econômica. Mas dele nunca se fala.
Essa classe média,
portanto, é espoliada pela elite por mecanismos tanto de Estado quanto de
mercado, e é ela que depois sai às ruas para defender os interesses dessa mesma
elite usando o espantalho seletivo da corrupção apenas estatal.
Essa é a real história da tolice
pré-fabricada entre nós.
O sentimento anti-Estado e
pró-mercado tende a ser conservador e perverso no Brasil. Mas não poderíamos
acusar a esquerda, em especial o PT, de um excessivo "estatismo", não
no sentido econômico, mas no de considerar que a transformação social poderia
vir de uma simples conquista do poder político pelo partido de esquerda? Em vez
de privilegiar formas de auto-organização e de capilarização do partido nas
periferias, o PT procurou agir "a partir de cima", e não "a
partir de baixo". Como resultado, vemos nas periferias todo tipo de
igrejas evangélicas, mas nenhum núcleo ou sede distrital de partidos políticos.
O preço para assumir o poder sem essa organização foi a aliança com os setores
mais retrógrados da política brasileira, como Collor, Maluf, os ruralistas e a
bancada evangélica. O "estatismo" de esquerda, nesse sentido, não
seria uma repetição para pior do populismo? O petismo não seria também um conto
de fadas para adultos?
O principal erro do PT
para mim foi duplo e reflete sua dependência da narrativa liberal tão
importante nele quanto em um partido conservador da elite como o PSDB. Esse foi
um dos temas centrais do livro: mostrar que a ideologia liberal amesquinhada
dominou também a dita "esquerda", colonizando a tradição
social-democrata ou socialista democrática.
O PT teria que ter criado
uma narrativa independente mostrando a importância do passo a passo da ascensão
social possível e mostrando as dificuldades também –sem cair, por exemplo, na
fantasia da nova classe média, que gerou expectativas desmedidas.
Essa narrativa poderia ter
sido uma versão politizada, mostrando a importância da política inclusiva e da
"vontade política" para a mobilidade social, de modo a se contrapor à
leitura individualista da ascensão social da religião evangélica.
Mas, para isso, teria sido
necessário tocar no nó górdio da dominação social no Brasil, que é o papel de
"partido político da elite" assumido pela imprensa conservadora desde
o golpe contra Getúlio. É ela, afinal, quem chama a classe média moralista e
feita de tola às ruas e é ela que manipula seletivamente e a seu bel-prazer o
tema da corrupção como única moeda dos conservadores para mascarar seus
interesses mais mesquinhos em pseudointeresse geral. É ela quem tira onda de
"neutra", quando apenas obedece ao dinheiro.
O medo desse confronto foi
a real causa do que agora acontece. Em uma sociedade midiática, onde toda
informação vem de cima para baixo, tem que existir o contraditório, a opinião
alternativa, senão o voto do eleitor não é esclarecido nem autônomo, ou seja,
rigorosamente, não tem democracia. Nesse sentido estamos mais perto da Coreia
do Norte do que da Inglaterra ou da Alemanha. Confiar apenas nos
"movimentos sociais" nesse contexto é ingenuidade. Esses movimentos
também estão sob a égide do discurso único da mídia conservadora. Essa é para
mim a real razão do fracasso relativo do projeto petista.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 10/01/2016.
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