segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Os Limites Estratégicos da Esquerda na América Latina

Por ocasião da abordagem sobre a crise venezuelana, seguimos com a discussão sobre a Esquerda na América Latina. Reproduzo a seguir um instigante texto do Prof. Aldo Fornazieri sobre os limites estratégicos da Esquerda na região. Como é próprio da produção do autor, trata-se de um texto com consistência empírico-analítica e argumentativa. Apresenta, por exemplo, dois modelos em torno dos quais partidos de Esquerda que ascenderam ao governo em países da América Latina organizaram as suas gestões: o modelo petista e o bolivariano. Neste ponto, tenho dúvidas sobre se o "modelo chileno" se insere nessa classificação, e se não configuraria uma terceira perspectiva. Talvez a 'Concertación' chilena tenha especificidades que a diferenciem de outras experiências da Esquerda Latino-americana - é a impressão que se tem, por exemplo, quando se está em Santiago. Seja como for, as abordagens mais aprofundadas sobre essa questão não podem deixar de levar em conta, como requisitos preliminares, dois aspectos básicos: 1) uma retrospectiva do debate sobre desenvolvimento na região (tratei disso no Fórum Mundial das Alternativas, aqui: http://www.forumdesalternatives.org/pt-br/dialetica-socio-historica-um-ensaio-retrospectivo-sobre-as-teorias-do-desenvolvimento-na-america-latina); 2) a nova formatação geopolítica que tem tido lugar no continente latino-americano (de forma preliminar, esbocei algumas notas sobre isso aqui: http://www.ocomuneiro.com/nr20_08_Ivonaldo_Leite.html). Do meu ponto de vista, o texto do Prof. Aldo tem sintonia com esse backgound. Contribui para fazer o debate avançar entre aqueles que se têm ocupado da América Latina como objeto de análise, bem como para que se busque vislumbrar quadros de inteligibilidade sobre a nossa região. 


 


Por Aldo Fornazieri
(Escola de Sociologia e Política de São Paulo) 

As atuais crises dos governos de esquerda e neopopulistas na América Latina permitem várias abordagens. Embora a análise acurada dessas crises remeta para a necessidade de um exame detalhado e particular de cada governo e de cada país, é possível estabelecer algumas generalizações, ciente dos ricos que estas sempre promovem, seja porque são simplificadoras, seja porque se distanciam da realidade particular de cada caso.
Ressalve-se que aqui o termo “neopopulista” não é usado no sentido pejorativo que normalmente carrega, mas na conotação definida por Ernesto Laclau expressando as situações em que o povo se reúne em torno de um líder, em confronto ou em paralelo ao sistema institucional formal, para reivindicar demandas não atendidas. O sistema institucional formal, capturados pelas elites, é impermeável às demandas populares e, nesse contexto,  governos populistas ou neopopulistas representam avanços democráticos ao incorporarem as massas deserdadas semiempregadas ao sistema de direitos.
No limite deste artigo, abordam-se duas questões da estratégia dos governos de esquerda que vigoram ou vigoraram nos últimos tempos: 1) o tema do projeto de desenvolvimento; 2) o tema da sustentação política. Não resta dúvida de que, após uma primeira fase de sucesso, os governos de esquerda ou neopopulistas vivem uma crise. A derrota do peronismo na Argentina, a situação da Venezuela à beira de uma conflagração geral, os impasses dos governos do Equador e do Peru, a impopularidade do segundo governo Bachelet no Chile e a situação crítica do governo Dilma evidenciam uma conjunção de crises. Evo Morales na Bolívia e os governos da Frente Ampla no Uruguai parecem ser a exceção nesse processo.
Alguns analistas sugerem uma abordagem cíclica para entender a sucessão de crises na relação esquerda e direita-liberalismo na América Latina. Nos anos de 1930 a 1960, a esquerda, pela via dos projetos de nacional-desenvolvimentismo, populismo e programas de substituição de importações,  teria sido relativamente exitosa no incremento de uma indústria nascente, no crescimento econômico e na formalização do trabalho. Mas suscitou poucos avanços na distribuição da renda e da riqueza, na execução de reformas modernizantes e efetivação de um padrão elevado de direitos sociais e civis.
Esse processo foi derrotado com a acensão de um padrão de governos autoritários e conservadores. A rigor, o projeto desses governos, restritivo e repressivo do ponto de vista dos direitos políticos, manteve-se atrelado à perspectiva nacional-desenvolvimentista, tendo o Estado como protagonista fundamental das escolhas estratégicas do desenvolvimento. Nem a direita e nem a esquerda perceberam as mudanças que ocorriam na economia mundial a partir dos anos de 1970 e o novo padrão de desenvolvimento implicado no tripé “revolução tecnológica,  importância do conhecimento e globalização”. Crises fiscais e endividamento externo foram heranças deixadas pela esquerda e pela direita naqueles dois ciclos.
Na sequência, surgiu um novo ciclo, denominado neoliberal, um ciclo curto de 10 a 15 anos, cujo núcleo estratégico consistiu em promover reformas macroeconômicas orientadas para o mercado, com a abertura econômica e comercial e com as privatizações. O neoliberalismo enfatizará as ideias da eficiência do mercado, da competitividade e do Estado Mínimo, desconsiderando a necessidade da justiça social num continente extremamente desigual.
Durante este ciclo a esquerda amargava sua crise conjugada em três frentes – colapso do comunismo estatista, crise da socialdemocracia europeia e esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista. Na América Latina, surgiram novas formações de esquerda, sendo que a mais notória foi o PT, que buscavam formular uma crítica dos modelos de programas antigos e a formulação de uma nova estratégia de desenvolvimento.
Desse processo todo, surgiu uma miscelânea, uma mistura de elementos de ortodoxia comunista, veias socialdemocratas, sobrevivência de teses nacional-desenvolvimentistas, neopopulismo, políticas públicas de integração social, formalização do trabalho, crescimento da renda e de incorporação de massas populares ao consumo. Com o não cumprimento das promessas neoliberais, partidos de esquerda ascenderam ao poder em vários países no início do século XXI.
Esses governos, de modo geral, têm duas fases distintas: uma primeira fase de sucesso, de crescimento econômico, de crescimento da renda e do emprego, da formalização do trabalho e do estímulo ao consumo e de programas sociais de combate à pobreza. Esta fase coincide com o boom das commodities e da transformação da China em primeiro ou segundo parceiro comercial. Este êxito não é exclusivo da esquerda: ele ocorre no Peru de Alan Garcia, na Colômbia de Uribe e de Manuel Santos, no Chile de Sebastian Piñera,  etc. Claro que há especificidades e diferenças nesses  êxitos.
Em termos dos governos de esquerda, o êxito traz também fatos desagradáveis: ocorre uma acomodação, uma falta de prudência fiscal, os partidos no poder se corrompem e não há a formulação de uma estratégia de desenvolvimento que leve em conta a globalização, a revolução tecnológica e a necessidade de uma revolução educacional. Na medida em que não há uma estratégia que combine o consumo interno com as exportações, a infraestrutura é negligenciada. As políticas de câmbio valorizado implementadas no ciclo neoliberal e continuadas pelos governos de esquerda contribuíram para acentuar a desindustrialização dos últimos 30 anos. Reformas estruturais que removam as condições da desigualdade não são implementadas. O ciclo curto de 16 anos de governos de esquerda parece estar se esgotando. Os inúmeros impasses em várias frentes indicam que o ciclo neoliberal e o ciclo de esquerda contribuíram para que a América Latina perdesse o bonde da história.

Os impasses da sustentação política

A rigor, se instituíram dois modelos de sustentação política dos governos de esquerda dos últimos tempos: o modelo petista e o modelo bolivariano. Os governos petistas estruturam sua sustentação, fundamentalmente, pela via institucional em aliança com as elites políticas tradicionais. Os setores sociais e sindicais que orbitavam em torno do PT foram cooptados pelo governo com cargos, verbas e políticas sociais.
Esse modelo garantiu estabilidade e governabilidade enquanto durou o jogo do ganha-ganha proporcionado pelo boom das commodities. Findo o jogo, ainda no primeiro mandado do governo Dilma, a base de sustentação deteriorou-se e vieram as defecções.  A Lava-jato e  a soma das crises econômica e política levaram ao atual estado de coisas marcado pela dificuldade de governar. O governo e o PT não apostaram na organização popular e na formação política dos movimentos populares e sociais. Sequer os setores que são beneficiários dos programas sociais do governo permanecem fieis ao mesmo e ao PT. A necessidade de apoio na crise do impeachment revela o limite dessa estratégia de sustentação política de um governo de esquerda.
O modelo bolivariano, mais acentuadamente neopopulista, dada a necessidade de confrontar a institucionalidade  elitista com as massas que viviam à margem das instituições, buscou adotar sua principal base de sustentação política na organização e mobilização dos movimentos sociais e populares. Se é verdade que essa estratégia gera mais autonomia ao governo de esquerda em relação às elites tradicionais, também revela limites: 1) tendência ao isolamento interno e internacional; 2) perda de fidelidade nos momentos de crise econômica e social, como o que ocorre atualmente na Venezuela. A crise econômica e social e o isolamento do governo venezuelano o deixam num beco sem saídas: ou o confronto ou a derrota.
Diante de seus vários impasses e dos limites evidenciados pelas experiências recentes das esquerdas latino-americanas,  será necessário que as estratégias sejam repensadas. Aparentemente, não se pode definir o modelo de desenvolvimento econômico e social de forma separada à definição das forças políticas e sociais que lhe darão sustentação.
As experiências dos governos e seus limites mostraram também que o processo democrático e de construção da igualdade e da justiça requer uma combinação da sustentação institucional e da sustentação popular. Até porque não há governabilidade democrática sem a participação social e popular. A democracia precisa ser desprivatizada e despartidarizada. Ela não pode ser algo privativo das elites e dos partidos. A participação e o controle social do poder são requisitos indispensáveis para evitar tanto os muitos males presentes das atuais democracias quanto para torná-las mais republicanas e justas.
  

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