Por ocasião da abordagem sobre a crise venezuelana, seguimos com a discussão sobre a Esquerda na América Latina. Reproduzo a seguir um instigante texto do Prof. Aldo Fornazieri sobre os limites estratégicos da Esquerda na região. Como é próprio da produção do autor, trata-se de um texto com consistência empírico-analítica e argumentativa. Apresenta, por exemplo, dois modelos em torno dos quais partidos de Esquerda que ascenderam ao governo em países da América Latina organizaram as suas gestões: o modelo petista e o bolivariano. Neste ponto, tenho dúvidas sobre se o "modelo chileno" se insere nessa classificação, e se não configuraria uma terceira perspectiva. Talvez a 'Concertación' chilena tenha especificidades que a diferenciem de outras experiências da Esquerda Latino-americana - é a impressão que se tem, por exemplo, quando se está em Santiago. Seja como for, as abordagens mais aprofundadas sobre essa questão não podem deixar de levar em conta, como requisitos preliminares, dois aspectos básicos: 1) uma retrospectiva do debate sobre desenvolvimento na região (tratei disso no Fórum Mundial das Alternativas, aqui: http://www.forumdesalternatives.org/pt-br/dialetica-socio-historica-um-ensaio-retrospectivo-sobre-as-teorias-do-desenvolvimento-na-america-latina); 2) a nova formatação geopolítica que tem tido lugar no continente latino-americano (de forma preliminar, esbocei algumas notas sobre isso aqui: http://www.ocomuneiro.com/nr20_08_Ivonaldo_Leite.html). Do meu ponto de vista, o texto do Prof. Aldo tem sintonia com esse backgound. Contribui para fazer o debate avançar entre aqueles que se têm ocupado da América Latina como objeto de análise, bem como para que se busque vislumbrar quadros de inteligibilidade sobre a nossa região.
Por Aldo Fornazieri
(Escola de Sociologia e Política de São Paulo)
As atuais crises dos
governos de esquerda e neopopulistas na América Latina permitem várias
abordagens. Embora a análise acurada dessas crises remeta para a necessidade de
um exame detalhado e particular de cada governo e de cada país, é possível
estabelecer algumas generalizações, ciente dos ricos que estas sempre promovem,
seja porque são simplificadoras, seja porque se distanciam da realidade
particular de cada caso.
Ressalve-se que aqui o termo
“neopopulista” não é usado no sentido pejorativo que normalmente carrega, mas
na conotação definida por Ernesto Laclau expressando as situações em que o povo
se reúne em torno de um líder, em confronto ou em paralelo ao sistema institucional
formal, para reivindicar demandas não atendidas. O sistema institucional
formal, capturados pelas elites, é impermeável às demandas populares e, nesse
contexto, governos populistas ou
neopopulistas representam avanços democráticos ao incorporarem as massas
deserdadas semiempregadas ao sistema de direitos.
No limite deste artigo,
abordam-se duas questões da estratégia dos governos de esquerda que vigoram ou
vigoraram nos últimos tempos: 1) o tema do projeto de desenvolvimento; 2) o
tema da sustentação política. Não resta dúvida de que, após uma primeira fase
de sucesso, os governos de esquerda ou neopopulistas vivem uma crise. A derrota
do peronismo na Argentina, a situação da Venezuela à beira de uma conflagração
geral, os impasses dos governos do Equador e do Peru, a impopularidade do
segundo governo Bachelet no Chile e a situação crítica do governo Dilma
evidenciam uma conjunção de crises. Evo Morales na Bolívia e os governos da
Frente Ampla no Uruguai parecem ser a exceção nesse processo.
Alguns analistas sugerem uma
abordagem cíclica para entender a sucessão de crises na relação esquerda e
direita-liberalismo na América Latina. Nos anos de 1930 a 1960, a esquerda,
pela via dos projetos de nacional-desenvolvimentismo, populismo e programas de
substituição de importações, teria sido
relativamente exitosa no incremento de uma indústria nascente, no crescimento
econômico e na formalização do trabalho. Mas suscitou poucos avanços na
distribuição da renda e da riqueza, na execução de reformas modernizantes e
efetivação de um padrão elevado de direitos sociais e civis.
Esse processo foi derrotado
com a acensão de um padrão de governos autoritários e conservadores. A rigor, o
projeto desses governos, restritivo e repressivo do ponto de vista dos direitos
políticos, manteve-se atrelado à perspectiva nacional-desenvolvimentista, tendo
o Estado como protagonista fundamental das escolhas estratégicas do
desenvolvimento. Nem a direita e nem a esquerda perceberam as mudanças que
ocorriam na economia mundial a partir dos anos de 1970 e o novo padrão de
desenvolvimento implicado no tripé “revolução tecnológica, importância do
conhecimento e globalização”. Crises fiscais e endividamento externo foram
heranças deixadas pela esquerda e pela direita naqueles dois ciclos.
Na sequência, surgiu um novo
ciclo, denominado neoliberal, um ciclo curto de 10 a 15 anos, cujo núcleo
estratégico consistiu em promover reformas macroeconômicas orientadas para o
mercado, com a abertura econômica e comercial e com as privatizações. O neoliberalismo
enfatizará as ideias da eficiência do mercado, da competitividade e do Estado
Mínimo, desconsiderando a necessidade da justiça social num continente
extremamente desigual.
Durante este ciclo a
esquerda amargava sua crise conjugada em três frentes – colapso do comunismo
estatista, crise da socialdemocracia europeia e esgotamento do modelo
nacional-desenvolvimentista. Na América Latina, surgiram novas formações de
esquerda, sendo que a mais notória foi o PT, que buscavam formular uma crítica
dos modelos de programas antigos e a formulação de uma nova estratégia de
desenvolvimento.
Desse processo todo, surgiu
uma miscelânea, uma mistura de elementos de ortodoxia comunista, veias
socialdemocratas, sobrevivência de teses nacional-desenvolvimentistas, neopopulismo,
políticas públicas de integração social, formalização do trabalho, crescimento
da renda e de incorporação de massas populares ao consumo. Com o não
cumprimento das promessas neoliberais, partidos de esquerda ascenderam ao poder
em vários países no início do século XXI.
Esses governos, de modo
geral, têm duas fases distintas: uma primeira fase de sucesso, de crescimento
econômico, de crescimento da renda e do emprego, da formalização do trabalho e
do estímulo ao consumo e de programas sociais de combate à pobreza. Esta fase
coincide com o boom das commodities e
da transformação da China em primeiro ou segundo parceiro comercial. Este êxito
não é exclusivo da esquerda: ele ocorre no Peru de Alan Garcia, na Colômbia de
Uribe e de Manuel Santos, no Chile de Sebastian Piñera, etc. Claro que há especificidades e diferenças
nesses êxitos.
Em termos dos governos de
esquerda, o êxito traz também fatos desagradáveis: ocorre uma acomodação, uma
falta de prudência fiscal, os partidos no poder se corrompem e não há a
formulação de uma estratégia de desenvolvimento que leve em conta a
globalização, a revolução tecnológica e a necessidade de uma revolução
educacional. Na medida em que não há uma estratégia que combine o consumo
interno com as exportações, a infraestrutura é negligenciada. As políticas de
câmbio valorizado implementadas no ciclo neoliberal e continuadas pelos
governos de esquerda contribuíram para acentuar a desindustrialização dos
últimos 30 anos. Reformas estruturais que removam as condições da desigualdade
não são implementadas. O ciclo curto de 16 anos de governos de esquerda parece
estar se esgotando. Os inúmeros impasses em várias frentes indicam que o ciclo
neoliberal e o ciclo de esquerda contribuíram para que a América Latina
perdesse o bonde da história.
Os impasses da sustentação
política
A rigor, se instituíram dois
modelos de sustentação política dos governos de esquerda dos últimos tempos: o
modelo petista e o modelo bolivariano. Os governos petistas estruturam sua
sustentação, fundamentalmente, pela via institucional em aliança com as elites
políticas tradicionais. Os setores sociais e sindicais que orbitavam em torno
do PT foram cooptados pelo governo com cargos, verbas e políticas sociais.
Esse modelo garantiu
estabilidade e governabilidade enquanto durou o jogo do ganha-ganha
proporcionado pelo boom das commodities. Findo o jogo, ainda no
primeiro mandado do governo Dilma, a base de sustentação deteriorou-se e vieram
as defecções. A Lava-jato e a soma
das crises econômica e política levaram ao atual estado de coisas marcado pela
dificuldade de governar. O governo e o PT não apostaram na organização popular
e na formação política dos movimentos populares e sociais. Sequer os setores
que são beneficiários dos programas sociais do governo permanecem fieis ao
mesmo e ao PT. A necessidade de apoio na crise do impeachment revela o limite
dessa estratégia de sustentação política de um governo de esquerda.
O modelo bolivariano, mais
acentuadamente neopopulista, dada a necessidade de confrontar a
institucionalidade elitista com as
massas que viviam à margem das instituições, buscou adotar sua principal base
de sustentação política na organização e mobilização dos movimentos sociais e
populares. Se é verdade que essa estratégia gera mais autonomia ao governo de
esquerda em relação às elites tradicionais, também revela limites: 1) tendência
ao isolamento interno e internacional; 2) perda de fidelidade nos momentos de
crise econômica e social, como o que ocorre atualmente na Venezuela. A crise econômica
e social e o isolamento do governo venezuelano o deixam num beco sem saídas: ou
o confronto ou a derrota.
Diante de seus vários
impasses e dos limites evidenciados pelas experiências recentes das esquerdas
latino-americanas, será necessário que
as estratégias sejam repensadas. Aparentemente, não se pode definir o modelo de
desenvolvimento econômico e social de forma separada à definição das forças
políticas e sociais que lhe darão sustentação.
As experiências dos governos
e seus limites mostraram também que o processo democrático e de construção da
igualdade e da justiça requer uma combinação da sustentação institucional e da
sustentação popular. Até porque não há governabilidade democrática sem a
participação social e popular. A democracia precisa ser desprivatizada e
despartidarizada. Ela não pode ser algo privativo das elites e dos partidos. A
participação e o controle social do poder são requisitos indispensáveis para
evitar tanto os muitos males presentes das atuais democracias quanto para torná-las
mais republicanas e justas.
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