Por Ricardo
Gessner
(Professor da
Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Quando
“poeta” e “Platão” aparecem na mesma frase, normalmente é para relembrar a
expulsão do primeiro pelo segundo da “república ideal”. A obra A República, de Platão, tem como
temática principal a justiça, sendo que para discorrer sobre o assunto,
Sócrates e seu principal interlocutor, Glauco, aplicam o raciocínio no
desenvolvimento de uma “república ideal”, e, com isso, abordam outras temáticas
como a educação, a dinâmica dos matrimônios, a escolha de um regime político,
entre outros. No Livro X, Sócrates diz que para o bom funcionamento dessa
cidade, não deve haver artistas nem poetas.
Essa
expulsão recai sobre uma concepção específica de arte, entendida como imitação.
A “imitação”, por sua vez, não é uma categoria de prestígio na filosofia
platônica. Isso está relacionado com um dos itens principais do pensamento de
Platão, que é a divisão entre “mundo sensível” e “mundo inteligível”, também
desenvolvido n’A República, Livro VII, com a alegoria da caverna. A realidade
terrena é esta em que o ser humano vive; é percebida e conhecida através dos
sentidos e, portanto, é chamada de “mundo sensível”. Os objetos que compõem o
“mundo sensível” tem sua origem nas formas perfeitas, eternas e imutáveis – as
Ideias – que compõem o “mundo inteligível”, acessível somente por meio da razão.
O “mundo sensível”, portanto, é uma espécie de imitação do “mundo inteligível”.
O primeiro são aparências, o segundo, essências.
Se
o artista reproduz em suas obras aspectos do “mundo sensível”, consequentemente
se coloca num lugar duplamente distante em relação às essências, às Ideias,
pois realiza uma imitação (a obra de arte) da imitação (o mundo sensível).
Sendo assim, para o funcionamento saudável dessa república ideal, os artistas
não poderiam ter lugar.
Vê-se
que essa “expulsão” implica num posicionamento antes ético do que estético.
Isto é, o fundamento da arte é definido por meio de uma discussão de viés
ético: é a função da arte que adquire preponderância. Nesse sentido, há uma
brecha para elaborarmos uma hipótese e pensarmos noutro fundamento sobre a
arte, que seja consistente em relação à “república ideal”; desenvolver uma
concepção de arte como meio de conhecimento, mesmo que ela tenha como ponto de
partida a imitação.
Nesse
sentido, há outro diálogo de Platão, este menos citado e anterior ao d’A
República, intitulado Ion. Trata-se de uma reflexão sobre a contraposição entre
técnica e inspiração poética.
Ion
é um rapsodo, isto é, alguém que declama e interpreta poemas de que não é
autor. Nas ocasiões em que Ion declama e comenta os poemas de Homero, realiza
seu trabalho com maestria, porém o mesmo não acontece em relação a outros
poetas, mesmo quando as temáticas são as mesmas. Diante disso, Sócrates dirá
que o trabalho de Ion não se deve a uma técnica; se o fosse, seria indiferente
declamar e comentar Homero ou outro poeta, pois bastaria aplicar a técnica. Ion
realiza seu trabalho com maestria exclusivamente com Homero, pois faz parte de
um encadeamento cuja origem é a inspiração poética.
A
origem de um poema é de fundo irracional – o poeta é inspirado pelas Musas, que
lhes ditam os poemas: “Na verdade, (...), os bons poetas, não é por efeito de
uma arte [técnica], mas porque são inspirados e possuídos, que eles compõem
todos esses belos poemas” (533 d). Nesse processo há um encadeamento: “a Musa inspira
ela própria e, através destes inspirados, forma-se uma cadeia, experimentando
outros o entusiasmo” (533 d). Isto é, aqueles que têm a mesma afinidade
compartilham desse entusiasmo, isto é, da fruição estética, constituindo um
encadeamento que começa com as Musas, passa pelo poeta e chega ao expectador.
Daí a maestria de Ion em relação a Homero.
Nesse
sentido, a origem da poesia é divina: “Com efeito, o poeta é uma coisa leve,
alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de
si e de perder o uso da razão. Enquanto não receber este dom divino, nenhum ser
humano é capaz de fazer versos ou de proferir oráculos” (534 b).
Se,
por um lado, há uma contradição quando comparamos a valorização do poeta entre
A República e Ion, de outro, permite desenvolver a hipótese levantada
anteriormente, de pensar a poesia como forma de conhecimento. Não se deve levar
ao pé da letra a “possessão” do poeta. Na verdade, isso significa que o poeta
possui certa sensibilidade, isto é, uma espécie de intuição para perceber
aspectos que vão além da percepção imediata da realidade – as Ideias, para
utilizarmos um termo de Platão. Se numa obra de arte elementos da realidade
concreta estão representados, não necessariamente implica numa imitação, mas na
utilização desses elementos para representar essas percepções.
Dessa
forma, o acesso às Ideias, às verdades, se dá não apenas pela razão, como
defendia Platão n’A República, mas também pela intuição. A fruição de uma obra
de arte estabelece o expectador no outro polo daquela corrente que se inicia
com as Musas: se há afinidade, o expectador tem acesso a essas Ideias e, dessa
forma, a arte, a poesia, podem ser uma via de acesso a esse conhecimento. E os
poetas podem retornar à República, se assim o quiserem.
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Fonte: http://lounge.obviousmag.org/
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