sábado, 16 de janeiro de 2016

Ser e tempo: a vida que encontramos, a existência que construímos

Segue aí abaixo uma breve incursão na obra 'Ser e Tempo', de Heidegger. Reflexão necessária ao sentido da existência. É, de longe, uma das vias de interpretação do pensador alemão que prefiro, na medida em que tomo parte no 'treino do debate' existencialista. A conferir. 

Centro histórico da cidade portuguesa de Guimarães - 2016: o 'segredo' do
 ser no tempo 

Por André Coelho
(UFPA)

"Ser e tempo" aborda de maneira original uma das mais antigas questões da humanidade: a questão do ser. Vou, inicialmente, dizer do que se trata essa questão, que, embora seja bastante abstrata, depois de compreendida se revela fundamental.
No nosso dia-a-dia, falamos de muitas coisas que existem. Falamos de coisas que têm existência objetiva, como cidades, ruas, casas, carros, roupas, relógios, mesas, cadeiras, telefones celulares, etc. Falamos também de pessoas, de homens, de mulheres, de brancos, de negros, de crianças, de adultos, de jovens, de idosos etc. Falamos também de relações, de perto, de longe, de maior, de menor, de mais belo, de mais rápido, de mais barato, etc. Falamos ainda de coisas cuja existência é subjetiva, como pensamentos, sentimentos, lembranças, imaginações, sonhos, ilusões de ótica, etc. Falamos, finalmente, de coisas cuja existência é cultural, como valor da moeda, movimento da bolsa de valores, conhecimento, arte, religião, prestígio, honra, virtudes, etc. São infinitas coisas de muitos tipos diferentes, mas que têm em comum o fato de que podemos falar delas como coisas que existem ou não existem. 
Essa "existência" é o fenômeno que a filosofia chama de "ser". As coisas que "são" são as coisas que "existem", as que "não são", as que "não existem". Porém, que significa existir e não existir? Ou, como agora vamos falar, que significa ser ou não ser? (aqui talvez lhe venha à mente a famosa fala da personagem Hamlet, na peça homônima de Shakespeare: "Ser ou não ser: eis a questão", mas o príncipe da Dinamarca se perguntava sobre se era melhor continuar vivendo ou dar fim à sua vida, e não sobre a questão do ser no sentido filosófico que estamos abordando.)

Para uma mesa, por exemplo, ser significa ocupar certo lugar no espaço e no tempo (ser como ser, em geral, alguma coisa no mundo) e ter certas propriedades comuns a todas as mesas (ser como ser, em especial, uma mesa). Mas essa definição de ser não serviria, por exemplo, para um pensamento, ou para uma relação. O pensamento existe na subjetividade do pensador, enquanto a relação existe na percepção de quem a contempla. A coisa pode ficar ainda mais difícil se falarmos de memórias, de ilusões, de miragens, de sonhos etc.

Tomemos a frase seguinte: "Unicórnios não existem". O que significa dizer que tais seres "não existem"? (aqui convém distinguir entre não existir enquanto entidade concreta e não existir enquanto conceito, pois os unicórnios, enquanto conceito, existem, do contrário a frase "Unicórnios não existem" não poderia ser formulada. Também convém distinguir entre existir enquanto entidade concreta no mundo real e existir enquanto entidade concreta num mundo fictício, porque, num conto de fadas, por exemplo, um unicórnio pode perfeitamente existir não apenas enquanto conceito, mas também enquanto entidade concreta, como, por exemplo, o animal em que a mocinha monta para fugir de seus perseguidores.) Significa que nunca ninguém viu um unicórnio? Ora, mas nunca ninguém viu o ar, ou a gravidade, ou a raiz quadrada de dois, e todas essas coisas existem (embora aqui seja aconselhável chamar a atenção para o fato de que o ar, a gravidade e raiz de dois são coisas cujas propriedades não implicam a possibilidade de serem vistas, enquanto unicórnios, se existissem com as propriedades que se atribuem a eles, certamente teriam que poder ser vistos. Por isso, nunca se ter visto um unicórnio tem uma relevância diferente de nunca se ter visto coisas, como o ar, a gravidade e a raiz de dois, cuja natureza inclui a característica de não serem visíveis). Significa que não há entidades concretas que preencham as condições para serem reconhecidas como unicórnios, quer dizer, que não há nenhum cavalo com um chifre frontal? Talvez, mas essa explicação contém a expressão "não há", que é apenas uma variante de "não existe", que é exatamente o que queremos explicar.

Passando de unicórnios para coisas mais sérias: Os átomos, eles existem? Bem, existem teorias sobre os átomos, modelos de sua estrutura, funcionamento, relação entre si. Existem milhares de teorias e pesquisas que pressupõem a existência desses átomos e milhares de aparelhos tecnológicos que funcionam a partir dessa suposição. Mas os átomos não são objeto de percepção, como as hemáceas e os leucócitos, que podem ser vistos ao microscópio. Como se poderia provar que eles não são apenas entidades hipotéticas, cuja pressuposição de existência nunca foi refutada por um teste empírico? Como se poderia provar que, além de serem supostos como existentes em teorias que são empiricamente bem-sucedidas, eles realmente existem? Bem, isso depende da resposta que se tenha para a questão do que significam "ser" e "não ser".

Heidegger diz que a tradição filosófica dos gregos em diante sempre identificou o ser com a presença no mundo. Assim, segundo tal tradição, ser era estar presente no mundo e não ser era não estar presente no mundo. Segundo Heidegger, isso é um erro, porque, se se entende por "presença" a possibilidade de ocupar lugar no espaço e no tempo, toma como resposta geral sobre a questão do ser uma resposta que pode servir, quando muito, para o ser dos objetos materiais, para o ser, por exemplo, de mesas e cadeiras. Ora, tomar como referencial do que é o ser a descrição do ser de objetos materiais é generalizar para todos os outros entes ("entes" são as coisas que são, que existem) o tipo de ser característico de certos entes em particular.

Não que se possa determinar o que é o ser sem levar em conta os entes dos quais se fala em especial, ou seja, sem levar em conta se se fala do ser das mesas, de ideias, de relações, de pessoas, de abstrações, etc. Heidegger acreditava que a resposta da questão do ser só pode ser obtida mediante o exame do ser dos entes, e, portanto, é preciso, sim, começar por algum ente ou tipo de ente em especial. Mas não via razão para começar pelos objetos materiais como os entes que acima de tudo deveriam ser examinados. Heidegger acreditava que, na tentativa de responder à questão do ser, se deveria examinar, em primeiro lugar, aquele ente que é o único que se pergunta sobre o ser, ou seja, o homem.

Aqui vale a pena chamar atenção para um ponto polêmico de interpretação das ideias de Heidegger. Heidegger não se refere explicitamente ao homem, e sim ao "Dasein", termo alemão que, embora signifique simplesmente "existência", é geralmente traduzido como "Ser-aí", porque isso facilita a posterior compreensão dos jogos conceituais que Heidegger faz com o "da" (aí) e o "sein" (ser). Pois bem, o Ser-aí é, segundo Heidegger, aquele ente capaz de se perguntar sobre o ser, aquele ente que se põe como intérprete privilegiado do ser dos outros entes. Ora, o mais natural seria identificar de cara esse ente com o homem. Contudo, uma respeitável tradição de intérpretes considera essa identificação precipitada, ou porque considera que as propriedades que Heidegger atribui ao Ser-aí pertenceriam a todo e qualquer ente que se fizesse a pergunta sobre o ser, e não apenas ao homem; ou porque interpreta que, acima do homem individual, é muito mais às coletividades, às tradições culturais, que Heidegger atribui o estatuto de Ser-aí. Em que pese essa considerável objeção, seguirei minha exposição me referindo ao Ser-aí como sendo o homem individual (essa interpretação que faço costuma ser chamada de "interpretação existencialista" do pensamento de Heidegger).

Portanto, Heidegger acreditava que, na tentativa de responder à questão do ser, se deveria examinar em primeiro lugar aquele ente que é o único que se pergunta sobre o ser, ou seja, o homem. Isso equivale a, na relação entre sujeito conhecedor e objeto conhecido, em vez de se perguntar pelo ser daquele ente que só pode ser objeto, se perguntar pelo ser daquele ente que pode ser tanto objeto quanto sujeito. Em vez de partir das coisas para determinar o ser de todos os entes, inclusive o homem, Heidegger propunha partir do homem para determinar o ser de todos os entes, inclusive as coisas.
Segundo Heidegger, em Ser e Tempo, a pergunta sobre o ser não deve se basear no ser daquele ente que são as coisas, que consiste em simples presença no mundo, mas sim no ser daquele ente que é o homem, o único ente capaz de fazer-se a pergunta sobre o ser. O ser do homem não consiste numa simples presença no mundo, e sim num Ser-aí (Dasein), o qual pode ser definido a partir dos seguintes elementos: 
- Trata-se de um projeto indefinido, autodirigido e perpetuamente inacabado: O homem, ao contrário de uma faca, uma cadeira ou uma casa, não tem essência, no sentido de um conjunto pré-definido de propriedades e atributos que ele deve adquirir ou conservar para aí sim ser de fato um homem. O homem tem existência, no sentido de que está constantemente definindo que tipo de coisa ele é.  O que ele é ele mesmo é que define. E essa definição é sempre projeção. Trata-se antes do que se quer ser e como chegar até lá. E não existe linha de chegada. Todo ponto final é ponto de partida de uma nova projeção. O homem está condenado a ser esse “espaço vazio” que pode conter e buscar qualquer projeção, mas jamais pode se deixar definir ou aprisionar inteiramente por ela. Mas essa projeção está sujeita a três condições (que são também limites), quais sejam:

i) O Ser-aí é um ser-no-mundo: A primeira condição (e também o limite) dessa projeção é a facticidade, quer dizer, aquele conjunto de circunstâncias que fazem com que um homem em particular projete certas coisas, e não outras, e seja capaz de alcançar certas projeções, e não outras. A facticidade (essa possibilitação, direcionalidade e limitação que o mundo em volta do homem exerce sobre suas projeções) se dá porque ele é um ser-no-mundo. Para Heidegger, não há que falar em homem em abstrato, fora de uma situação mundana específica. Ser homem é estar numa situação mundana em particular (nisso consiste sua “mundanidade”), situação a partir da qual certas projeções são possíveis (mundanidade como condição), mas a partir da qual também certas projeções se tornam impossíveis (mundanidade como limite). Para usar um exemplo simples de que parte da definição do homem é sua mundanidade, pense em como ser homem no Antigo Egito e ser homem no mundo atual são coisas distintas: não são ambos versões diferentes de um ser-homem em abstrato (o qual seria inclusive inconcebível), e sim duas coisas distintas, o ser-homem-no-Antigo-Egito e o ser-homem-no-mundo-atual. Para usar um exemplo simples de como a facticidade afeta as projeções, basta ver como o projeto de ser um ativista político influente não seria possível no Antigo Egito, enquanto o projeto de ser Faraó não seria possível hoje.

ii) O Ser-aí é um ser-com-os-outros: A segunda condição (e também o limite) dessa projeção é o mundo-da-vida, quer dizer, aquela rede de crenças, valores e afetos compartilhados pelos homens que vivem em certo meio social, rede que serve ao mesmo tempo de matéria-prima das projeções e de limite para elas. O homem é um ser social, não no sentido essencial de que ele quer ou precisa viver em sociedade, e sim no sentido existencial de que a definição de em que consiste seu Ser-aí se alimenta (como continuidade, renovação ou oposição) de uma massa de imagens e motivos que já existem antes dele e no qual cada homem se vê mergulhado ao fazer parte de um mundo social. Até mesmo a projeção de ser um eremita isolado só se torna possível a partir de certo mundo-da-vida no qual é possível pensar a figura do eremita como uma figura dotada de sentido. O “espaço vazio” do ser do homem precisa ser preenchido com sentidos, e sentidos são construídos, interpretados, mantidos e transformados socialmente. Esse mundo-da-vida como condição e limite existencial do homem é o ponto de partida da noção de “tradição” no mais famoso seguidor de Heidegger, Hans-Georg Gadamer (outro ponto importante, que vou apenas apontar aqui sem desenvolver, é o contraste entre a instrumentalidade das coisas, derivada do ser-no-mundo, e a não instrumentalidade dos outros, derivada do ser-com-os-outros, que, para Heidegger, tem não apenas as relevantes consequências éticas que Kant já havia apontado, mas também consequências existenciais para o tipo de projeto que é possível num mundo que se enfrenta em concurso com outros). 

iii) O Ser-aí é um ser-para-a-morte: A terceira condição (e também o limite) dessa projeção é a finitude temporal que se impõe a partir da consciência e certeza de que se vai morrer um dia. O perpétuo projetar não é eterno projetar: é constante por toda a vida, mas dura apenas enquanto durar esta última. A morte em si é só mais um elemento da facticidade, mas a consciência e certeza da morte é outra coisa completamente distinta. Sem consciência e certeza da morte, não existiria urgência nem de projetar nem de realizar os projetos projetados. Tal urgência só se mantém, além disso, porque a consciência e certeza da morte não implicam consciência e certeza da data da morte. Pode-se ser jovem e morrer amanhã, ou ser velho e viver mais vinte anos. A consciência e certeza de uma morte certa em data incerta é que pressiona todo o período de vida a ser constantemente realização de um projeto. Existe, é claro, na chamada “civilização”, uma série de mecanismos para inibir essa força opressora da morte, mas o ser-para-a-morte do homem, mesmo quando este está entorpecido por falsas certezas de completude e por temporários esquecimentos de sua mortalidade inevitável, nunca deixa de irromper de tempos em tempos na forma da experiência existencialmente liberadora da angústia. A angústia reconecta o homem com seu ser-para-a-morte e faz com que se relembre da sua incontornável condição de Ser-aí.
O desenvolvimento pormenorizado dessa “analítica existencial”, ou seja, dessa enumeração e revelação das condições (e limites) do Ser-aí do homem, enquanto ente que se faz a pergunta sobre o ser, é o que permite a Heidegger inverter o sentido tradicional da relação entre Ser e Tempo (a relação que dá nome ao livro). Se, na tradição ocidental, sob impulso de Parmênides e a partir do cânone de Platão, o tempo, como promotor do devir (o vir-a-ser, a mudança) havia sido sempre pensado como aquilo que é contrário ao ser (pois o ser, inspirado no ser dos entes que são as coisas, é aquilo que não muda, sempre permanece igual e idêntico a si próprio), agora, a partir da reflexão de Ser e Tempo, era possível visualizar o tempo como a condição sem a qual não existe o ser, desde que este seja entendido a partir do ser do ente que se pergunta sobre o ser, isto é, a partir do ser do homem, o Ser-aí. Só no tempo é que o Ser-aí pode se projetar, só no tempo é que pode se enfrentar com o mundo em busca de seu projeto projetado, só no tempo, e na consciência do tempo e certeza da morte, é que pode reencontrar o sentido de seu Ser-aí para além de toda ilusão ou esquecimento. O tempo deixa de ser o temido inimigo do ser e passa a ser – de agora em diante – seu aliado necessário.
-------------------------------------------------------------------
Fonte: http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário