O passar dos anos significa, de determinada forma, sairmos
de nós. Vermo-nos, em todos os sentidos, como éramos antes – com todas as
implicações aí contidas. E lições (as mais diversas) a tirar, para continuar a jornada. É o tempo,
a sabedoria e a arte de envelhecer. A propósito, vale a pena conferir o artigo aí abaixo de Drauzio
Varella.
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José Saramago e Pilar del Río: "Não nos vemos se não nos saímos de nós" |
Por Drauzio Varella
(Médico; dirigiu o Serviço de Imunologia do Hospital do Câncer/SP)
Achei que estava bem na
foto. Magro, olhar vivo, rindo com os amigos na praia. Quase não havia cabelos
brancos entre os poucos que sobreviviam. Comparada ao homem de hoje, era a
fotografia de um jovem.
Tinha 50 anos naquela época,
entretanto, idade em que me considerava bem distante da juventude. Se me for
dado o privilégio de chegar aos 90 em pleno domínio da razão, é possível que
uma imagem de agora me cause impressão semelhante.
O envelhecimento é sombra
que nos acompanha desde a concepção: o feto de seis meses é muito mais velho do
que o embrião de cinco dias.
Lidar com a inexorabilidade
desse processo exige uma habilidade na qual nós somos inigualáveis: a
adaptação. Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade como
nós, de sobreviver em nichos ecológicos que vão do calor tropical às geleiras
do Ártico.
Da mesma forma que ensaiamos
os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes,
adultos e a ficar cada vez mais velhos.
A adolescência é um fenômeno
moderno. Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta sem estágios
intermediários. Nas comunidades agrárias, o menino de sete anos trabalhava na
roça e as meninas cuidavam dos afazeres domésticos antes de chegar a essa
idade.
A figura do adolescente que
mora com os pais até os 30 anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida
à mesa e da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas depois
da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos avós tinham filhos para criar.
A exaltação da juventude
como o período áureo da existência humana é um mito das sociedades ocidentais.
Confinar aos jovens a publicidade dos bens de consumo, exaltar a estética, os
costumes e os padrões de comportamento característicos dessa faixa etária, tem
o efeito perverso de insinuar que o declínio começa assim que essa fase se
aproxima do fim.
A ideia de envelhecer aflige
mulheres e homens modernos, muito mais do que afligia nossos antepassados.
Sócrates tomou cicuta aos 70 anos, Cícero foi assassinado aos 63, Matusalém
sabe-se lá quantos anos teve, mas seus contemporâneos gregos, romanos ou judeus
viviam em média 30 anos. No início do século 20, a expectativa de vida ao
nascer nos países da Europa mais desenvolvida não passava dos 40 anos.
A mortalidade infantil era
altíssima; epidemias de peste negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e
tuberculose dizimavam populações inteiras. Nossos ancestrais viveram num mundo
devastado por guerras, enfermidades infecciosas, escravidão, dores sem
analgesia e a onipresença da mais temível das criaturas. Que sentido haveria em
pensar na velhice quando a probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria
como hoje preocupar-nos com a vida aos cem anos de idade, que pouquíssimos
conhecerão.
Os que estão vivos agora têm
boa chance de passar dos 80. Se assim for, é preciso sabedoria para aceitar que
nossos atributos se modificam com o passar dos anos. Que nenhuma cirurgia
devolverá aos 60 o rosto que tínhamos aos 18, mas que envelhecer não é sinônimo
de decadência física para aqueles que se movimentam, não fumam, comem com
parcimônia, exercitam a cognição e continuam atentos às transformações do
mundo.
Considerar a vida um vale de
lágrimas no qual submergimos de corpo e alma ao deixar a juventude é torná-la
experiência medíocre. Julgar, aos 80 anos, que os melhores foram aqueles dos 15
aos 25 é não levar em conta que a memória é editora autoritária, capaz de
suprimir por conta própria as experiências traumáticas e relegar ao
esquecimento inseguranças, medos, desilusões afetivas e as burradas que fizemos
nessa época.
Nada mais ofensivo para o
velho do que dizer que ele tem "cabeça de jovem". É considerá-lo mais
inadequado do que o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de dez.
Ainda que maldigamos o
envelhecimento, é ele que nos traz a aceitação das ambiguidades, das
diferenças, do contraditório e abre espaço para uma diversidade de experiências
com as quais nem sonhávamos anteriormente.
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Fonte: Folha de São Paulo, versão para assinantes, edição do dia 23/01/2016
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